Junto com o genocídio, a tortura é o mais aberrante abuso dos direitos humanos e exemplo típico de crime contra a humanidade e de terrorismo de estado. Entretanto, a lei federal 9455 trata essa atrocidade milenária como se fosse um crime comum e, embora constitua um avanço teórico, é insuficiente em vários aspectos (vide).
O artigo 1º dessa lei define tortura como
“Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, (a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; (b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; (c) em razão de discriminação racial ou religiosa.”
Isso não criminaliza a maioria dos tormentos, cuja motivação não é nenhuma destas, mas apenas a de satisfazer o sadismo do executor. Aliás, estas cláusulas identificam o tormento sistemático aplicado pelo poder público, com lesões produzidas por particulares, que são crimes graves, porém comuns. Em outros artigos e seções, a lei condena as autoridades que torturam seus custodiados como castigo ou ameaça. Considerando todos os casos (sendo o mais grave a morte da vítima), a pena oscila entre 2 e 16 anos de reclusão, pudendo ser aumentada até num terço quando o executor é agente público. Assim, os milhares de torturadores oficiais, poderiam, como máximo, se lei fosse bem aplicada, ser condenados a 21 anos e 4 meses.
Como os juízes geralmente cominam ao réu primário com o mínimo da pena, e o torturador sempre é primário, seria punido menos que um ladrão de galinhas. Na prática, porém, nem isso acontece, porque policiais e militares usualmente dificultam os inquéritos, e alguns promotores e juízes do crime (embora haja exceções), admitem a tortura para ter seus réus previamente “amaciados”. Em realidade, essa é uma lei para criar mais punições sobre crimes comuns cometidos por particulares, e não para conter os abusos do poder público.
É verdade que nos últimos anos apareceram algumas exceções, mas são mínimas e não influíram no quadro geral de aplicação de tormentos, cujos autores ficam encorajados pela falta de interesse do Estado em combater a tortura (vide 1, 2). Em realidade, as grandes tendências no Brasil neste aspecto são apavorantes. Em abril de 2010, 10 juízes do STF (incluídos os 4 melhores quadros da magistratura superior) votaram em favor da anistia dos torturadores e democidas da ditadura.
Concordo com a maioria dos sociólogos e dos ativistas de direitos humanos, que a punição nunca tem diminuído o crime, mas, pelo contrário, sempre o tem multiplicado (Vide). Todavia, nessa hipótese, é necessário reformar todo o sistema legal (o que algum dia será feito, salvo que as sociedades explodam antes por causa da violência). Mas é extremamente perverso castigar draconianamente crimes cujos autores são recuperáveis, e dar penas simbólicas aos que, atuando desde o poder, geram a brutalização generalizada e irreversível do tecido social.
A tortura e o democídio exercidos pelo estado possuem um enorme efeito de replicação e um impacto de destruição social que nenhum outro crime tem (incluído o terrorismo privado), e justifica a crueldade e o sadismo como métodos normais de lidar com situações de conflito. Como qualquer crime cometido pelo poder público, a tortura passa a ser “legal” e sua apologia se espalha na imprensa marrom, nos discursos das corporações e na mente da ralé linchadora.
Alguns grupos de direitos humanos recusam a qualificação do torturador como insano, pois entendem que isso significa ser indulgente com ele e, ao mesmo tempo, ser ofensivo com as pessoas que padecem de doenças mentais. De fato, a polêmica é complexa e exigiria uma definição consistente de normalidade. Mas existe um conjunto de características psíquicas do torturador que, sejam ou não patológicas, são exacerbações de traços que, quando ocorrem na maioria “normal” da sociedade, estão numa escala infinitamente menor.
Pesquisas feitas em vários países, como os EUA, a França e a Nicarágua, mas também em outros, mostram que o torturador possui crenças fanáticas em valores abstratos e fetichistas (por exemplo, místicos, nacionalistas, racistas), considera sagrados certos símbolos (sabres, escudos, hinos, bandeiras, uniformes ) e incorre em condutas violentas, cruéis ou desumanas não apenas contra seus torturados, mas contra seus familiares e dependentes. Algumas pesquisas americanas revelam que famílias onde o marido é militar ou policial (seja a esposa civil ou não) têm uma probabilidade 7 vezes maior de padecer de abuso contra mulher e crianças que famílias civis com exatamente os mesmos parâmetros (religião, nível econômico, instrução formal, tipo de moradia, estrutura familiar e social). Além disso, o torturador exibe, em quase todos os casos, transtornos sexuais graves, o que explica sua tendência ao estupro e, mais ainda, à violação da vítima com objetos inanimados (faca, cano de revólver, chave de fenda, etc.).
Portanto, a tortura não apenas destrói a vítima (como o faz o homicídio comum), mas deforma a personalidade do torturador tornando-se uma fonte de degradação praticamente irreversível da espécie humana. Isso é suficiente motivo para que a tortura não possa ser tratada como um crime comum, como já foi percebido em Nuremberg há mais de 60 anos, sem que os legisladores e magistrados do século 21 tenham tomado conhecimento. Junto com o genocídio e o democídio, a tortura perverte radicalmente a sociedade e torna impossível qualquer progresso humano, mesmo em países ricos e independentes como os EUA e, obviamente, muitíssimo mais em países neocoloniais e escravocratas.
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