Escrever sobre a morte é quase um tabu para o escritor, embora o jornalista a manuseie com uma indiferença quase litúrgica: afinal, reza o lead que é preciso começar com os mortos. Quem morre é sempre o Outro, por exemplo, os 200 mil iraquianos bunkerizados no deserto ou os 30 mil chilenos emparedados no estádio Nacional pelo regime de Pinochet. Mas não estou me referindo a mortes coletivas (que são outra história – mesmo porque, pra começar, a morte NUNCA é coletiva – que fica pra uma outra vez) – terrível mesmo é o relato de apenas uma morte. Pessoal. Intransferível. Melhor é absolutamente não pensar nisso e acabou-se.
Mas aí não vale: porque seria mentir, seria fugir, seria omitir metade da história da vida, na qual a morte está onipresente naquela parte imensa oculta, constituindo o iceberg em cujos picos se desenrola o drama humano, essa comédia de erros.
Não vou cair no erro obtuso de dizer, à semelhança dos padres da igreja católica na Idade Média, que passaram a considerar dogma “Deus como Suprema Bondade”, ou seja, que o Mal existe apenas como ausência de Bem. Ou por outra, não existe Frio, apenas ausência de Calor, porém, como infelizmente congelamos em temperaturas abaixo de zero, tais mortes seriam atribuídas a “um pouquinho menos de Calor” (já que, comparativamente, na natureza divina não havia nenhuma possibilidade para a existência do Mal/Frio).
Ao contrário dessa primitiva Teosofia (plenamente exercida atualmente pela turma do Tea-Party e sem contestação!), não me é permitido negar a realidade pela via retórica.
Por que essa falsa Supremacia Divina do Bem (ou Absoluta Ausência de Mal) se refuta com dois clichês manjadíssimos: 1) a grande proeza do Diabo foi nos fazer crer que ele não existe;
2) Mais ignoramos o Mal, mais ele nos monta pelas costas – algo modernamente comprovado pelo “modus operandi” do Inconsciente Coletivo – que sempre ataca o sujeito inconsciente por trás, pelas costas, tipo, dois pontos – o mundo inteiro vê que ele é arrogante, burro, corno, mentiroso, vaidoso, ladrão, canalha, que vai se foder, etc, menos o dito cujo. E isto a moderna psicologia chama “A Sombra”.
Só que a chave do Inferno também serve no Paraíso, donde que, por uma terrível, implacável dialética, “nossos piores defeitos também são nossas melhores qualidades”, ou seja, os defeitos se tornam qualidades apenas quando conscientizados. Enquanto não sabemos que existem, quem somos, nem o quanto somos dominados por nossos afetos, são as paixões que nos comandam e o destino é algo que ocorre à nossa revelia (que merda!).
Pois todos os conteúdos – bons ou maus – precisam se apresentar à Consciência (para que haja uma escolha). E a consciência é um campo tão pequeno, contudo fundamental, conquistado duramente milênio após milênio. Filosoficamente, eu diria que o campo da Consciência é Deus que adquire consciência através do Homem. A exemplo da máxima paulina: “Não sou eu quem vivo, é o Cristo que vive em mim”.
Dessa forma, hoje concordamos que o velho Deus, ou deuses, é um conceito super-ampliado, contendo em si todo o bem e todo mal, todo passado, presente e futuro, isto é, o tempo simultâneo (ou a eternidade) e o espaço infinito, sendo equivalente na psique humana, pela teoria junguiana, à junção do Inconsciente à Consciência Coletivos – campos infinitos, inatingíveis à Consciência Individual. Mas que, como viram, por ínfima que seja, faz TODA A DIFERENÇA.
Voltando à morte: tendo colocado como valor mais alto e maior conquista da Humanidade (e conquista relativamente recente), a Consciência Individual, e sendo o único e maior objetivo humano a tomada permanente e ampliação do campo da consciência, e, sendo a morte dada como extinção desta Consciência Individual, então como ficamos?
Entretanto, toda a Cultura humana – o que inclui a Religião, a Ética, a Política, a Ciência, a Psicologia, etc. – isto é, todo o campo do Simbólico ou Segunda Realidade ou Semiosfera,
foi inventada pelo Homem para afastar, negar, postergar, adiar, exorcizar a morte. Mas, como decorrência desse eterno esforço cultural, houve a emergência duma Consciência Individual – sua última e mais bela flor “simbólica” – através da qual o próprio Deus ganha realidade e existência,tal fato não apontaria precisamente no sentido da superação – real e simbólica – da morte?
Eis algumas idéias que me ocorreram e que procurei articular da melhor forma possível, mas pressinto que o assunto vai dar pano para outras colunas. A propósito: esqueci de dizer que sou cética (já imaginaram se não fosse?). E que não dá pra fazer nenhum negócio com o Diabo. Ou Deus. Ou ambos. E como esses dois são farinha do mesmo saco, resta acreditar no Homem.
Este que fique esperto, porra.
Deixe um comentário