Em tempos de paz, os filhos enterram seus pais. Em tempos de guerra, são os pais os que enterram seus filhos
Herodotus, escritor grego, dito o pai da historiografia
Uma paz injusta é melhor que uma guerra justa
Marcus Tullius Cicero, o mais célebre dos tribunos romanos
Em minha última coluna (Se uis pacem…) ofereci, como exemplos de países que tinham conseguido acabar com o militarismo, alguns pequenos estados que mantêm a democracia mais estável e a melhor qualidade de vida na América Latina. Em outros estados de nosso continente, riquezas naturais e financeiras convivem com índices de miséria que oscilam entre 40 e 70%.
O caso do Haiti, que há pouco aboliu o exército, não é uma refutação a meu argumento, pois o país sempre esteve dominado pelo caos, e a dissolução das Forças Armadas não foi completa. Aliás, os brutais exércitos nacionais foram substituídos por uma força ainda mais poderosa, a Minustah, invasores fantasiados de “pacificadores”.
Isso não significa que todas as missões de paz tenham o mesmo intuito de esmagar os povos “pacificados”. Porém, quando o objetivo é nobre, é aí que as autoridades militares boicotam sua ação. Durante o hipergenocídio de Ruanda de 1994, verdadeiras forças de paz poderiam ter salvado 900 mil vidas, mas foi exatamente então que os países militaristas recusaram apoio. O chefe da missão e defensor dos direitos humanos, Roméo Dallaire, em seu livro Shake Hands with the Devil, mostra a angústia de não ter podido parar o massacre, o que o levou a várias tentativas de suicídio. Então, embora existam militares bem intencionados, seu número é ínfimo e não conseguem apoio quando se colocam algum objetivo humanitário.
Argumentos Velhos
As premissas de meu artigo anterior não têm nada de novo. Mentes lúcidas e personalidades civilizadas de todos os tempos se manifestaram contra a barbárie militarista, inclusive na Roma antiga, onde era perigoso desafiar o poder castrense.
Entretanto, é imprescindível desenterrar o tema, porque décadas de fascismo ofuscaram essas razões de senso comum, e porque a crise da esquerda “oficial” induziu uma parte da militância a incorporar as doutrinas da direita, para sentir-se representados mesmo por seus antigos inimigos, aos que idealizam como um imaginário “exército democrático”.
As duas epígrafes deste artigo, escritas há mais de 2000 anos, permitem entender que as mentalidades lúcidas e as pessoas sensíveis de épocas diversas já sentiam à flor de pele os estragos do militarismo, mesmo que eles não estivessem entre as vítimas. Embora devessem passar mais de 18 séculos para que se consolidassem as percepções sobre os direitos humanos, o militarismo, como a síntese suprema de sua violação (invasão, genocídio, morte, tortura, estupro, devastação, tudo junto numa mesma ação) já era percebido como inimigo da felicidade humana desde tempos remotos.
Tamanho e Relevância
Eu enfatizei que os países que aboliram o exército são pequenos, como Groelândia e Lichtenstein, e isto pode-se entender por causa das complicadas relações militares num país maior. Entretanto, países sem passado imperialista e com baixa tradição de conflito poderiam desmilitarizar-se lentamente. É ridículo pensar que a relevância de um país depende de sua capacidade de destruição e ameaça. Se assim fosse, o Afeganistão seria um país muito mais importante do que a Suécia.
O desarme poderia ser tentado também em países que passaram sérios conflitos, de que as Forças Armadas foram responsáveis. Este poderia ter sido (mas não foi) o caso da Argentina em 1984, quando um de cada dez habitantes tinha um amigo ou parente desaparecido e, além disso, os militares estavam desmoralizados por ter perdido uma guerra que todos acreditavam ganhar. Mas a cumplicidade ou o medo (ou ambos) dos políticos foram tão paralisantes, que jamais pessoa alguma levantou a possibilidade de uma dissolução das Forças Armadas. Como consequência disso, ainda hoje, militares e policiais sequestram ex-ativistas que poderiam servir de testemunhas em ações contra os carrascos dos anos 70.
O Caso da Suíça
Houve, porém, propostas de dissolução das Forças Armadas que estiveram próximas ao sucesso em países de meio porte, como a Suíça. (Vide)
Em 1986, a iniciativa Por uma Suíça sem Exércitos conseguiu 111.300 assinaturas, sendo 100 mil as necessárias para propor uma votação.
Em 26/11/1989, a primeira votação deu 35,6% em favor da iniciativa. A proporção é grande se pensamos na pressão da Otan e dos mercadores de armas, e da propaganda dos Estados Unidos e seus principais aliados. Ainda que a iniciativa fosse vencida, o surpreendente resultado aumentou a influência do setor civilizado da sociedade e reduziu poderes militares.
Em abril de 1992, o grupo pacifista juntou 503.719 assinaturas, num período de tempo de organização que não passava, no total, de 32 dias. O fato é absolutamente original na história planetária. Mas, a iniciativa foi derrotada por 57 a 43%, um resultado muito melhor que o anterior.
Em 10/06/2001, numa nova votação, a dissolução das Forças Armadas não foi colocada, mas sim se revisou a legislação para impedir, entre outros excessos, o uso das Forças Armadas suíças em ações fora do país. Essa posição ganhou por 51% e estimulou os suíços a pensar que, na próxima votação, a dissolução do exército seria aprovada.
Os ataques de 11 de setembro em Nova York, carente de qualquer nexo com a Suíça (que, aliás, é um país neutro), serviram de pretexto à propaganda da Otan para reviver a suposta necessidade de militares. O pânico da população e o brain-polluting (quem disse “washing”?) fez fracassar esta iniciativa.
Entretanto, o avanço foi importante, já que nunca um país central com enorme influência europeia tinha estado tão perto de dissolver as Forças Armadas. A esperança de que em algumas décadas se consiga a destruição dos exércitos de países com tradição pacifista (Suécia, Noruega, Dinamarca), pode influir posteriormente em ações maiores… Isso, é claro, se o mundo ainda existir.
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