Luiz Alberto dos Santos*
Em artigo no Estadão de 20.03.2015, Helena Nader, Jacob Palis Jr, Rubens Naves e Thiago Odoni defendem o reconhecimento, pelo STF, da constitucionalidade das Organizações Sociais, entidades de direito privada que assumem funções da Administração Pública, com base em experiências que consideram bem sucedidas na área de ciência e tecnologia e saúde, questionando o fato de o Partido dos Trabalhadores ter arguido, ainda em 1998, a inconstitucionalidade da Lei nº 9.637, de 1998.
Os exemplos citados – Instituto de Matemática Pura e Aplicada, Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais e EMBRAPPI conduzem, no entanto, a um juízo excessivamente benevolente sobre uma experiência contaminada por um forte viés privatizante e até mesmo tendente à patrimonialização da gestão pública, e que serve como forma de burla aos princípios estabelecidos pela Constituição, de resto já bastante desrespeitados mesmo quando o próprio Estado gere diretamente recursos públicos.
As “organizações sociais” são um dos vestígios infelizes da reforma gerencial implementada pelo ex-Presidente FHC. Se, na União, poucas entidades foram “qualificadas” para receber, sem licitação, recursos, instalações e pessoal de órgãos ou entidades públicas pré-existentes, substituindo-os na prestação de serviços ou execução de atividades em áreas como ciência e tecnologia, educação, meio ambiente e saúde, em alguns Estados e Municípios a erva daninha vingou, levando a situações constrangedoras como a verificada em São Paulo.
Em setembro de 2008, por exemplo, a 3ª Vara da Justiça Federal de São Paulo proferiu sentença em Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Federal, proibindo a Prefeitura de São Paulo de qualificar entidades privadas como “organizações sociais” para fins de atuação no Sistema Único de Saúde, e de firmar contratos de gestão com essas entidades para a prestação de serviços públicos de saúde. Determinou ainda que o Município reassumisse a prestação desse serviços. Condenou, a União a fiscalizar o cumprimento dessa determinação, sob pena de suspensão dos repasses do Fundo Nacional de Saúde para o Município de São Paulo. Na campanha eleitoral de 2012, o tema foi objeto de amplo debate, mas a situação de fato consumado – onde grande parte da rede hospitalar se achava sob a gestão desses entes privados – mostrou ser inviável a sua desconstituição pela nova Administração municipal.
Em agosto de 2007, o Supremo Tribunal Federal iniciou a apreciação do mérito da ADIn ajuizada, quase dez anos antes, pelo PT e PDT e pela OAB. Ao julgá-la, foi patente o constrangimento dos então integrantes da Suprema Corte ao reconhecer que, deferida a liminar, inúmeras situações constituídas ficariam sem base legal de um minuto para o outro. E, se o STF, liminarmente, suspendesse a Lei Federal nº 9.637, na qual se inspiraram as leis estaduais e municipais que vêm sendo questionadas pelo Ministério Público, e suspendesse os contratos já firmados, poderia tornar-se ainda pior a situação para os mais necessitados.
Em nenhum momento, porém, o STF, até o momento, declarou a constitucionalidade das “organizações sociais”. Não houve julgamento de mérito. A ADIN teve, apenas, rejeitada a liminar, e votos como os dos Ministros Lewandowski, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Marco Aurélio foram precisos ao apontar as fragilidades constitucionais do “modelo”. Ninguém pode, assim, dizer, em defesa dessa ou daquela experiência implementada ao abrigo da lei federal ou suas congêneres estaduais ou municipais, que o STF já se pronunciou. Mais ainda, os votos já proferidos deixam claro que o Tribunal deixou para o julgamento do mérito a decisão definitiva e o enfrentamento dos fatos produzidos desde 1998, mas tende a reconhecer fragilidades insuperáveis do modelo, e sua baixa aderência aos princípios de uma gestão pública republicana.
As tentativas de implantação de organizações sociais nos mais diferentes setores tem sido combatida diuturnamente, com fundadas razões, pelo Ministério Público e por juristas como Celso Antonio Bandeira de Mello e Tarso Cabral Violin, e enfrentado a crítica de importantes setores da sociedade. Inúmeras entidades vem-se manifestando pela inconstitucionalidade do modelo e de sua lei de regência, como o Andes-Nacional, a CUT, o Conselho Federal de Serviço Social, e Fóruns de Defesa do SUS em vários estados. A atuação do Ministério Público tem sido incisiva na direção de impedir que o Estado, por esse meio, promova a substituição dos entes públicos por entes privados para os quais não prevalecem os princípios gerais da Administração. O Poder Judiciário vem se manifestando, paripasso, nesse sentido.
Em outubro de 2011, o Tribunal Superior do Trabalho negou o pedido do Estado de Santa Catarina de anular a decisão da ação civil pública n. 5772/05, já transitada em julgado desde 2007, que proíbe o Estado de Santa Catarina de realizar contrato com Organizações Sociais. Em agosto de 2012, o Poder Judiciário acatou pedido do Ministério Público e determinou em caráter liminar a imediata suspensão da transferência do gerenciamento e operacionalização das atividades do Samu de Santa Catarina para a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina. Pedido de suspensão da liminar, submetido ao STF, foi indeferido em outubro de 2012.
No Mato Grosso, decisão em setembro de 2011 da 2ª Vara da Justiça Federal determinou ao Estado “abster-se de qualificar outras organizações sociais para fins de celebrar contratos de gestão cujo objeto seja a transferência da totalidade dos serviços de saúde a serem prestados em outras unidades hospitalares, a fim de evitar os sérios e irreversíveis danos que dessa prática podem resultar para a ordem administrativa, para os serviços públicos de saúde, bem como para os respectivos usuários” e reassumir a gestão do Hospital Metropolitano de Várzea Grande, transferida pelo estado a uma organização social.
Em outubro de 2012, o Ministério Público do Trabalho obteve decisão da 3ª Vara do Trabalho em São Paulo julgando procedente ação civil pública e determinando a nulidade de todos os contratos entre a Secretaria de Estado da Saúde e organizações sociais (OSs) por irregularidades trabalhistas. A sentença determinou a troca imediata de funcionários terceirizados por servidores concursados nos 37 hospitais e em outras 44 unidades de saúde administradas por essas entidades em todo o Estado de São Paulo, reconhecendo a ocorrência de terceirização ilícita no serviço público de saúde.
Em 23 de outubro de 2012, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública, visando impedir o Estado de Goiás de renovar ou prorrogar os contratos já celebrados com Organizações Sociais (OS) para a gestão de unidades de saúde, bem como proibido de celebrar novos contratos nos moldes em que hoje estão sendo feitos.
E não apenas o PT, como outros partidos, tem-se declarado em vários momentos contrários a esse modelo, que transfere a uma entidade privada, sem processo transparente de escolha, a gestão de recursos públicos, mediante a firmatura de “contratos de gestão” que não tem vinculação clara entre meios e fins.
A insegurança jurídica do modelo, assim, é considerável, e tanto mais quando presentes elementos caracterizadores não da complementaridade, mas de verdadeira substituição do Estado por ente privado, e quando a organização social a ser selecionada não o seja segundo critérios transparentes, impessoais e públicos.
O caso recente da EMBRAPII, criada para exercer – em paralelo à FINEP, entidade que existe há mais de 40 anos – a atividade de fomento e promoção da pesquisa e desenvolvimento tecnológico da EMBRAPII, com a aplicação de recursos públicos que ultrapassariam R$ 1 bilhão anuais, é um bom exemplo da perversão do modelo das OSs. Criado para finalidades específicas, ele vem sendo ampliado, invadindo, até mesmo, o que seria função exclusiva do Estado. A EMBRAPII, por exemplo, é uma entidade privada, mas decidirá a alocação de fundos públicos segundo critérios estabelecidos pelo seu Conselho de Administração e não pelo Poder Público. Trata-se claramente de fomento privado com recursos públicos. Essa função, porém, fere a Constituição Federal, como apontado pelo ex-Ministro do STF Joaquim Barbosa em julgamento relativo a entidade criada pelo Governo do Estado do Paraná para gerir serviços na área de educação:
(…)A norma possibilita ainda que a entidade exerça a gerência das verbas públicas, externas ao seu patrimônio, legitimando-a a tomar decisões autônomas sobre sua aplicação.
(..)
Se um ente revestido da natureza jurídica de direito privado detém a prerrogativa de determinar a forma como os investimentos públicos ocorrerão, abre a mão o Estado da prerrogativa que lhe é inerente, afrontando de forma direta o texto constitucional”. (Ministro Joaquim Barbosa, Voto-Vista que embasou decisão na ADI nº 1864-9 Paraná).
Além disso, a própria Lei nº 9.637, de 1998, não contempla a atividade de incentivo/fomento e promoção da inovação como área de atuação para fins de qualificação de entidades como organização social.
O fomento é uma forma de intervenção do Estado na economia, com características de adesão, não compulsória para todos os agentes econômicos. Mas, é uma ação que favorece segmentos ou agentes específicos, portanto, privilegiando alguns em detrimento de outros. Assim, por se tratar de atividade administrativa, aplica-se às ações de fomento público os princípios constitucionais da legalidade, da publicidade e da impessoalidade, mesmo quando implementadas por empresa pública, visando o tratamento isonômico dos agentes econômicos. Por seu turno, os agentes beneficiados assumem obrigações em troca dos benefícios e podem ser penalizados em caso de descumprimento. Entidades privadas não se submetem aos princípios constitucionais vigentes para o setor público e não tem os poderes próprios do Estado (soberania do Estado) para exigir o cumprimento de obrigações assumidas pelos beneficiários do fomento, muito menos de aplicar qualquer tipo de penalidade. O próprio Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado reconhece a atividade de fomento como exclusiva de Estado, e não poderia, portanto, ser exercida por entes privados, não integrantes da Administração Pública.
Em outro caso recente, a total ausência de critérios impessoais para a seleção da “organização social”, no caso do Instituto de Ensino e Pesquisa Alberto Santos Dumont – IASDEP, criado para, em substituição a outra entidade já existente, “dar continuidade ao trabalho desenvolvido no projeto ‘Campus do Cérebro’, construído em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no município de Macaíba-RN”, levou a uma forte polêmica e disputa entre grupos de cientistas, e mesmo ao questionamento sobre a forma como recursos públicos da ordem de R$ 250 milhões – que poderiam ser melhor distribuídos entre diferentes projetos – estariam sendo efetivamente aplicados em favor do desenvolvimento da ciência nacional, já que não foram precedidos de uma avaliação do seu mérito.
Em seu voto no julgamento da ADIN nº 1923, o voto do Ministro Luiz Fux, apresentado em maio de 2011, destaca a impossibilidade de uma escolha discricionária de entidade para ser qualificada com organização social e, consequentemente, firmar contrato de gestão com o Poder Público tendo acesso privilegiado a recursos escassos. Assim, defende que o poder público deve realizar procedimento objetivo de seleção entre as organizações sociais qualificadas no seu âmbito de atuação para que escolha impessoalmente com quem realizará a parceria. Defende, portanto, que “embora não submetido formalmente à licitação, a celebração do contrato de gestão com as Organizações Sociais deve ser conduzida de forma pública, impessoal e por critérios objetivos, como consequência da incidência direta dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública”. E conclui que os contratos a serem celebrados pela Organização Social com terceiros e a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais, devem ser conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e de acordo com parâmetros fixados em abstrato segundo o que prega o art. 20 da Lei nº 9.637/98, afastando, ainda, qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas. Pendentes os votos dos demais integrantes da Corte, fica evidente a impossibilidade de que uma entidade criada ah hoc, e selecionada discricionariamente, sem qualquer processo público e transparente, assuma funções até então exercidas, no todo ou em parte, por ente público.
Somente isso já seria suficiente para demonstrar o quanto a questão acha-se mal resolvida, visto que as organizações sociais tem-se convertido, mais do que em instrumentos para a boa gestão pública, em meios para que a gestão não seja pública, mas privada, e, pior ainda, imune aos princípios da transparência, impessoalidade e legalidade que devem reger a aplicação de recursos públicos.
Buscar alternativas para os problemas institucionais do Estado relativos à forma de prestação de serviços públicos, visando o cumprimento dos princípios constitucionais e a satisfação dos deveres a ele impostos pela Constituição é um desafio permanente, que não pode ser enfrentado com gambiarras e instrumentos jurídicos frágeis, malcopiados de outros países, como o são as “organizações sociais”.
A boa gestão pública, ademais, prescinde dessas manobras, e abundam os exemplos de instituições que cumprem adequadamente seu papel, mesmo em ambiente de recursos escassos. As organizações sociais, ademais, dependem, literalmente, de forte injeção de recursos públicos para sustentar padrões diferenciados de serviços – o que, se fosse aplicado da mesma forma em instituições públicas geridas de forma transparente e profissional, produziria os mesmos ou até melhores resultados.
*Luiz Alberto dos Santos é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Administração, Advogado, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, é autor do livro “Agencificação, Publicização, Contratualização e Controle Social – Possiblidades no Âmbito da Reforma do Aparelho do Estado” (DIAP, 2000). É Consultor Legislativo do Senado Federal e Professor da EBAPE/FGV.
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