Céline é uma freira de origem irlandesa. Uma boa amiga que faz um belíssimo trabalho junto a uma comunidade de catadores de lixo em Campina Grande, na Paraíba. Há alguns dias, Céline perguntou a uma moça que mora na comunidade na qual ela atua em quem essa pessoa iria votar para presidente. Seguiu-se o diálogo abaixo:
– Vou votar no Serra.
– Ué, mas você sempre me disse que gostava do presidente Lula?
– Ah, eu adoro o Lula!
– Então, por que você não vai votar na candidata dele?
– Ah, eu gostava daquela outra mulher que ajudava muito ele no governo. Mas ela ficou doente, né? Aí, trocaram por essa outra. Essa outra, eu não gosto, não.
Perceberam? A mulher, naquela comunidade carente da Paraíba, julgou que aquela Dilma ministra era uma pessoa diferente da atual Dilma, candidata à Presidência. Estamos falando de alguém que não acompanha diariamente o noticiário. Que se informa de maneira esparsa. Que soube um dia da existência da principal auxiliar de Lula no governo, que ouviu falar depois que essa mesma pessoa teve uma doença grave – um câncer – e que, confundindo as bolas, agora acha que a antiga, em função da saúde, saiu e foi substituída por outra. Absurda a confusão da moça? Que tal se compararmos uma foto de Dilma no tempo em que era ministra das Minas e Energia com uma foto da semana passada? Esqueça que você sabe das plásticas, da mudança de penteado e de tudo o mais que leu este ano. As fotos abaixo são da mesma pessoa ou de das pessoas diferentes?
Não tenho hoje a menor condição de saber se a confusão feita pela moça de Campina Grande é um caso isolado. Não sei se as demais pessoas com que ela convive fizeram a mesma confusão. Se há confusões semelhantes em outras cidades e outros estados. Se da central de boatos vem também alguém que alimenta a falsa ideia de que são pessoas diferentes. Se tal fato tem, enfim, impacto eleitoral ou não.
Mas a história serve de exemplo para comentar o artificialismo que tanto empobrece a atual eleição. As profundas mudanças estéticas experimentadas por Dilma – que ficam absolutamente evidentes na comparação das duas fotos acima – não foram produto da vaidade da candidata, que resolveu dar uma repaginada. Se assim fosse, ela não teria passado a vida anterior à decisão de disputar a sucessão do presidente Lula com o visual da primeira foto. São uma decisão de marketing. O atual rosto de Dilma é o resultado da embalagem que os marqueteiros criaram para o que julgam ser o produto a ser vendido ao consumidor nestas eleições.
Ou seja: precisava-se suavizar a executiva durona, com cara de sargentão, ótima para obter resultados e intimidar auxiliares, mas ruim para pedir votos. Suavizou-se a embalagem e suavizou-se também o conteúdo. Aí, vira coisa de um passado distante a mulher que pegou em armas, que viveu na clandestinidade e todas as demais raízes que formaram a sua convicção ideológica. Para conquistar conservadores, entra em ação uma mulher devota, falando em Deus e puxando rezas. Se não acontece literalmente, como pensa a moça de Campina Grande, tal mudança certamente provoca estranhamento a muitas pessoas.
Na última sexta-feira, Dilma encerrou um comício em São Paulo rezando um Pai Nosso com os manifestantes. A Carta aos Brasileiros 2002, versão Lula, era um recuo econômico, para acalmar o mercado financeiro. A Carta aos Brasileiros 2010, versão Dilma, é um recuo no campo do comportamento, que condena o aborto, relativiza o combate à homofobia admitindo exceções por conta de crenças. Que aponta para um Estado submisso às pressões religiosas quando esse Estado deveria ser laico.
Por qual razão? Porque um grupo de pesquisas e impressões de marqueteiros concluiu que esses grupos religiosos, organizados, poderiam definir a eleição. Então, repagina-se o candidato, alteram-se as suas convicções, e ele passa a defender o que nunca antes defendera.
E, no caso de José Serra, algo muito semelhante acontece. Uma permissão para a aproximação de grupos conservadores, com os quais ele nunca se identificou e que em outros tempos até foram inimigos. A concessão sem limites ao que se estabeleceu que é popular, que rende votos. A troca da convicção antiga, démodé, por uma convicção novinha, da moda.
É incrível. No momento em que temos na disputa presidencial dois genuínos representantes da geração mais destemida, mais aguerrida, da luta contra a ditadura e contra o arbítrio, em vez de vislumbrar os avanços que deveriam decorrer disso, a perspectiva que temos pela frente é de que o país, no campo da moral e dos costumes, corre o risco de recuar uns cem anos. Vai ver que os marqueteiros descobriram que a onda “vintage” podia virar moda também na política…
Deixe um comentário