Tem toda razão a pré-candidata à Presidência pelo PT, Dilma Rousseff, ao
reclamar da interpretação que fizeram do seu discurso no sábado (10), em que se
qualificou como uma pessoa que “não foge da luta”. Saíram a dizer que Dilma
fazia uma crítica a José Serra, seu adversário do PSDB, que foi para o exílio no
Chile, quando a ditadura militar por aqui apertou. Que o que Dilma queria dizer
é que ela ficou no Brasil, empunhando armas contra os militares, enquanto Serra
se protegia no exterior.
Na esteira dessa interpretação apressada, os
oposicionistas caíram de pau em cima de Dilma. Afinal, se era isso, ela estava
usando exatamente o mesmo argumento do general Leônidas Pires Gonçalves,
ex-ministro do Exército no governo José Sarney, ex-chefe do DOI-CODI do Rio, um
dos ícones do regime militar, figura central num dos episódios mais sangrentos
da ditadura militar, a Chacina da Lapa, quando os principais dirigentes do PCdoB
foram executados. Na ótima série de entrevistas que o jornalista Genetton Moraes
Netto vem fazendo com os generais da ditadura na Globo News, Leônidas disse que
“não houve brasileiro exilado”. Que quem saiu do Brasil, “fugiu’.
Leia no Blog do Genetton trechos da sua
entrevista com Leônidas Pires Gonçalves
Então, a Dilma acharia o
mesmo que o Leônidas? Que, em vez de exilados, o que houve foi “fugitivos”? É
assim também que ela enxergaria João Goulart, Leonel Brizola, Miguel Arraes,
Herbert de Souza, Fernando Gabeira, José Dirceu, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
seu companheiro de governo, Franklin Martins?
É claro que não é assim que
Dilma os vê. O discurso de Dilma em nada autorizava essa interpretação. Ela
apenas disse que não tinha o costume de fugir da luta. Não havia nada, nem antes
nem depois, que autorizasse a conclusão de que ela, ali, pretendia se
diferenciar de Serra nesse ponto. Basta ler a íntegra do discurso para se ver
que a interpretação foi uma tremenda forçada de barra.
Leia
a íntegra do discurso de Dilma Rousseff
E nem poderia ser de outra
forma. Dilma não é nenhuma garotinha nascida depois da redemocratização. Ela
viveu aquele período. E como viveu. E como se arriscou. E como foi torturada. E
como sofreu. O suficiente para saber que, ao contrário do que diz o general
Leônidas, quem saiu do Brasil é porque não tinha mais como ficar por aqui. Eram
os líderes de esquerda mais visados (Serra, para ficar num exemplo, era, então,
o presidente da União Nacional dos Estudantes). Muitos, se ficassem, morreriam.
Além disso, do exílio muitos produziram articulações importantíssimas para o
retorno da democracia, porque ali tinham mais liberdade para falar e se
locomover. Foi do exílio, por exemplo, que boa parte das negociações que levaram
à anistia foi articulada.
Eis porque Dilma reagiu de pronto em seu
recém-inaugurado twitter (twitter.com/dilmabr). “De onde tiraram que fugir
da luta é se exilar? O exílio significou a diferença entre a vida e a morte para
os exilados brasileiros”, escreveu Dilma. Eu também não sei de onde tiraram
isso. Em seguida, ela completa: “Grandes amigos meus corajosos e valorosos só
tiveram uma saída na ditadura, se exilar. Querer dizer que eu os critiquei só
pode ser má fé”.
“Má fé” de quem? Resta saber. Porque novamente vai ter
um monte de gente que seguirá direto para o lugar comum mais lugar comum destes
nossos tempos, e culpará a “imprensa”, o “PIG”, na sua orquestrada campanha para
evitar a todo custo que Dilma Rousseff vença as eleições de outubro. Já disse
aqui e repito para não deixar dúvidas: eu reconheço que existe uma parte da
imprensa sim que partidariza a cobertura contra o governo. Mas repito também
para não deixar dúvidas: jogar tudo no centro de uma teoria conspiratória é a
forma mais cômoda de lidar com as coisas e não ter que explicar nada nem fazer
autocrítica dos erros.
Por que essa saída é apressada? Porque, antes de
Dilma vir a público para dizer que nunca tivera a intenção de chamar Serra de
fujão, essa versão era exatamente a que circulava em muitos dos espaços e das
pessoas na internet que a apoiam abertamente. Só que com um viés de elogio
a Dilma por ter feito tal comparação. Se não, vejamos. Na seção “Yahoo
Respostas”, um eleitor, com o pseudônimo de “Sacripanthas”, postou a seguinte
pergunta: “’Não fugi, não fujo da luta’, para quem ela falou isso?”. E ele mesmo
respondeu: “Querem uma dica: Ele preferiu tomar um caríssimo vinho chileno a
lutar contra uma ditadura”.
Uma análise um pouco mais profunda? Do leitor
Clóvis Campos, interpretando o discurso no blog do jornalista Luís Nassif.
Dissecando o discurso, no trecho em que Dilma fala que não foge da luta, ele
assim analisa: “Foi exatamente isso o que Serra fez, logo depois do golpe de 64.
Ele fugiu para o exterior, pura e simplesmente. Quanto a Dilma, ela permaneceu
no país, continuou a sua luta contra a ditadura militar. E olha que o Serra
fugiu mesmo sendo presidente da UNE, hein”?
Opiniões pessoais. Busquemos,
então, espaços mais institucionais: o
site da Central Única dos Trabalhadores. Assim diz a matéria
publicada na página sobre o discurso de Dilma: “’Eu não fujo quando
enfrento as dificuldades”, enunciou Dilma, em clara referência ao adversário que
se refugiou no Chile, enquanto vários lutadores, incluindo ela mesma,
enfrentaram a ditadura militar de direita para restabelecer a democracia no
Brasil”. A mesma matéria está no “Portal dos
Metalúrgicos” . No site
“Vermelho”, ligado ao PCdoB, o texto faz menos ilações, mas conclui que o
discurso era “um ataque indireto a Serra”.
Enfim, o que resta de lição
dessa história toda é que a língua é sempre uma arma perigosa. Ninguém pode
deixar de se valer dela. Até agora, ninguém tentou fazer uma campanha eleitoral
mudo, e duvido que algum dia alguém se arrisque a isso. E duvido ainda mais que
quem se arrisque a isso vá tirar algum dividendo eleitoral dessa mudez. Falar é
preciso, mas é preciso que se seja o mais claro possível no seu recado para
evitar mal-entendidos. Sempre haverá quem queira encontrar nas entrelinhas
exatamente aquilo que desejava ler. É o primeiro passo para as interpretações
erradas. Dilma não fez – e estaria louca se o fizesse – um ataque a Serra por
ter amargado o exílio na ditadura militar. Mas, se ela acha que tal
interpretação foi um sinal de “má fé”, então, pelo que vimos acima, terá sido má
fé também de algum dos seus aliados.
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