(Abaixo, um fragmento do meu romance Caim (Rio, Record, 2006), onde o enredo, a trama, o assunto não importa muito, pra não dizer que não importa absolutamente nada, apenas a linguagem – uma primeira pessoa absoluta do próprio Caim: se o mesmo tivesse voz seria a minha. No sentido poético, naturalmente).
O Nome do Pai
Se o vácuo de raízes foi tudo o que Maximilian Hehl legou, então ele legou tudo sem nada deixar além do principal – o nome do pai. Uma palavra com seis letras cujo princípio é o fim do alfabeto: Hehl. Ah, suave e ilegítima rosa inviolada, zunido de fecho éclair besuntado de mel, flecha invertida cravada em meu peito, teu rumo é para trás, para baixo e para dentro, atingir a origem é caminhar em sentido inverso, dilacerar-se, repisar por sobre pegadas extintas há milênios.
Ninguém te seguirá, ninguém te guiará, rosa petrificada da eternidade, rosa do esquecimento, terás que rastrear-me até a fímbria da memória, divindade inapreensível cujas leis impõem raciocinar caçadoramente e com as mãos limpas: tu e tua solidão, tu e tua sombra, tu e teu reflexo. Sou pedra que tua maré atordoa, pedra que não se importa porque pedra porque pedra porque não paras de bater na porta?Para quê a resposta de minha boca se a tens na ponta da língua? Então mostra-me o furo, o buraco, a rachadura desta pedra que tua maré atordoa, corrói e não perfura e mesmo que assim fosse só ouvirias os gemidos das tuas próprias águas borbulhando no vácuo dum túnel frio destruído mudo, então bate, bate na porta, não terás resposta porque se eu falar acharás que minto como realmente, dama das marés. Que foi um século para ti? Acaso a herança daquele Maximilian não chegou intacta a tuas mãos?
E pensar que protegeu-a uma palavra oca, nada significando além de si própria, zurzir duma aljava em seu invólucro alfabético e, posto que a desvendaste, nada mais te resta senão aceitá-la porque não há escolha para ti, mulher: devora-me, cumpridora dos rituais mortos, assim renovas a ti mesma, senhora das graças e desgraças marítimas, mãe negativa, gerando a mim geras aquela que também serias se não fosses quase tudo, as três quartas partes da terra. Ah, suave e ilegítima rosa, estrela do mar que pousa em meu peito, longínqua, fria, perfeitíssima, tantas vezes rosa, amor, amor.
O nome do pai. Era tudo o que tinham e tudo o que precisavam. O nome do pai: a ponte, o arco-íris ilusório entre as coisas eternamente separadas, um sobrenome sem história, sem raízes, sem significado, mas que podia ser pronunciado e repetido e escrito, porque o homem se diferencia do animal pelo nome, o rabo designativo da tribo a qual pertence, como um juiz perpetuamente a dar o veredicto: este não é um vadio, outros o precederam, outros o sucederão e em tudo semelhantes a este que testemunha e lhes dá fé, além do beiço caído que, tudo indica, tenha sido herança do bisavô, tão mais presente in absentia nos daguerreótipos onde se esfumavam as pálidas feições de Ana Duarte e seus parentes.
De modo que só pode ser sido de Maximilian. Daí a verdadeira razão, tão obscurecida por omissões e falsas premissas, da família considerar o beiço caído algo semelhante ao sobrenome, tanto mais valorizado porque indiscernível, inapreensível, intocável, uma espécie de marca registrada totalmente arbitrária, conquanto demasiado visível e transmissível e a única prova concreta das tais quatro letras ocas, e sob tão imperioso pretexto era natural que ignorassem as leis da estética e da ética e por que não da ótica?
Que todas se revogam perante as leis do clã, as ditas leis do sangue, aquele que clama desde a terra, aliás, não foi assim que tudo começou? Não são pelos traços familiares que os covardes se reconhecem e se multiplicam para se protegerem desde os séculos? Afinal, ali não estava o Hehl ao fim e ao cabo? Ainda que não significasse coisa alguma, legitimava-o o beiço caído, o sinete do clã.
Então nasceu Álvaro, o penúltimo dos seis filhos de Victor e Teresa Hehl. Assim como Lineu, Max, Laís, Liris e Herb, ele herdara cada um dos traços familiares, mas organizados de tal forma que todos se harmonizavam. Ao seu lado, os irmãos pareciam versões mal sucedidas. Álvaro tirava-lhes tudo sem usurpá-los de nada, apenas retificava-os. Mas precisamente por isso, em seu belo rosto o tão decantado selo não passava de um beiço caído, destoava. Sem fugir à regra, Álvaro fora a irônica, cruel exceção. Beleza é verdade, verdade é beleza. Ilegítima é sua ausência.
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