Antes mesmo da promulgação da emenda constitucional resultante da famosa “PEC da Bengala”, o senador José Serra apresentou, em 6 de maio de 2015, no Senado Federal, o Projeto de Lei Complementar nº 274/2015, que objetiva regulamentar o instituto da aposentadoria compulsória dos servidores públicos previsto no inciso II do § 1º do art. 40 da Constituição, em caráter geral.
Fruto de um longo processo de tramitação, já examinado em artigo de nossa autoria[1], a Emenda Constitucional nº 88, de 7 de maio de 2015, alterou as regras vigentes desde 1988 – e que, em grande medida, reproduziam as que vigiam na Constituição de 1967/Ec nº 1/69 – para prever que o servidor público será aposentado compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, aos 70 anos de idade, ou aos 75 anos de idade, na forma de lei complementar.
A mesma EC previu no seu art. 2º que até que entre em vigor a referida lei complementar, os ministros do Supremo Tribunal Federal, dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União aposentar-se-iam, compulsoriamente, aos 75 anos de idade, nas condições do art. 52 da Constituição Federal.
No entanto, já no dia 21 de maio de 2015, o STF deferiu liminar na ADI nº 5.316, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação Nacional dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), suspendendo a parte final do dispositivo, que previa que, para permanecer no cargo após os 75 anos, os ministros do STF, tribunais superiores e TCU deveriam submeter-se a nova sabatina e aprovação do Senado Federal, como prevê o referido art. 52 da CF. O Plenário acolheu o parecer do relator, ministro Luiz Fux, considerando que essa exigência viola o princípio da separação dos Poderes, cláusula pétrea da Constituição Federal, e compromete a independência e a liberdade dos magistrados, que não podem ter sua atuação avaliada por outro Poder, depois de anos de investidura no cargo.
No mesmo julgamento, o STF adotou o entendimento de que a ampliação da idade não se estende automaticamente aos demais servidores, inclusive os magistrados, carecendo essa extensão da lei complementar referida no inciso II do § 1º do art. 40, invalidando, assim, decisões judiciais que já vinham sendo adotadas em Tribunais de Justiça que estendiam a nova regra também aos desembargadores estaduais antes mesmo da edição dessa legislação.
A Corte também explicitou o entendimento de que, no caso dos magistrados, essa matéria somente poderá ser tratada por meio de lei complementarde iniciativa do Supremo Tribunal Federal nos termos do art. 93 da Constituição.
A proposição em questão, porém, ignora todos esses entendimentos do STF, e ainda outros limites constitucionais, revelando não apenas açodamento, mas, sobretudo, grave inconsistência do ponto de vista de sua constitucionalidade e validade como norma regulamentadora da Carta Magna.
Já num primeiro exame, destaca-se a ofensa, de clareza solar, da proposição ao disposto no art. 61, § 1º, II, “c” da Constituição, que estabelece:
Art. 61. ………………………………………………….
§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
……………………………………………………..
II – disponham sobre:
……………………………………………………..
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
………………………………………………………….”
Ao teor dessa norma, assim como o art. 93 da CF reserva a iniciativa da matéria do STF em relação aos magistrados, somente o chefe do Poder Executivo poderia dar início ao processo de regulamentação constitucional, por expressa reserva de iniciativa da matéria, visto se tratar de regras do regime jurídico dos servidores públicos e sua aposentadoria. A regulamentação, ao dispor sobre a aposentadoria de servidor público, e as condições para tanto, insere-se inequivocamente na regra de competência do referido § 1º, II, “c” do art. 61 da CF.
Não bastasse esse vício, incontornável e insuscetível de convalidação pela via da posterior sanção presidencial, conforme reiterada jurisprudência do STF[2], a proposição, quanto ao mérito, revela-se igualmente inconsistente, pecando pela generalidade de seu conteúdo.
Em seu art. 2º, ela prevê, como regra geral, que serão aposentados compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, aos 75 anos de idade:
I – os servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações;
II – os membros do Poder Judiciário;
III – os membros do Ministério Público;
IV – os membros dos Tribunais de Contas;
V – os membros dos Conselhos de Contas.
Em relação aos membros do Poder Judiciário e membros do Ministério Público, padece, como já mencionado, de irremediável vício de iniciativa, por contrariedade ao art. 93 da CF. Em vista do disposto no art. 73, § 3º, pode-se considerar que, por extensão, as regras que forem estabelecidas para os ministros do STJ, quanto à aposentadoria compulsória, serão automaticamente estendidas aos Ministros do TCU, visto que aquele dispositivo prevê que “os ministros do Tribunal de Contas da União terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça”, calculando-se os seus proventos conforme o restante do art. 40 da CF. Não haveria, assim, sustentação constitucional para que a lei complementar disciplinasse, em separado os membros dos Tribunal de Contas.
Quanto aos demais agentes públicos dos Poderes da União, a norma constitucional que a proposta visa regulamentar dirige-se exclusivamente aos servidores civis. Os militares, quanto ao ponto, tem regramento próprio, em lei ordinária, nos termos do art. 142, X da Constituição, e não se submetem ao disposto no art. 40 da CF.
Para a regulamentação da aposentadoria compulsória dos servidores civis da União, é necessário que sejam observados os requisitos de adequação do instituto da aposentadoria compulsória às condições de exercício dos cargos. Uma regra que amplie, genericamente, a idade limite da aposentadoria compulsória não estará cumprindo o comando constitucional que requer, para tanto, motivação e ponderação de critérios, em favor do princípio da razoabilidade. Não fosse necessária essa ponderação, a Emenda Constitucional teria, simplesmente, fixado de plano a aposentadoria compulsória aos 75 anos para todos os servidores.
Essa questão é especialmente relevante no caso de cargos da área de segurança pública, onde se requer um tratamento diferenciado em função do requisito de higidez e vigor físico.
Com esse sentido é que, nas polícias militares e Forças Armadas, as leis ordinárias preveem a passagem para a inatividade do militar com idades até mesmo inferiores aos 70 anos de idade. Por exemplo, no caso das Forças Armadas, a idade limite para o serviço ativo varia conforme a patente ou posto, indo de 48 a 66 anos, conforme a Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1980:
Almirante-de-Esquadra, General-de-Exército e Tenente-Brigadeiro: 66 anos
Vice-Almirante, General-de-Divisão e Major-Brigadeiro: 64 anos
Contra-Almirante, General-de-Brigada e Brigadeiro: 62 anos
Capitão-de-Mar-e-Guerra e Coronel: 59 anos
Capitão-de-Fragata e Tenente-Coronel: 56 anos
Capitão-de-Corveta e Major: 52 anos
Capitão-Tenente ou Capitão e Oficiais Subalternos: 48 anos
No caso dos policiais federais, a Lei Complementar nº 144/2015, também de iniciativa parlamentar, mas que foi sancionada pela presidente da República, reiterou a previsão legal de aposentadoria compulsória aos 65 anos prevista originalmente na Lei Complementar nº 51/1985.
Contudo, em decisão do dia 24 de junho de 2015, o relator do Mandado de Segurança n
º 33.656, ministro Marco Aurélio, deferiu medida liminar suspendendo a eficácia desse limite de idade (inferior aos 70 anos previstos na CF desde 1988), por entender presentes na referida LeiComplementar 144/2014 duplo vício: de ordem material, e de ordem formal. De ordem formal, porque se trata de lei de iniciativa parlamentar, ferindo, assim como no caso do PLS nº 274/2015, a reserva de iniciativa privativa do Chefe do Executivo. De ordem material, porque contraria expressamente o limite mínimo para a aposentadoria compulsória (70 anos).
Nos termos da atual redação do art. 40 da CF, a lei, desde que respeitada a inciativa privativa, poderia estabelecer para os policiais qualquer idade entre 70 e 75 anos, mas não inferior ou superior a esses limites.
Ao fixar, porém, um limite maior que 70 anos, ela precisa estar lastreada em critério de razoabilidade.
Se, no regime constitucional anterior a 1988, a lei complementar de iniciativa do Presidente da República, poderia, nos termos do art. 103 da EC nº 1, de 1969, dispor sobre exceções à regra da aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade prevista no art. 101, II, com a Carta de 1988 deixou de existir essa permissão. Mas a razão que levou naquele regime constitucional à fixação de idade inferior à regra geral permanece: a preservação do interesse público. Agentes da segurança pública, em regra, estão sujeitos a maior desgastefísico e mental e, por isso mesmo, a Constituição lhes faculta a aposentadoria com menor tempo de contribuição. Mais sentido faria prever-se a aposentadoria compulsória em idade menor à dos demais agentes públicos.
O mesmo pode ser dito em relação a todos os demais casos em que se prevê a aposentadoria especial: pessoas com deficiência, e servidores sujeitos a condições especiais de trabalho (exposição a agentes nocivos). Se, para esses casos, o sistema constitucional pressupõe que há maior desgaste no exercício da atividade, a ponto de justificar-se a aposentadoria antecipada, seria um grave contrassenso permitir que o servidor permaneça até idades avançadas no exercício de funções sujeitas a essas condições especiais, ou quando detentor de deficiência.
Ao prever que lei complementar disporá sobre em que casos se permite a ampliação da aposentadoria compulsória para os 75 anos, a EC nº 88/2015 levou em conta esse aspecto, e a lei complementar não poderá ignorá-lo.
Assim, sem levar em consideração o que deveria, efetivamente, disciplinar, e voltada a meramente “ampliar” o limite de idade para a aposentadoria compulsória, o PLS nº 274/2015, que se acha em vias de ser apreciado pelo Plenário do Senado Federal, onde recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, mostra-se não apenas incompleto e incapaz de diferenciar as situações fáticas existentes no serviço público, como incompatível com a própria Constituição.
Dessa forma, não merece prosperar a iniciativa.
O PLS nº 274, de 2015, padece de irremediável vício de iniciativa, quanto a todas as situações que pretende regulamentar, porque esse trata de matéria de iniciativa do Poder Executivo, relativamente aos servidores públicos, do Poder Judiciário, quanto aos magistrados, e do Procurador-Geral da República, quanto aos membros do Ministério Público.
Além disso, não atende ao princípio da razoabilidade e ponderação, ignorando as distintas situações que deveria disciplinar, no âmbito do Poder Executivo, tratando, como se iguais fossem, todos os cargos públicos efetivos.
A aprovação pelo Senado Federal, no dia 1º de julho de 2015, dessa proposição, demonstra, sobretudo, que mesmo em casos em que é evidente a inconstitucionalidade e inadequação das propostas, o açodamento e a intenção de agilizar a produção normativa impedem que questões elementares sejam observadas, comprometendo ainda mais a credibilidade do processo legislativo. Mais uma vez, é de se recordar a velha frase de John Godfrey Saxe, frequentemente atribuída ao Chanceler de Ferro, Otto von Bismarck: leis, como salsichas, deixarão de inspirar respeito na proporção em que sabemos como elas são feitas.
Em 1º de julho de 2015
* Luiz Alberto dos Santos é consultor legislativo do Senado Federal. Advogado. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais. Professor da EBAPE/FGV. Ex-Subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil – PR (2003-2014).
[1] DOS SANTOS, Luiz Alberto. A Emenda Constitucional nº 88: bengalas, casuísmos, mérito e renovação no serviço público. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/outros-destaques/a-emenda-constitucional-n%C2%BA-88-bengalas-casuismos-merito-e-renovacao-no-servico-publico/
[2] Nesse sentido, ver ADI 2113, Rel. Min. Cármen Lúcia, 04.03.2009; ADI 3.627 – AMAPÁ, Rel. Min. Teori Zavascki, 06.11.2014.
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