Não foi uma, nem duas, nem meia dúzia de vezes que tentei publicar um artigo na segunda página da Folha, na seção Tendências/Debates. Jamais consegui. Fiquei especialmente contrariado com duas recusas. O primeiro texto, “Boilesen ontem, hoje e sempre”, trata, como todo mundo está careca de saber, da Operação Oban. No segundo texto, “Setubão no forévis”, discorro sobre a morte de Olávo Setúbal, que foi banqueiro desde sempre e prefeito biônico da cidade de São Paulo, indicado por Paulo Egydio Martins num dos períodos mais turbulentos da ditadura militar (1975-79). Não me interessa, agora, divagar sobre esses textos. Vale que, no final das contas, os publiquei aqui no Congresso em Foco. Nenhuma vírgula foi censurada. Só tenho a agradecer a Sylvio Costa, editor deste site.
Pois bem, não é de hoje que me chama a atenção a presença constante de dona Maria Alice Setúbal na seção Tendências/Debates, o filé mignon da Folha de S. Paulo. Dona Maria Alice, como indica o nome, é herdeira de Olavo Setúbal, e provavelmente deve ser acionista do banco Itaú. Nos créditos de seus artigos, consta que é doutora em Psicologia e presidente dos conselhos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária da Fundação Tide Setúbal. Seus artigos são redundantes. Ela gosta de usar a palavra “transversalidade”.
Não faz muito tempo que os Setúbal se uniram aos Moreira Salles, hoje, os negócios das duas famílias se ramificam em vários segmentos “comunitários” e “culturais”, Waltinho Salles é o mais notório sintoma, digo, o mais notório representante da aliança entre os Salles e os Setúbal. Quem viu Diários de motocicleta poderia jurar que o diretor é um revolucionário que, no lugar nas armas, teria optado pelo lirismo para combater o monstro das injustiças e do capitalismo. Mas é sempre bom lembrar que tanto ele como dona Maria Alice são – antes de qualquer coisa – banqueiros.
O Instituto Moreira Salles é um exemplo impecável de cuidado com o patrimônio artístico brasileiro. Só para se ter uma pequena ideia, o acervo do IMS reúne cerca de 550 mil fotografias, 100 mil músicas, uma biblioteca com 400 mil itens e uma pinacoteca com mais de 3 mil obras. As partituras, os arranjos, os suores e piolhos, tudo de Pixinguinha, inclusive a alma, está lá. As obras de Millôr, Vinicius de Moraes, Décio de Almeida Prado, entre dezenas de músicos, artistas plásticos e escritores, constam do espólio Moreira Salles. Aqui, eu me pergunto: esse tesouro foi comprado ou doado? Caso a primeira opção seja verdadeira, seria correto dizer que as almas desses artistas – embora estejam abertas a visitação – são de propriedade dos Moreira Salles? Tudo estaria perdido se não fosse a benevolência dos Salles? O que o Estado brasileiro tem a dizer a respeito? E das calcinhas do Wando, quem é que cuida?
O império cultural dos banqueiros abarca, além do IML, digo, IMS, a folha de pagamento das mais ilustres mentes do país (estes – ainda – não morreram), e contabiliza, além da revista de ensaios Serrote, a revista Piauí, cujo editor-chefe é Joaozinho Salles, irmão de Waltinho. Às vezes, é curioso notar que a Piauí deixa escapar um certo ranço da praça Vilaboim, sobretudo na “publicidade inteligente” que vende antes das sessões de cinema, cujas salas de exibição são deles mesmos. Pois os irmãos Salles têm o domínio, digamos assim, de toda cadeia produtiva: desde os sets de filmagem até a pipoca antes, durante e depois dos Dogvilles aos quais somos pleonasticamente (e sem vaselina) incluídos. Existe – reparem – uma inércia materna (ou imanência…) que paira sobre os caixas eletrônicos e os cines-Itaú . A gente se ferra e acha que banco é cinema. Do que eu falava? Ah, sim de dona Maria Alice. Já volto à dona Maria Alice, agora vou falar um pouco da revista Piauí.
Ah, como eu queria escrever na Piauí! Uma revista que disfarça a afetação como quem não quer exatamente disfarçar a afetação que, afinal de contas, é sinônimo de qualidade e marca registrada da Pça. Villaboim, sabem aquele ricaço que não usa meia? A revista dos Moreira Salles, além de forçar uma casualidade, cultiva um humor elegante na medida exata de um aparente descompromisso com a grossura e vulgaridade das demais publicações do ramo. Como se a Piauí, enfadada por natureza, proclamasse: “vejam só que lixo é a Bravo! … mais um produto da linha de montagem da Abril, os bregas publicam Capricho e Veja, nós não: somos iguais mas somos diferentes”.
Piauí faz o tipo cínico elegante, avant-garde goiabada cascão, PT do PSDB, mocassim sem meia. Mas não se enganem! Os publishers são banqueiros e esse descompromisso serve apenas para distrair os órfãos de uma direita envergonhada que sofre porque a calle 23 en El Vedado não é uma travessa da Rua Maranhão (eu penso que isso é positivo, e já enviei dois textos pra lá que foram recusados… será que dona Maria Alice também é colaboradora da Piauí?); e assim, resumidamente, numa barafunda de boas intenções e um inferno que está repleto de casualidades premeditadas, canelas nuas e um charme indisfarçável, guichês intransponíveis e juros estratosféricos, ficamos com a impressão de que a agiotagem é apenas um insignificante detalhe diante das inegáveis contribuições dos clãs Moreira Salles e Setúbal para a cultura brasileira. Mas não é. Evidentemente não é. E eu digo isso porque sou correntista do banco Itaú, pago altos juros pra dona Maria Alice Setúbal e também sou leitor de suas intervenções na seção Tendências/ Debates da Folha de S. Paulo. Gostaria de acreditar que o jornal ainda não foi absorvido pelo acervo do Instituto Moreira Salles.
Voltando à dona Maria Alice Setúbal.
O que madame teria de tão importante para acrescentar, tirante suas “transversalidades”, ao debate de ideias, ou, mais especificamente, por que as idéias dela são tão relevantes para desfilar na seção Tendências/ Debates da Folha?
Vou arriscar um diagnóstico.
Os textos de madame costumam ter a marca indelével que conduz do óbvio ao ululante, são como folders, propagandas de condomínio que indicam, ou melhor, cobram o caminho da felicidade, apesar de a felicidade, pobre e acuada felicidade, não ter sido consultada a respeito de tão nobre encaminhamento. Mas uma coisa dona Maria Alice sabe fazer, algo que circula em seu sangue de agiota, ela sabe cobrar.
No seu último artigo, “Novas formas de aprender e ensinar”, publicado no dia 27 de março, dona Maria Alice Setúbal aposta na “inteligência coletiva” que – segundo sua bola de cristal high-tech – está na iminência de ser consumada pela força da revolução tecnológica. Madame não costuma deixar lacunas porque cumpre sua função, repito, que é levar o nada a lugar nenhum com a marca da excelência, como se o mundo fosse uma agência bancária cor-de-laranja protegido por portas giratórias e slogans de publicidade.
Não obstante, dessa vez, madame deu uma vacilada.
Dona Maria Alice Setúbal esquece que o lado de fora não tem ar condicionado. Revolucionária, decreta o fim do ensino linear. Para madame, o ensino da maioria das escolas – que ainda trabalham com aulas expositivas e livros didáticos – não faz mais sentido diante do conhecimento que é “transversal e produzido nas conexões entre várias informações”. Bem, esses conhecimentos ou essas conexões, que eu saiba, só existem e funcionam em sua plenitude nos sistemas de cobrança do banco de madame e na bolsa de valores. No mínimo, dona Maria Alice Setúbal, que se imagina mensageira do futuro, é uma debochada. Convenhamos que a “realidade transversal” que os nossos professores experimentam nas salas de aula têm outros nomes que nem o eufemismo mais engenhoso poderia disfarçar, tais como humilhação, porradaria, salário de merda. Para coroar seu pensamento revolucionário, dona Maria Alice, sentencia: “Essa transversalidade se expressa nas demandas das empresas e nas expectativas dos jovens”.
Que jovens são esses? Aqueles que madame adestra em seus canis cor-de-laranja? Qual a expectativa deles? Telefonar pras nossas casas às sete horas da manhã para nos lembrar que somos devedores do Itaú? Ou a expectativa desses jovens é subir na vida, e virar gerente de banco?
Dona Maria Alice vai além e se entrega, ela acredita que a tecnologia vai produzir “pessoas que saibam resolver problemas, comunicar-se claramente, trabalhar em equipe e de forma colaborativa. Que usem as tecnologias com desenvoltura para selecionar, sistematizar e criticar informações. E que sejam inovadoras e criativas”.
Ora, madame quer empregados que não a incomodem, e encerra seu raciocínio ou exige, de forma impositiva e castradora: “E que sejam inovadoras e criativas”. Não querendo fazer leitura subliminar, nem ser Lacaniano de buteco, mas esse “E que sejam inovadoras e criativas” é de amargar, hein, madame?
O artigo de dona Maria Alice é uma ordem de comando. A voz da dona, a mulher que visivelmente não pode ser contrariada. Difícil ler e não sentir-se um empregadinho dela. Ao mesmo tempo em que ordena “inovação e criatividade”, elimina a possibilidade de reação: “para fazer da tecnologia uma aliada da educação, é preciso vencer o medo do novo e superar a cultura da queixa”. Como se madame dissesse: “Publiquem meu artigo genial, obedeçam, e calem a boca. O futuro é meu, e se eu disser que é coletivo e cor-de-laranja, dá na mesma”.
O pior é que os filmes do Waltinho Salles são feitos no mesmo diapasão. A mesma lógica, a diferença é que ele ordena lirismo. Eles são banqueiros! Em vez de desfilarem seus preconceitos e visões de mundo revolucionárias nas páginas dos jornais, na “pedagogia”, nos cinemas, no mundo do entretenimento e nas artes em geral, essa gente faria muito mais pela sociedade e pela cultura se extinguisse suas financeiras e baixasse os juros pros pobres coitados de seus correntistas. Não desejo a fila da Taií pros meus coleguinhas escritores nem pros rappers que frequentam os saraus do Itaú cultural. Até a alma do Leminski ( “ocupação Leminski”) eles compraram.
Eu falava de madame (versão 2013) que diz que samba é coisa de gente elegante. Dessa vez a visita periódica que madame faz à sua cozinha, também conhecida como “Tendências/Debates”, ultrapassou o terror costumeiro, e, no lugar de marcar presença e autoridade, madame só fez azedar o cuscuz. Ela devia ser mais discreta, como Olavão, o patriarca, o banqueiro. Não se deve confiar demais na vassalagem (leia-se correntistas e leitores).
No mesmo dia que madame publicou seu artigo, aconteceu uma coincidência reveladora, logo acima do texto de sinhá, no “Painel do leitor”, uma dona de casa, Mara Chagas, reclamava enfurecida da nova lei das empregadas domésticas, e fazia coro – às avessas, mas coro – à mme. Setúbal: “As empregadas domésticas não trabalham aos sábados, não cumprem as oito horas diárias, o serviço tem que ser ensinado (não são mão de obra especializada), almoçam e lancham na casa dos patrões sem cobrança alguma e faltam sem avisar. Como ficará o empregador diante disso?”
Eis a questão.
Pelo menos dona Mara Chagas, a leitora, foi honesta e direta, e não precisou de “transversalidades” para exprimir suas ideias revolucionárias. E o melhor: ela não vai concorrer ao Oscar, e jamais vai se manifestar no “Tendências/ Debates”. Nem ela, nem eu.
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