Rudolfo Lago *
Qualquer hora dessas, baixa a Regina Duarte no programa de Lula. Ainda que sem ela, o presidente candidato tem sido bem mais eficiente em conferir ganho eleitoral à tática do pânico. O que esta coluna procurará fazer é avaliar o que existe de racional – já que é com a cabeça que se deve votar – no discurso petista
Os petistas históricos certamente vão odiar ler este adjetivo atribuído a eles. Mas, na acepção mais literal da palavra, quem está sendo conservador nesta campanha é o presidente Lula, na sua tentativa de reeleição no segundo turno.
Antes que me atirem estrelas vermelhas, volto a repetir: é conservador na acepção literal do termo. Pelo discurso do medo, de que existe um risco de que Geraldo Alckmin não dê prosseguimento às políticas sociais do atual governo e dê cabo do que ainda resta de patrimônio público, Lula conclama os cidadãos a lutarem para conservar o que teriam conquistado no seu governo. Diante de um eventual – a se acreditar no discurso – risco de retrocesso. A tática tem tido sucesso, mas é curioso se atribuir o termo conservador a um governo e a um partido ditos de esquerda.
O PT no poder trabalha com uma lógica interessante: a de que o que torna um governo ético não é o uso de armas e ferramentas questionáveis, mas o perfil de quem as empunha. Se a pessoa conta com um passado democrático, de luta contra desmandos e autoritarismos, se revela em atos ou discursos preocupações sociais, pode comprar deputados, distribuir verbas orçamentárias, posar para fotos com Paulo Maluf, pisar no pescoço da mãe etc. É a lógica do "eu faço, mas todo mundo faz também", que se soma a… "o que nos diferencia é o que pretendemos fazer no país com o poder que temos".
É a tal história de que "não se pode fazer política sem botar as mãos na merda". Eis aí um triste presente que a atual era política deixará para a história. Acabou a fase romântica. A época em que se dividia a política entre mocinhos e bandidos. Que não se reclame depois que o eleitor tornou-se cínico, egoísta, individualista, nas razões do seu voto. E que não se veja mais com tanta freqüência tropas de militantes alegres e entusiasmados defendendo as suas convicções pelas ruas.
É nessa linha que Lula reciclou o discurso do medo que tanto usaram contra ele. Não seria de se espantar se Regina Duarte aparecesse agora em seu programa dizendo: "Eu tenho medo". Os aliados de Lula já não disfarçam. É explícita a tática de colar em Alckmin o risco de volta da privatização, de extinção dos programas sociais e de retorno da recessão. E ela tem conferido ótimos resultados. Mas o discurso do medo tem sentido? Tem. Mas o risco existe na intensidade que tem sido propagado? Não exatamente.
Como qualquer propaganda, o reclame político dos marqueteiros pauta-se pela emoção. É complicado demais tentar fazer alguém adquirir um produto convencido pela razão. Como este site é jornalístico, vamos tentar aqui avaliar o que há de razão por trás do propalado risco Alckmin. Porque é com a cabeça que se votará no dia 29 de outubro. Quem conseguir avaliar mais friamente o risco da mudança ou o eventual prejuízo da continuidade é que escolherá melhor daqui a alguns dias.
Primeiro, os programas sociais. Há, de fato, uma diferença na forma como Lula e Alckmin abordariam esses programas. Lula adota um projeto centralizado, de iniciativa do governo federal, que destina recursos do orçamento para os programas. Alckmin buscaria formar mais parcerias com a iniciativa privada, especialmente em programas de formação de mão-de-obra e estágios profissionalizantes.
Uma ação compartilhada, como Alckmin preferiria, pressupõe uma grande eficiência na gestão dos programas e um bom discurso para estimular a adesão dos parceiros privados. A participação mais forte do Estado, nos moldes do governo Lula, pode garantir uma ação mais rápida e efetiva. O próprio Lula buscou, no início do governo, essa forma de parceria com a iniciativa privada no programa Fome Zero, e obteve uma resposta admirável da sociedade. Mas o programa perdeu-se na gestão de tal modo que o ex-ministro responsável, José Graziano, num determinado momento, teve de pedir que parassem de doar porque ele não tinha ainda o que fazer com os recursos. Na sua primeira reforma ministerial, Lula mudou tudo e partiu para o modelo menos revolucionário e assistencialista do Bolsa Família.
Agora, é difícil que Alckmin simplesmente extermine o Bolsa-Família. Primeiro, porque o modelo assistencialista não é invenção da esquerda. Ao contrário, por muito tempo ganhou dos esquerdistas a pecha de clientelista, justamente porque amarrava politicamente o beneficiário, que passava a votar nos detentores do poder com medo de perder o que ganhava. Segundo, porque o valor eleitoral desse universo de 40 milhões de pessoas que recebe os benefícios da bolsa é inegável, e ninguém de juízo jogaria isso fora. E, terceiro, porque esses programas – ou a maioria deles – já existiam no governo anterior, ainda que de forma descentralizada (mesmo que nunca venha a reconhecer isso publicamente, ninguém da turma de Alckmin discute que a unificação do cadastro feita no atual governo melhorou a eficiência dos programas).
Quanto à questão das privatizações, o medo incutido pela campanha de Lula só poderia colar no cidadão se ele tivesse alguma razão de ser. A idéia do Estado mínimo é a base do pensamento liberal, e os liberais, de fato, estão com Alckmin. Mas o que não tem sido dito é que a idéia da privatização demarcou praticamente todos os governos – e não só no Brasil – na década de 1990. E, no caso específico brasileiro, porque o viés nacionalista da ditadura militar realmente exagerou na intensidade da intervenção do Estado. Entre um Estado inchado e um Estado desidratado, havia de fato muito para cortar.
Outra coisa que também não se diz é que mesmo petistas em algumas de suas administrações privatizaram empresas. Um exemplo: Antonio Palocci em Ribeirão Preto. Ele foi criticado pela turma mais de esquerda, mas não consta que entre eles tenha estado o presidente Lula ou alguém da cúpula do PT. Pelo contrário, Palocci tornou-se o coordenador da campanha de Lula em 2002 e o condutor da sua política econômica. E não caiu do Ministério da Fazenda por suas idéias privatistas. Pelo contrário: tombou quando se valeu de uma prerrogativa do seu poder para obter uma informação privada sobre um cidadão num banco do Estado.
Quanto a Alckmin, é improvável que ele ou qualquer outro liberal de uma eventual equipe sua de governo não perceba o poder estratégico das estatais que restaram. A força de uma Petrobras, de um Banco do Brasil ou de uma Empresa de Correios e Telégrafos. Pelo menos por enquanto – e, provavelmente, por muito tempo – essas empresas deverão se manter nas mãos do Estado, pela ferramenta de poder que são e representam.
Recessão? A atual equipe de Lula é menos conservadora do ponto de vista econômico do que era quando quem estava no comando era Palocci. Ensaia aumentar investimentos e retomar o rumo do crescimento. Mas que ninguém se engane: fará isso com parcimônia. O remédio para controlar a inflação continua o mesmo, e ele ainda pressupõe doses de juros altos a qualquer risco de febre do paciente. Quanto a Alckmin, é preciso se saber até onde o tal "choque de gestão" que ele propõe seria eficiente e se um corte drástico nos gastos da máquina do Estado não poderia levar ao risco de pará-la.
Eis aí alguns elementos do que existe de fato por trás do discurso do medo. Se assustam ou não, decidirá o eleitor daqui a duas semanas.
* Jornalista há 20 anos, Rudolfo Lago, Prêmio Esso de Reportagem em 2000, foi repórter político de algumas das principais redações de Brasília. Hoje, é editor especial da revista IstoÉ e produz o site http://www.rudolfolago.com.br/.
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