Márcia Denser
Naturalmente, este é um cânone pessoal, composto por obras que estão na base da minha formação de escritora. A fotógrafa Maureen Bisilliat compara livros a velhos amigos, aos quais recorremos, a quem visitamos, com quem dialogamos pelo resto de nossas vidas.
Mas, para fazer sentido, este cânone obedece a uma cronologia, que é onde entram os "autores e obras de formação" – muitos dos quais não reli ou releria hoje, outros tantos dos quais me esqueci, mas que são eternamente evocados por sua influência transformadora em dado momento da vida:
Monteiro Lobato – Na festa de aniversário dos meus nove anos, meu pai me deu de presente a coleção de livros infantis de Monteiro Lobato, a começar por Reinações de Narizinho, O Saci (olha ele aí) e Viagem ao céu. Lembro que abri o livro, li o primeiro parágrafo, então fui para o quarto e tranquei a porta, sem me importar com a festa ou as outras crianças lá fora. Esse foi o ponto sem retorno, o evento definitivo. Quando fechei aquela porta, dei as costas para o mundo, outro universo se abriu. Foi aí. Minha vida começou aí.
Pensando retrospectivamente, e encarando a literatura como a realização de um projeto de vida, o significado original não só permanece como também se esclarece, mais e mais vivemos e escrevemos. Se minha vida começou com a descoberta do universo literário, o que não existe para mim é um significado fora desse universo. E isso não tem nada a ver com excentricidade ou alienação, mas a necessidade de ser coerente com seu projeto. Um escritor é um ser superespecializado num único sentido, o da escrita – a qual se torna não uma segunda natureza, mas a primeira. E única.
Machado, capa & espada, Nietszche e Dostoievski – Lembro da biblioteca que havia na casa de minha avó que, entre uma dúzia de netos e netas, era visitada apenas por mim e minha prima Mary (vivendo atualmente na França).
Com uma voracidade incrível por ficção, sem nenhum método, eu lia de tudo: novelas de piratas, capa & espada, romances ingleses de terror, antologias de contos norte-americanos, poesia francesa, os romances de José de Alencar, Eça de Queiroz, Stendhal, Zola, Balzac, Kipling, Dickens, Dumas, Hugo e outros.
Entre dez e 13 anos, algumas leituras foram definitivas, me transformaram (ou formaram?) para o resto da vida: a descoberta do lirismo poético captado pela primeira vez em Noites brancas, de Dostoievski; a opção moral entre ser único e solitário, ou aburguesar-se e viver preso ao rebanho, colocada por O lobo da estepe, de Hermann Hesse; a relatividade do bem e do mal representada em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde; e, voilà, Deus estava morto! segundo Nietszche (Assim falava Zaratustra).
Ex-aluna de colégio de freiras, adolescente e senhora apenas do meu corpo (do qual acabara de me dar conta) e seus poderes sobre o outro (idem, idem), me tornava perversamente materialista. E transgressora. Onde quer que estivesse a tradição, a lei, a ordem, o preestabelecido, a norma, o consenso, o bom senso, eu seria contra.
(Semana que vem a última – e melhor – parte do cânone, me aguardem!).
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