Na coluna da semana passada, procurei argumentar que o maior problema do sistema político brasileiro não está relacionado à falta de governabilidade, mas sim a um déficit de representatividade e ao insuficiente grau de “accountability” dos políticos para com os eleitores. Na minha avaliação, as principais distorções existentes são:
1) o voto obrigatório: todos os brasileiros entre 18 e 70 anos precisam comparecer às sessões de votação nos dias de eleição. O comparecimento compulsório às urnas cria uma espécie de “reserva de mercado” para os políticos. Eles passam a ter menos incentivos para mobilizar politicamente os eleitores com base em propostas concretas de representação de seus interesses. E os eleitores também têm menos incentivos para fazer uma escolha bem informada.
2) a desproporcionalidade nas bancadas estaduais na Câmara: o texto constitucional estabelece que o número de deputados federais eleitos em cada estado deve ser proporcional ao tamanho de sua população. Mas também prevê que nenhum estado pode eleger menos do que 8 ou mais do que 70 deputados. Na prática, essa segunda regra viola o princípio democrático básico do “um homem, um voto”. A distorção faz com que o voto dos eleitores dos menores estados tenha um peso maior que o dos maiores. A Câmara sai perdendo em representatividade, pois cerca de 10% dos deputados estão sendo eleitos pelos estados “errados”.
3) as coligações partidárias nas eleições proporcionais: a possibilidade de que os partidos formem coligações para as eleições de deputados e vereadores é uma das principais causas da elevadíssima fragmentação partidária brasileira. No Brasil, o número de partidos representados no Congresso tem sido sistematicamente próximo a 20. Os quatro maiores partidos (PT, PMDB, PSDB e DEM) não respondem nem por 60% do número total de parlamentares. O mecanismo das coligações explica porque tantos pequenos partidos conseguem eleger uma bancada parlamentar desproporcional ao número de votos que obtiveram nas eleições. Quase a metade dos partidos representados na Câmara deve a eleição de seus deputados exclusivamente à permissão das coligações.
4) a elevada magnitude dos distritos eleitorais: nas eleições para a Câmara, os distritos eleitorais coincidem com os próprios estados da federação. Distritos eleitorais de menor magnitude territorial e populacional favorecem a aproximação entre eleitores e eleitos, e aumentam o grau de “accountability” dos representantes. No Brasil, os deputados não estão necessariamente vinculados a comunidades locais específicas, pois podem receber votos e fazer campanha em toda a extensão dos seus respectivos estados. Por seu turno, os eleitores também têm muita dificuldade em identificar quem é o seu representante no Legislativo, e tendem a esquecer rapidamente em quem votaram nas eleições passadas. A elevada magnitude dos distritos eleitorais (cada estado elege entre 8 e 70 deputados) também é um dos principais fatores que favorece a fragmentação partidária na Câmara.
5) a propaganda eleitoral e partidária gratuita: a legislação em vigor garante o acesso gratuito dos partidos políticos à propaganda na televisão e no rádio, em rede nacional e estadual, tanto durante as campanhas eleitorais (para pedir votos aos eleitores) como também nos anos não-eleitorais (para divulgar as propostas dos partidos). Assim como no caso do voto obrigatório, o horário político funciona como uma “reserva de mercado” para a classe política. Desobrigados de buscar o apoio financeiro de indivíduos e de empresas para comprar espaço publicitário na programação das emissoras, os candidatos e os partidos têm menos incentivos para representar os interesses reais de seus eleitores.
Com base nesse diagnóstico, as minhas propostas de reforma política estão a meio caminho entre a agenda maximalista dos que a consideram como “a mãe de todas as reformas” e a agenda minimalista dos que entendem não ser necessária reforma alguma das instituições políticas do país. As propostas obedecem a duas diretrizes principais: a) aumentar o grau de representatividade do sistema político; e b) aproximar os representantes eleitos dos interesses reais dos eleitores.
Na prática, a primeira diretriz se traduz pela meta de eliminar das regras eleitorais em vigor aqueles dispositivos que estão em visível contradição com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade entre os eleitores. Este subconjunto de propostas engloba:
1) a eliminação ou redução da desproporcionalidade das bancadas dos estados na Câmara: num primeiro cenário, deveria ser simplesmente retirado do texto constitucional o dispositivo que prevê um piso de 8 e um teto de 70 deputados federais por estado. O novo limite inferior passaria a ser de 1 deputado por estado, e não haveria mais um limite superior. Os votos dos eleitores passariam a ter rigorosamente o mesmo peso nas eleições nacionais. Num segundo cenário, talvez politicamente mais viável, os atuais limites inferior e posterior seriam alterados para, pelo menos, reduzir significativamente o grau de distorção. Os novos piso e teto poderiam ser algo como 4 e 90 deputados, respectivamente.
2) a proibição de coligações partidárias nas eleições legislativas: o número de deputados federais, deputados estaduais e vereadores eleitos por cada partido passaria a depender exclusivamente dos votos obtidos pelas próprias siglas nas eleições. A correlação de forças entre os partidos nos diferentes órgãos legislativos passaria a refletir muito mais acuradamente a distribuição das preferências eleitorais. As pequenas legendas que só conseguem chegar à Câmara dos Deputados por intermédio dos votos dados a partidos e candidatos alheios perderiam esse privilégio.
Um outro subconjunto de propostas pode ser formulado a partir da segunda diretriz acima. Essa idéia de aproximar representantes e representados não se confunde com as práticas populistas e plebiscitárias atualmente em voga na América Latina. A meta se restringe a buscar aumentar o grau de “accountability” das instituições. As propostas seriam:
3) redução da magnitude dos distritos eleitorais: não há nenhuma razão pela qual os distritos eleitorais para a Câmara precisem coincidir com os estados da federação. Um estado que teoricamente elege 15 deputados federais poderia perfeitamente ser subdividido em 3 distritos elegendo 5 deputados cada um (ou em 5 distritos de 3 deputados cada). A adoção de distritos menores que os atuais teria três grandes vantagens. Por um lado, ela reduziria a distância entre os eleitores e os seus representantes, tornando os últimos mais responsivos aos interesses dos primeiros. Por outro lado, a distritalização garantiria que os eleitores de todas as regiões do país sempre teriam o seu assegurado representante na Câmara. Finalmente, a substituição dos atuais macro-distritos por micro-distritos também reduziria a fragmentação partidária, pois os pequenos partidos teriam mais dificuldades para eleger seus candidatos em distritos de menor magnitude.
4) extinção ou redução da propaganda partidária e eleitoral gratuita: o horário político funciona como uma reserva de mercado para os partidos e candidatos. O acesso gratuito aos meios de comunicação dispensa os políticos e os partidos da necessidade de encontrar apoio financeiro na sociedade para divulgar seus programas e para promover suas campanhas eleitorais. O acesso dos partidos e candidatos à televisão e ao rádio através de mecanismos de mercado garantiria a existência de laços mais fortes e mais permanentes entre os eleitores e a classe política. Candidatos e partidos com propostas incapazes de, por qualquer motivo, obter patrocínio voluntário da sociedade teriam o seu espaço de divulgação nos meios de comunicação seriamente comprometido.
5) introdução do voto facultativo nas eleições: se os eleitores tivessem a opção de simplesmente ficar em casa no dia das eleições sem sofrer represálias do estado, os políticos e partidos passariam a ter muito mais incentivos do que hoje para vocalizar os interesses reais da sociedade, assumindo discursos políticos mais responsáveis do ponto de vista do eleitor mediano. Apenas o alistamento eleitoral poderia continuar sendo obrigatório, mas o voto não. A adoção do voto facultativo certamente aumentaria a abstenção eleitoral, mas reduziria o número de votos nulos e em branco.
Realisticamente, preciso reconhecer que a quase totalidade dessa minha agenda pessoal para a reforma política está completamente fora da pauta de discussões no Congresso. Apenas a proibição das coligações parece ter alguma chance de ser aprovada nos próximos anos. A estabilidade observada em nossas regras eleitorais e partidárias nas últimas décadas preservou – e deve continuar preservando – tanto as virtudes como as distorções das nossas instituições políticas.
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