José Rodrigues Filho*
A terceirização tornou-se uma prática comum para muitos governantes, principalmente no campo das Tecnologias de Informação e Comunicações (TICs). Nos países pobres e em desenvolvimento, o setor público se torna cada vez mais dependente das grandes corporações do setor privado, através da terceirização. Neste caso, os elevados índices de terceirização impedem o desenvolvimento da capacidade do Estado, resultando ainda numa relação desigual entre corporações poderosas de tecnologias de informação/consultorias e governos menos poderosos e menos competentes. Não há dúvidas sobre o potencial das TICs para ampliar a democracia e sobre os benefícios da terceirização, mas é preciso que haja um equilíbrio para se evitar uma dependência danosa de fornecedores privados.
No Brasil, se percebe claramente a falta de conhecimento e capacidade necessários, no âmbito do governo, para identificar tecnologias apropriadas. Os baixos salários no setor público, com exceção dos recebidos por uma casta privilegiada, dificilmente atraem profissionais competentes para monitorar o desempenho destas tecnologias. Desta feita, muitas vezes as tecnologias de informação são jogadas nas costas dos servidores públicos, sem que o treinamento adequado tenha sido proporcionado. Bilhões de dólares são gastos nas TICs, mas são desconhecidos os gastos com a capacitação dos servidores públicos. Com isso, eles são obrigados a se adaptarem as necessidades da tecnologia e não a tecnologia ser adaptada às necessidades deles.
Neste texto e no próximo, uma tentativa será feita para alertar o quanto o governo brasileiro está dependente de grandes empresas de tecnologia de informação, ao adquirir ou terceirizar tecnologias, muitas vezes suspeitas e não devidamente testadas no mundo desenvolvido, a exemplo do nosso sistema de voto eletrônico. Isso vem se dando diante das tentativas de se utilizar as tecnologias de comércio eletrônico no âmbito do governo, sem considerar a distinção entre o que é público e o que é privado.
Com isso, a democracia está sendo posta em risco, sobretudo quando se trata de eleições, que no Brasil e alguns países são terceirizadas e privatizadas. A Justiça Eleitoral não tem a propriedade do sistema de voto eletrônico nem o controle do processo eleitoral. As urnas eletrônicas têm sido adquiridas de uma única corporação, que tem comemorado o volume de vendas feitas à Justiça Eleitoral como sendo o maior de sua história, em mais de 100 anos de existência. O processo eleitoral é realizado de tal forma que tira do eleitor o poder de fiscalizar o seu próprio voto, já que ele é transformado em mercadoria. Nesse processo, o eleitor se torna um alienado incompetente, quando nem ele nem o governo conhecem o processo tecnológico a que estão sendo submetidos.
O mercado de urnas eletrônicas no Brasil é basicamente monopolista, com a presença de um único fornecedor. Sabe-se que o monopólio é danoso para a sociedade, diante da dependência criada e de práticas abusivas. Quando o governo da Holanda sentiu que seu país não tinha o conhecimento nem a capacidade para lidar com o sistema de voto eletrônico daquele país, bastante similar ao nosso, simplesmente aboliu a sua utilização, depois de quase 20 anos de experiência. Num mercado monopolista, o governo holandês começou a sofrer, segundo a literatura, um processo de chantagem e práticas abusivas por parte de seu fornecedor de urnas eletrônicas.
Portanto, é mais do que necessário se conhecer a utilização do sistema de voto eletrônico no Brasil, considerando as suas características básicas, a saber:
a) Manutenção de um mercado monopolista, envolvendo milhões de dólares;
b) Manutenção da idéia de Segurança pela Obscuridade, tão condenada pelos técnicos brasileiros e internacionais;
c) Retirada do poder de controle do voto pelo eleitor, o qual é deslocado para beneficiar terceiros, através da privatização ou terceirização das eleições, e para reforçar o poder e prestígio da Justiça Eleitoral.
O conceito de Segurança por Obscuridade relacionado com urnas eletrônicas já foi devidamente detonado. Primeiramente, quando um magistrado nos Estados Unidos pediu que cientistas da computação da Universidade de Princeton apontassem as vulnerabilidades de urnas eletrônicas. Depois, na Holanda, o governo se negou a fornecer as urnas eletrônicas para serem testadas, alegando que tais artefatos não eram de sua propriedade. Talvez esse seja o caso no Brasil, quando a Justiça Eleitoral não tem demonstrado interesse em submetê-las ao teste de uma comunidade científica independente, mesmo pagando caríssimo por cada urna eletrônica.
O processo eleitoral, diante de sua natureza democrática, não pode ser privatizado ou terceirizado. Se isto acontecer, o mais sagrado processo de qualquer democracia, que diz respeito à contagem de votos, é retirado do poder dos eleitores. Neste caso, a Justiça Eleitoral abandonou uma de suas competências principais que é de regulamentar e administrar as eleições, de forma aberta e transparente, repassando para o mercado a contagem de votos, em nome da conveniência, do progresso e da eficiência.
O parlamento brasileiro não poderá deixar de encarar estas questões numa reforma política, que não pode ficar restrita apenas a uma reforma eleitoral. Segundo a imprensa, alguns parlamentares tem sido favoráveis inclusive à extinção da Justiça Eleitoral. No próximo texto, avançaremos na discussão dessas questões, considerando que tanto a desorganização de eleições quanto a existência de fraudes e corrupções durante a realização delas são tão antigas quanto a democracia.
*José Rodrigues Filho é professor da Universidade Federal da Paraíba. Foi pesquisador nas Universidades de Johns Hopkins e Harvard
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