Márcia Denser
Na terceira e última parte do cânone, estão os “autores de sustentação”, eternamente lidos e relidos, incorporados ao meu texto em razão de quase todos serem inventores de linguagem. Não importa tema ou tempo ou contexto histórico, grande escritor é aquele que encontra uma forma de dizer o indizível.
Nesse ponto, a literatura pode ser definida como empresa de conquista verbal da realidade, segundo Cortázar, ou como criação verbal, segundo Borges, ou como empresa de fundação, segundo Octavio Paz, uma vez que o escritor toma consciência de que mais do que um mundo a exprimir e inventariar, o que tem diante de si é um mundo a fundar.
O que há atrás do autor é uma linguagem, não um eu. Quer dizer, o que aciona o escritor é a palavra, não o ego. Por isso, é essa agudíssima consciência da linguagem – como interrogação e problema – o que constitui finalmente a literatura.
Machado de Assis – Dom Casmurro, Quincas Borba, Memórias póstumas de Brás Cubas, e, claro, os contos, crônicas, notas, principalmente esta, onde ele observa: “O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. (1) Machado se opunha àquela mentalidade provinciana que só reconhecia o espírito nacional nas obras que tratavam de assuntos locais, aqueles textos situados entre o exótico, o pitoresco e o regionalismo turístico, macacos e tucanos incluídos.
Rubem Fonseca – O homem de fevereiro ou março, A coleira do cão, Lúcia MacCartney, Feliz ano novo. Especificamente com essa produção, publicada entre 65 e 75, Zé Rubem, porque é absolutamente genial no conto, revoluciona nossa literatura urbana contemporânea. Com a contribuição dos clássicos, da novelística norte-americana dos anos 30 e 40, sem esquecer os toughs writers (os escritores durões da escola hemingwayana) incorporados à sua dicção e à sua fabulação, RF inova a linguagem, depurando-a, liberando-a dos derradeiros cacoetes desnecessários, de tanta literatice vazia, meramente ornamental. Rubem Fonseca é o último moderno e o primeiro pós-moderno. É canônico e pós-canônico, grande Zé Rubem!
William Faulkner – O som e a fúria, Absalão, absalão, Luz de agosto, Palmeiras selvagens. O velho Billy, quando ganhou o Prêmio Nobel em 1949, disse em seu discurso que começara escrevendo poesias, mas, como não eram grande coisa, partiu para o conto. Como também eles lhe pareceram medíocres, então tornou-se romancista. E ele não estava sendo modesto, entendam, porque poesia, conto e romance – ao contrário do que muita gente imagina – graduam-se genericamente em ordem crescente de dificuldade. É um autor difícil, de cujo texto é preciso aproximar-se como os pregadores batistas analfabetos aproximavam-se da Bíblia: com fé.
Mário Vargas Llosa – Conversa na catedral, A casa verde, A história de Mayta, A guerra do fim do mundo. Não li os últimos que ele escreveu, por exemplo, o romance sobre o ditador Trujillo, da República Dominicana, no qual um crítico da revista New Yorker encontrou 25 perversões. Llosa riu, comentando achar isso normal, até porque os norte-americanos, sobretudo os da academia, são uns malditos puritanos! Ainda sobre os americanos: para o escritor Gore Vidal, chamá-los de “anti-intelectuais” é elogiá-los. Sabe o que dizem de Victor Hugo? Ora, Hugo, é apenas um francês com um nome engraçado, um velho filme que só passa na sessão da madrugada!
Jorge Luís Borges – O Aleph, História universal da infâmia, Ficções, O livro de areia, O livro dos seres imaginários. Borges é extremamente engraçado. E excludente. É preciso um respeitável cabedal de leituras para captar o humor sutil, secreto, cifrado, das citações apócrifas, dos ensaios sobre autores e obras inexistentes. Uma síntese do espírito borgiano está no paraíso de Os anjos de Swendenborg, os quais “quanto mais inteligentes, mais resplandecem. Lá, os ricos continuam ricos porque já estavam acostumados com a riqueza, já os pobres de espírito não vão para o paraíso porque não o compreenderiam…”
Júlio Cortázar – O jogo da amarelinha, Todos os fogos o fogo, Bestiário, Alguém que anda por aí, Orientação dos gatos, Um tal Lucas, Octaedro, Os prêmios. Aliás, este último Cortázar o escreveu durante uma longa viagem de navio com o objetivo de erguer uma espécie de muro entre os demais passageiros e ele próprio, porque, afinal de contas, o interior dum livro é o único lugar do mundo onde se tem paz e sossego, onde ninguém nos alcança, onde somos inatingíveis, inapreensíveis, inabordáveis…
Marcelo Mirisola – Bangalô, O azul do filho morto, Joana a contragosto. And, last but not least, Mirisola. Reinventa a linguagem da indizível “lixeratura, feita com sucata de cultura” (Affonso Romano de Sant’Anna). Os anos 90 produziram esse autor genial. Leiam, ele é fundamental para se compreender a perversa subjetividade brasileira nesta virada de milênio. Em seu calmo desespero, que outro autor pensaria em “consultar o horóscopo para entrar na câmara de gás”?
(1) In “Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de nacionalidade” (1873). Obra completa, Rio, Aguilar, 1959.
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