Zuckerberg trouxe a ilha para os náufragos. A velha especulação com relação ao naufrágio e ao isolamento idealizados não existe mais. O fulano que está cercado por si mesmo de todos os lados não precisa ir pra ilh’alguma – e o que era isolamento virou ocupação. Assim, despercebidamente, incorporamos a ilha. Alguém poderia objetar: desde sempre estivemos condenados ao naufrágio. Eu diria: desde os sumérios até dez anos atrás, o naufrágio era o destino. Hoje é uma necessidade, quase que o alimento.
O náufrago é a ilha.
E o pior. O continente, a arena onde os verdadeiros conflitos ocorrem, está cada vez mais longe da realidade que experimentamos. Mais do que um naufrágio personalizado ao gosto do freguês, o sr. Zuckerberg, esse nerd dos infernos, criou uma nova Alcatraz. Presos. Cercados de ilhas amigas por todos os lados, prescindimos daquilo que o continente (ou a realidade) tem de mais valioso e nefasto – o lado de fora.
Nesse momento de transe, lembro de uma pequena jóia. Quando Roland Barthes assumiu a cadeira de semiologia literária no Colégio de França. A aula inaugural. Aqui em nossas plagas,o livreto Aula foi publicado pela editora Cultrix. Corria o ano de1977; época em que Steve Jobs andava descalço no campus da Reed College, repartia a comida com hare-krishnas, e tinha obsessão por uma matéria tosca chamada “caligrafia”.
Barthes acreditava que o mais violento instrumento de dominação era – e seria desde sempre – a linguagem. Que o Poder não era apenas uma manisfestação do Estado, no sentido de que uns têm e os outros não o têm, mas que, através da linguagem, o jugo poderia se insinuar por toda parte, desde lugares insuspeitos e infantilizados como o mundo da moda, passando pelos confrontos esportivos até chegar às relações familiares e privadas. O Poder, onipresente e implacável, estendia seus tentáculos até mesmo nos impulsos que tentavam contestá-lo, disso que trata Aula.
Daí que a guerra dos intelectuais não era contra “o poder”, mas contra “os poderes”. Segundo Barthes, o poder é “perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver. A razão dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo trans-social, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história política(…)”
Prossegue : “Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana, é a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.” (…) E vai além: “Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada frequencia, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada”.
E, por fim, arremata brilhantemente: “A língua não é nem reacionária, nem progressista: ela é simplesmente fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”.
Em 1978, Roland Barthes acreditava que servidão e poder se imiscuiam irremediavelmente na língua. E sobretudo acreditava que não podia haver liberdade senão fora da linguagem.
Mas como sair da linguagem? “Somente pelo preço do impossível” –dizia Barthes – pela singularidade mística assoprada por Kierkegaard ou através daquilo que Deleuze batizou de “‘capa reativa'”.
Bem, eu acredito sinceramente na singularidade mística e no exemplo de Kierkegaard, quando o filósofo dinamarquês malandramente saca da algibeira O sacrifício de Isaac (logo adiante faço a citação).
Estaria aí a brecha para escapar da linguagem? A chave da liberdade?
Se formos cotejar o sacrifício de Isaac com os efeitos especiais que abundam em outras passagens bíblicas, veremos que o episódio aparentemente é destituído de mitologia, porém é assombrosamente mítico na essência humana que o encerra. Deus aparece em sonho para Abraão. O pai teria de oferecer Isaac, o filho, ao holocausto: um drama humano que é coroado no último segundo pelo aparecimento do anjo que salva Isaac do cutelo de Abraão. Agora sim, como disse Kierkegaard: “Um ato inédito, vazio de toda palavra, erguido contra a generalidade”.
Se – na minha modesta opinião – substituírmos a palavra “anjo” por “culpa” chegaremos à salvação. Bingo! E com relação à tal da “capa reativa” de Deleuze, não faço a mínima idéia do que seja, pois sou mais místico do que picareta e odeio masturbação intelectual. De qualquer forma, me solidarizo com Barthes, quando ele diz que nós, que não somos super-homens, nem cavaleiros da fé, a nós só nos resta trapacear com a língua: “essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente, eu a chamo, quanto a mim: literatura”.
Enquanto isso, no campus da Reed College, Steve Jobs se recusava a tomar banho, consertava radinhos de pilha para ganhar uns trocos, e levava sua vidinha de nerd sem que ninguém o incomodasse.
Trinta e cinco anos se passaram, as misérias de Jobs transformaram-se no holocausto de Isaac, digo, nessa merda de rede à qual todos nós estamos expostos. Não demorou muito tempo para que Zuckerberg, o primeiro nerd citado, inventasse o feicibuqui.
Voltamos ao Colégio de França. A grande saída por fora, a trapaça, o logro “a revolução permanente” acabou soçobrando na própria intenção, de modo que a liberdade que brotava fora da linguagem foi corrompida pelo esvaziamento da subversão e, depois, pela tecnologia que devolveu o logro à sua origem: nesse sentido, hoje, dar crédito à especulação/trapaça de Barthes e falar de liberdade através da literatura é o mesmo que – pasmem – obrigá-la a dizer, reproduzir o fascismo, comungar o discurso da linguagem que engoliu a si mesmo. Dar voz e poder ao morto e – entre outros desfazimentos e “interações” – curtir e ser curtido no feicibuqui.
Então, a pergunta que me faço é a seguinte: se, em 1977/78, Barthes cogitava na possibilidade da liberdade fora da linguagem, e se essa liberdade, a liberdade do logro apenas se materializava no logro e se esse logro (ou literatura) e os escritores que, em última análise, são os artífices da trapaça, bem, se eles foram cooptados pela linguagem oficial (prêmios, bolsas, editais, dinheiro público, feiras literárias da PM, tablets, conexões à mancheia, curtidas feicibuquentas, etc etc) ou seja, se a literatura acabou virando língua e moeda corrente e, portanto, expressão de fascismo e prisão, onde – me pergunto – estaria a bendita liberdade… ou: onde essa liberdade ainda não teria sido aprisionada?
Alguém ainda quer ou conseguirá ser livre? Caso haja interesse, a conclusão é temerária, mas remete a um lugar onde a tecnologia e a subversão são cafés pequenos. Kierkegaard apontou o caminho da pedras. Basta nos erguermos contra a generalidade e submetermos nossos filhos ao sacrifício, condenado-os, assim, à misericórdia do algoz. Que a culpa nos proteja e ilumine como se fosse uma lua cheia bordejando sobre um arquipélago cercado de fascismo e solidão por todos os lados. Baixa o cutelo.
Alcatraz, novembro de 2012.
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