Por Bia Barbosa e Jonas Valente*
Nas últimas semanas, pipocaram notícias sobre as mais diversas iniciativas do poder público para “combater a ameaça das fake news”.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acaba de criar um Conselho Consultivo com a missão de elaborar uma resolução sobre o tema para as eleições de 2018, que, pasmem, conta com a participação do Exército e da Abin (a Agência Brasileira de Inteligência, que tem se especializado em tratar movimentos populares e ativistas como inimigos internos a serem combatidos). O fato foi criticado em nota da Coalizão Direitos na Rede.
Na terça-feira 12, o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional organizou um seminário sobre o tema. No Parlamento, tramitam vários projetos de lei com esta pauta. Dois deles (PL 6812/17 e 7604/17), ambos de autoria do deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), pretendem tornar crime a prática de divulgar ou compartilhar “informação falsa ou prejudicialmente incompleta em detrimento de pessoa física ou jurídica”, multando em 50 milhões de reais por post as plataformas que não apagarem este tipo de publicação de seus usuários em até 24 horas.
Em seminário realizado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no último dia 6 de dezembro, o presidente do Conselho de Comunicação Social, Murilo de Aragão, afirmou que a aprovação de uma lei sobre o tema também deve ocorrer no Senado, uma vez que essa diretriz foi apontada pelo presidente da casa, Eunício Oliveira (PMDB-CE).
Os defensores de soluções legais parecem não entender o recado dado pelo veto à emenda do deputado Áureo (SD-RJ) que, na “minirreforma eleitoral”, aprovada em outubro deste ano, tentou impor conduta equivalente. Tampouco têm consciência de que, na maior parte das vezes, o cidadão comum sequer tem informações ou estrutura para verificar a veracidade de um conteúdo que circula pela internet.
Para escapar de qualquer regulação, as plataformas digitais têm desenvolvido iniciativas e parcerias para checagem de fatos e “classificação” do que é verdade ou não na internet. Recentemente, o Facebook admitiu que alterou seus algoritmos para derrubar páginas que veiculam conteúdos considerados, por eles, falsos ou “caça-cliques”.
Por meio de sua política de remuneração por anúncios, o Google também tem desestimulado a monetização de notícias falsas. Milhares de contas nas redes sociais têm sido suspensas. Que critérios os dois gigantes digitais têm usado para isso ninguém sabe. Falta transparência e se incorre muitas vezes em censura privada.
Enquanto isso, a mídia tradicional enxergou no fenômeno uma excelente oportunidade para tentar recuperar sua credibilidade junto à população, significativamente abalada desde que a diversidade de fontes de informação e a velocidade do contradiscurso na internet quebraram o até então monopólio da verdade detido pela chamada grande imprensa.
A mudança, claro, não aconteceu só no Brasil. Mas há que se concordar que, num país marcado pela brutal concentração dos meios de comunicação, sempre foi muito mais fácil manipular a população sem ser questionado.
Assim, as chamadas fake news viraram um excelente argumento para os donos da mídia voltarem a dizer: “a verdade está aqui”, numa tentativa de ressignificação de um papel que, convenhamos, nossa imprensa cumpre muito mal.
Se as chamadas fake news recentemente influenciaram ou até mudaram resultados eleitorais na Europa ou nos Estados Unidos, o que dizer da atuação da mídia brasileira em tantos processos políticos no país? E se você souber que um dos mais clássicos casos de fake news no Brasil – o do desafio da Baleia Azul – foi aqui distribuído para as massas não pelas redes sociais, mas pela segunda maior emissora de televisão?
Ou seja, o buraco é muito mais embaixo e está longe de se restringir à internet. Não se trata, obviamente, de minimizar os impactos e o real problema das notícias falsas. Mas qualquer resposta apressada a este fenômeno, cuja manifestação no Brasil ainda precisamos compreender melhor, é temerária. A começar se olharmos para este problema com lentes europeias ou norte-americanas.
Possíveis caminhos
As respostas ao fenômeno das chamadas notícias falsas não são fáceis. E pensá-las implica exatamente não cair nem no jogo fácil da criminalização, nem na desresponsabilização das plataformas e muito menos em uma visão romantizada da mídia tradicional.
Um primeiro desafio é dar um tratamento ao mesmo tempo amplo e não uniforme a diversas formas de desinformação, que podem ir desde notícias sem qualquer base factual criadas intencionalmente para enganar (seja por motivos políticos ou econômicos) até informações descontextualizadas ou desbalanceadas. A identificação da falsidade no primeiro caso difere dos demais.
Alguns bons caminhos estão no documento intitulado “Declaração sobre a Liberdade de Expressão e Notícias Falsas, Desinformação e Propaganda”, publicado em março de 2017 pelos relatores especiais para a Liberdade de Expressão da ONU, OEA (Organização dos Estados Americanos), OSCE (Organização pela Segurança e Cooperação na Europa) e CADHP (Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos).
De acordo com o texto, “qualquer proibição de se difundir informações baseadas em ideias vagas e ambíguas, incluindo a proibição de se difundir ‘notícias falsas’ ou ‘informações não objetivas’, são incompatíveis com as normas internacionais em matéria de restrições à liberdade de expressão” e devem ser abolidas.
Algo que pode ser considerado por uns como uma notícia falsa ou incompleta pode ser simplesmente uma divergência de opinião ou de ponto de vista. O fenômeno das fake news não pode, de maneira nenhuma, justificar sufocar opiniões diferentes. Dito de outra forma, a agenda do combate a essa prática não pode ser um subterfúgio para censurar determinados pontos de vista.
Se as respostas não são tão claras, por outro lado é nítido que um tratamento calcado nessa perspectiva não é compatível com a presença do Exército e da Agência Brasileira de Inteligência no monitoramento de conteúdos produzidos e disseminados pelos cidadãos brasileiros. A adoção de medidas legais também não parece ser o melhor caminho. Muito menos nas linhas já propostas na Câmara dos Deputados, como afirmado acima.
Mídias online (e não as redes sociais) devem, sim, ser responsabilizadas pela veiculação de notícias comprovadamente falsas. Mas cabe ao Judiciário – como já ocorre atualmente – definir sobre os casos questionados.
Decisões tomadas a posteriori por juízes (e não pelas plataformas) permitem o contraditório e a ampla defesa em juízo, respeitando os padrões internacionais de exercício da liberdade de expressão. Medidas como a garantia de direitos de resposta na web são, neste sentido, um caminho a ser seguido. Contudo, um dos desafios é pensar a proporcionalidade das sanções e da resposta neste ambiente de ampla e rápida difusão deste tipo de informação.
Isso não significa desresponsabilizar as plataformas, mas apenas dizer que elas não devem ter o poder de definir o que é falso ou não. Ao contrário, conforme documento dos relatores para a liberdade de expressão citado anteriormente, intermediários devem adotar uma série de medidas e políticas claras e pré-determinadas de regulação do conteúdo em suas plataformas.
Essas devem ser baseadas em critérios objetivamente justificáveis, facilmente acessíveis e compreensíveis, que não respondam a interesses políticos, e serem adotadas após consulta dos seus utilizadores.
Um exemplo são as diretrizes sobre transparência em anúncios divulgados pelo Facebook, mas que só serão testadas no Canadá. Essas regras devem ser implantadas no Brasil e é possível ir além, pensando em procedimentos de transparência que facilitem ao leitor identificar a fonte, a data e a procedência de uma informação, sem que a própria plataforma derrube ou dificulte a circulação de conteúdos com critérios pouco democráticos ou desconhecidos. O Brasil poderia ser pioneiro na implantação dessas medidas no processo eleitoral de 2018.
As chamadas “notícias falsas” devem ser rebatidas com mais – e não menos – informação. Em sociedades democráticas, é o confronto de ideias e a existência de debates abertos e plurais que podem combater as fake news.
É por isso que, em sua declaração conjunta, os relatores da ONU e OEA para liberdade de expressão afirmam que os Estados – incluído o poder Legislativo – têm a obrigação de promover um ambiente de comunicação livre, independente e diverso, o que inclui a promoção da diversidade nos meios de comunicação e também a existência de meios de comunicação pública fortes, independentes e dotados de recursos adequados. Ou seja, a proibição das chamadas “notícias falsas” não é a maneira adequada para lidar com seus efeitos.
Ao mesmo tempo, esse ambiente livre e diverso implica também uma regulação adequada no campo da internet. Isso passa pela preservação do Marco Civil da Internet, mas também pela aprovação de outras garantias, como uma lei de proteção de dados pessoais que assegure ao usuário o controle sobre suas informações e não viabilize a coleta e o tratamento indiscriminado, insumo fundamental para a personalização usada em fake news difundidas organicamente, mas especialmente de maneira paga ou “impulsionada”.
Por fim, políticas públicas de educação para a mídia e a promoção de práticas de empoderamento digital são fundamentais de serem colocadas em curso. Por isso, ONU, OEA, OSCE e CADHP defendem “o desenvolvimento de iniciativas participativas e transparentes para uma melhor compreensão do impacto da desinformação e da propaganda na democracia, na liberdade de expressão, no jornalismo e no espaço cívico”.
*Bia Barbosa e Jonas Valente são jornalistas e integrantes do coletivo Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede.
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