Para os cristãos, Maria é a mais pura das mulheres, em todos os tempos. Não é (a mais pura é homônima, e explico adiante). Tal qual Olavo Bilac em “A Alvorada do Amor”, vou discordar. E, “herege” como o poeta, que ousou peitar Deus por ter expulso do Éden o casal original, sentença aplicada porque Adão e Eva se amaram, vou discordar com um desafio: a mais pura mulher de todos os tempos pode até se chamar Maria, mas também atende por Madalena.
Pelo nono ano consecutivo, este humilde espaço se abre para o principal dia do ano e para quem o merece – um simulacro do que tenho feito desde que nasci. Para quem tem paciência, lá no pé desta página estão todos os oito textos dos anos anteriores. Neste ano, resolvi abrir espaço para Madalena, por meio do poeta Hernani Santana (dele pouco se sabe, e não se acha o poema na internet; ao menos facilmente). Diz-se que era espírita. E que o poema foi escrito há 100 ou 200 anos. Talvez 2016 anos atrás.
Pois bem. Madalena, por quê? Porque um sábio de botequim certa vez me disse que as mulheres verdadeiramente íntegras são que as que assumem o que são, como a então prostituta Madalena. Mulheres “respeitáveis”, tão perfeitas aos olhos da sociedade e tão minúsculas em seu caráter, estas são mulheres em construção. Madalena, não. Era o que era, foi apedrejada, depois resolveu centralizar seu amor – o mais poderoso deles, que é o incondicional – em um só homem. E Hernani, no lindíssimo poema abaixo, imagina como foi a declaração de amor de Madalena a Cristo no dia de sua redenção.
Bem, nem quero mencionar textos apócrifos, que a Igreja Católica caçou por séculos como quem queria extirpar o maior mal do mundo. Só sei que este texto abaixo foi declamado por minha tia sergipana Célia Góis, do 14º andar de um prédio do qual se vê uma ilha encantada. Barra dos Coqueiros tem uma capela na qual eu sempre sonhei casar. À beira-mar, depois de uma sessão de piano executada pela mesma tia artista, conheci esse poema. Tia Célia o declamou, letra por letra, e ficou de conseguir para mim sua transcrição (não sei onde ela conseguiu o texto, mas eu vasculhei a internet e não o encontrei). Ela decorou o texto quando menina de dez, 11 anos, e nunca mais esqueceu uma vírgula sequer dele. Na iminência de meu regresso de férias a Brasília, ela prometeu me entregar o texto antes que eu deixasse a terrinha nordestina, e assim o fez. Retribui o gesto com outra promessa, e ei-la nesta publicação cumprida.
Paro por aqui e peço: mulheres, ensinem-nos a sepultar nosso machismo, mas nunca deixem de ter a certeza de que, ao menos para este que vos fala, não vale a pena viver sem vocês. Até porque vida não há sem vocês mulheres (santa obviedade…). Madalenas, clarices, ritas: a existência só se justifica porque vocês existem.
Evocação de Madalena
Hernani Santana *
PublicidadeFoi no dia seguinte, ao suplício do Justo
Junto à tumba a chorar, cheia de fé sem susto
Do castigo, talvez, que de Pilatos viesse,
Madalena falou, num sussurro de prece
Oh! Meu doce Rabi
Oh! Meu Jesus amado,
Tua serva aqui está,
Quero ver-te ao meu lado
Foi tão grande e sublime o exemplo que me deste
Mas eu sei, meu Senhor, que nunca morreste
O clarão que tu és, não pode estar sepulto,
Dá-me a ver novamente, o esplendor de teu vulto
Tua escrava aqui está; ouve-me, oh!, Mestre, e vem,
És tu toda esperança e todo eterno bem
Oh! Deixa-me, Jesus, vir aos teus pés de rastro
De novo derramar um vaso de alabastro,
Transbordante de aroma e por seres quem és,
Banhar com este perfume, oh!, meu Senhor, teus pés
Teu amor vale mais, bem mais que o mundo todo
E foi o teu amor que me arrancou do lôdo,
Da lama, do bordel, da podridão, do vício
Jamais hei de esquecer o teu grande sacrifício
Vem sublime expressão, de virtude e de clemência
Permitir-me ofertar na minha penitência
Meu triste coração de pobre arrependida
Oh! Tu és o Caminho, a Verdade e a Vida
Porque, Mestre Divino, quem de ti se socorre
Não se perde, não erra e na verdade não morre
Mestre Divino, escuta, ouve a minh’alma
Já não mais pertenço aos ricos de Magdala
Jamais hei de voltar àquela vida impura
Quantas vezes vendi a minha formosura,
Nas loucas bacanais da minha vida louca
Quantas ofensas, meu Deus, saíram da minha boca
Mas agora aqui estou, com todo anseio
Nesta Divina Evocação, do que fui pouco resta
Minh’alma está cansada e o meu corpo poluído
E eu nem posso dizer-te o quanto tenho sofrido
Oh! Deixa-me, Jesus, escutar tua voz clara e pura
E rever, meu Senhor, tua austera figura
Hoje, sou como a flor emurchecida na haste
Entretanto, a verdade é que tu me salvaste
Sim, Jesus, tu salvaste minh’alma errante e perdida
A quem mostraste a luz da verdadeira vida
Tu, que a vida animaste a Lázaro sepulto
Dá-me a ver novamente, o esplendor do teu vulto
Um silêncio de paz depois envolveu tudo
E um favônio a trazer carícias de veludo
Espalhava-se sutil em vibração serena
Agora, era bem outra pobre Madalena
A alma não mais lhe ardia, em convulsões aflita
Mas sentia a envolver-lhe a doce paz bendita
Que o Mestre distribui a quem a paz merece
Maria se elevava aos eflúvios da prece
Foi quando, na emoção do mais doce trespasse,
Como se o próprio Deus do alto do próprio céu falasse
Doce, meiga, sutil, carinhosa, macia
Aos ouvidos lhe chega a Divina Harmonia
Eis-me aqui, oh!, mulher
Eis-me aqui ao teu lado
Não é mais Madalena, a escrava do pecado
Tua fé, teu amor e tua dedicação
Operaram em ti essa ressurreição
Levanta-te, caminha, ora ao Divino Pai
E faze todo bem que tu puderes, vai…
E então, como se fosse o despertar de um sonho
Ela alteou deslumbrada o meigo olhar tristonho
E viu a contemplar-lhe em irradiações de luz
O majestoso e sereno, o Divino Jesus!
p.s.: para a jornalista Adriana Caitano, a quem tive o privilégio de levar para nossa manchete neste dia 8 de março, um agradecimento especial e enternecido;
p.s.2: para quem tem paciência e vocação para a música. Sim, a música. É disso que se trata (e ela está, literal e metaforicamente, em cada um dos textos abaixo):
Touché, Élora (2015)
Mulher com H (2014)
O azul onírico do plenário em verso e Rosa (2013)
A mulher quando as ruas eram de fogo (2012)
Mulher, a auto-homenagem (2011)
Sobre Iemanjá, Clarice e a “menina do pedido de criança” (as três marias) (2010)
Mais flores em vocês (2009)
Flores em vocês (2008)