Em toda parte, a direita retomou a ofensiva. Ela se agarra à questão dos déficits orçamentários e à elevação da dívida pública – fingindo não ver que a austeridade orçamentária a favorece, uma vez que transfere o peso da dívida para as classes populares – que não pode senão provocar a recaída numa nova contração da atividade.
Essa é a segunda fase da crise e não será a última. Mas a recessão, elevada a um patamar mais alto, vai gerar um impasse e impor novas políticas, forçosamente voltadas às classes populares – eis a análise do economista francês Gérard Duménil, autor de vários ensaios sobre o sobre o capitalismo contemporâneo, a exemplo de The crisis of neoliberalism (Harvard University), escrito em parceria com Dominique Lévy. Este é um resumo de sua palestra sobre a crise atual, dada recentemente no programa de pós-graduação da Unicamp.
Segundo Duménil, o neoliberalismo é a nova etapa na qual ingressou o capitalismo na transição dos anos 70 e 80, caracterizando uma nova “ordem social”, marcada pelo reforço do poder das classes capitalistas em aliança com a classe dos gestores – sobretudo as cúpulas das hierarquias e dos setores financeiros.
Nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, as classes capitalistas viram seu poder e sua renda diminuírem na maior parte dos países.
Estabeleceu-se uma ordem “social-democrata”, caracterizada pela conjunção dos seguintes fatores: a crise de 1929, a Segunda Guerra Mundial e o fortalecimento do movimento operário, levando ao desenvolvimento econômico e à melhoria das condições de vida das classes populares – operários e empregados do terceiro setor.
Porém, com o estabelecimento da nova ordem social neoliberal, o funcionamento do capitalismo foi radicalmente transformado: uma nova disciplina foi imposta aos trabalhadores nas condições de trabalho, poder de compra, proteção social, etc., além da desregulamentação (notadamente financeira), abertura das fronteiras comerciais e livre mobilidade dos capitais no plano internacional – liberdade de investir no exterior. Esses dois últimos aspectos colocaram todos os trabalhadores do mundo numa situação de concorrência, quaisquer que fossem os níveis de salário nos diferentes países. Em resumo: com a chegada do neoliberalismo, as formas imperialistas foram renovadas.
Na década de 1990, a explosão dos investimentos diretos no estrangeiro multiplicou o lucro extraído dos países periféricos pelas classes capitalistas do centro. O fato dos países periféricos desejarem receber esses investimentos não muda em nada a natureza imperialista dessas práticas – afinal, os trabalhadores “preferem” ser explorados a ficar desempregados.
Quando, em meados dos anos 90, introduziu-se a interpretação do neoliberalismo em termos de classe, ela suscitou pouco interesse. Mas a explosão das desigualdades sociais deu-lhe razão. Aliás, a especificidade da análise marxista é a ênfase nas classes, mais do que nos grupos sociais. Por outro lado, esse caráter de classe está inscrito em todas as práticas neoliberais, inclusive os “keynesianos de esquerda” agora se exprimem nesses termos. Uma recusa a essa interpretação, no entanto, ainda se mantém; muitos não aceitam o papel importante que se atribui aos gestores na ordem social neoliberal.
A instauração do neoliberalismo, tendo como causas a “crise fiscal” e a inflação, é a explicação da direita: ela faz a defesa dos interesses capitalistas. Ela joga com as inconseqüências dos blocos políticos que dirigiam a ordem social do pós-guerra. Esses foram incapazes de gerir a crise dos anos 70 e prepararam a cama para o neoliberalismo.
Ocorre o mesmo com a explicação que apresenta o neoliberalismo como consequência da globalização. Mas esse argumento inverte as causalidades. O que o neoliberalismo faz é orientar a globalização e acelerar o seu curso, abrindo a via para a “globalização neoliberal”. O movimento altermundialista lutou por “uma outra globalização”, solidária, e não baseada na exploração em proveito de uma minoria.
Para Duménil, a crise atual é uma das quatro grandes crises – todas estruturais – que o capitalismo atravessou desde o final do século XIX: a crise da década de 1890, a crise de 1929, a crise da década de 1970 e a crise atual – iniciada em 2007/2008.
Essas crises são episódios de perturbação com duração aproximada de dez anos (para as três primeiras). A primeira e a terceira dessas crises, as das décadas de 1890 e de 1970 correspondem às fases de queda da taxa de lucro e podem ser designadas como crises de rentabilidade. As duas outras, a de 1929 e a atual, são designadas como “crises de hegemonia financeira” e funcionam como explosões, com interferência direta das classes superiores visando o aumento de sua renda e seus poderes. Todos os procedimentos do neoliberalismo aqui estão acionados: desregulamentação financeira e globalização, sendo esta última o fator chave da crise atual.
Contudo, a crise atual não é uma simples crise financeira. É a crise de uma ordem social insustentável, o neoliberalismo. Essa crise, no centro do sistema, deveria acontecer inevitavelmente, mas ela chegou, de forma peculiar, em 2007/2008, vinda dos Estados Unidos. Dois tipos de mecanismos convergiram: 1) a fragilidade induzida em todos os países neoliberais pelas práticas de financeirização e de globalização (notadamente financeira), motivada pela busca desenfreada de rendimentos crescentes por parte das classes superiores, reforçada pela recusa de regulamentação. O banco central dos EUA, em particular, perdeu o controle das taxas de juros e a capacidade de conduzir políticas macroeconômicas em decorrência da globalização financeira; 2) o efeito da trajetória econômica estadunidense, um percurso de desequilíbrios cumulativos, que os EUA puderam manter devido à sua hegemonia internacional – contrariamente à Europa que, no conjunto, não conheceu tais desequilíbrios.
Desde 1980, o ritmo da acumulação de capital diminuiu no território norte-americano, enquanto cresciam os investimentos diretos dos Estados Unidos no exterior. Paralelamente, houve um déficit crescente do comércio exterior, uma grande elevação do consumo nas classes ricas e um endividamento, também crescente, das famílias da classe média.
De tanto emprestar às famílias, para além da capacidade destas saldarem as dívidas, a inadimplência se multiplicou desde 2006. A desvalorização desses créditos desestabilizou o frágil edifício financeiro, nos EUA e no mundo, sem que o banco central dos Estados Unidos estivesse em condição de restabelecer o equilíbrio no contexto de desregulamentação e de globalização que ele próprio tinha favorecido. Esse foi o fator desencadeador, mas não o fundamental, da crise – uma combinação de loucura neoliberal, globalização e do déficit do comércio exterior nos EUA.
Agora o mundo ingressou na segunda fase da crise e é fácil compreender as razões. A primeira teve seu auge no outono de 2008 – com a queda das grandes instituições financeiras americanas (Lehman Brothers à frente), começou a recessão e a crise se propagou para o resto do mundo. As lições da crise de 1929 foram bem aprendidas. Os bancos centrais intervieram massivamente para sustentar as instituições financeiras (com medo de uma repetição da crise bancária de 1932) e os déficits orçamentários dos Estados atingiram níveis excepcionais. Mas essas medidas keynesianas, estimulando a demanda, tiveram apenas um caráter paliativo, temporário.
O fato é que os governos dos países centrais ainda não tomaram consciência do caráter estrutural da crise. Eles agem como se a crise, sendo puramente financeira, já tivesse sido ultrapassada; entretanto, as medidas keynesianas só criaram uma trégua. Nenhuma medida antineoliberal drástica foi tomada nos países do centro, pois continuam as políticas que visam o reforço da exploração das classes populares.
Nos Estados Unidos, a administração de Barack Obama elaborou uma lei – a Dodd-Frank – para regulamentar as práticas financeiras, mas os republicanos bloquearam completamente sua aplicação. Em outras esferas, como gestão das empresas, exportação, déficits do comércio exterior, nada foi feito. Na Europa, a crise não é identificada como a crise do neoliberalismo. A Alemanha é apresentada como tendo provado a sustentabilidade do caminho neoliberal. A crise é imputada à incapacidade de gestão de certos Estados, notadamente Grécia e Portugal.
Até a segunda metade da década de 1990, o neoliberalismo produziu estragos no mundo, notadamente na América Latina e na Ásia. Mesmo hoje, as taxas de crescimento na América Latina permanecem inferiores às posteriores à Segunda Guerra Mundial, e isso a despeito da diminuição massiva dos salários reais – reduzidos à metade, desde a crise de 1970, em alguns países da região. Na década de 1990, os avanços do neoliberalismo provocaram grandes convulsões, entre as quais, a crise na Argentina em 2001 é um caso emblemático.
Agora, o mundo entrou numa nova fase: nos países centrais, a transição para o neoliberalismo provoca uma espécie de “divórcio” entre os interesses das classes superiores e os do próprio país, como território econômico. O caso dos Estados Unidos é catastrófico: suas grandes empresas investem cada vez mais fora que dentro do país. A globalização levou a um deslocamento da produção industrial para as periferias: Ásia, América Latina, incluindo a África subsaariana.
Quanto aos aspectos políticos mais funestos do neoliberalismo, a aliança na cúpula das hierarquias sociais entre classes capitalistas e classes de gestores logrou, por diversos mecanismos, afastar as classes populares da política cotidiana. Isto é, as afastou dos jogos dos partidos e dos grupos de pressão. Para as classes populares, só restaram as lutas de rua. Vide a ocupação de Wall Street.
Como parte da solução, é preciso trazer de volta os intelectuais e políticos profissionais para as causas populares, que o contexto neoliberal separou – notadamente pelos grandes salários, a exemplo dos “CEOs”, e isto em todas as áreas, sobretudo no contexto do conhecimento e dos saberes construídos. De forma que o sofrimento das classes populares já não sensibiliza o grupo dos gestores, cooptado pelo sistema por remunerações estratosféricas; no plano político, não há mais nenhum grande partido de esquerda no horizonte.
Na França, sabe-se no que se tornou o Partido Socialista, completamente vendido à “globalização” ou neoliberalismo. Algo semelhante poderíamos dizer dos democratas nos Estados Unidos e eu deixo para vocês mesmos julgarem a situação do Brasil a esse respeito.
Isso remete às características daquilo que chamamos “terceira fase da crise”. Quais políticas serão adotadas face à nova recessão? Como será gerida a crise? Uma coisa é certa: essas dívidas não devem ser pagas, o que exige a transferência delas para fora dos bancos ou uma forte intervenção estatal na sua gestão.
Em termos geopolíticos, sem dúvida, eis um texto capital sobre a insustentabilidade social do pós-neoliberalismo em termos geopolíticos, donde se conclui: ou retornam as classes populares ao jogo político ou o mundo irá mergulhar numa recessão sem fim.
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