Márcia Denser
Toda geração tem seus epígonos.
No ABC of Reading, Ezra Pound classifica os escritores em três categorias: os inventores (os mocinhos strictus sensus, os inovadores absolutos, cujos exemplos brasileiros seriam Guimarães Rosa, e também Machado, os Andrade, Mário e Oswald), os mestres (que aplicam e atualizam as descobertas dos inventores, tornando-se mocinhos latus sensus) e os diluidores (os bandidos ou epígonos, os discípulos dos mestres, quer dizer, dos mocinhos de segundo grau, cujos ajustes formais parafraseiam, mimetizam, replicam e diluem em fórmulas vazias).
Os mocinhos lucram e os bandidos passam cheques sem fundos, só que a mais-valia do texto quando chega, chega tarde, quase sempre para os herdeiros. Por isso, os grandes escritores são sempre uns “endividados”, como dizia Mário de Andrade. Porque o reconhecimento de um escritor se dá lentamente, num processo gradual de universalidade e perenidade.
Quase todos os grandes textos do modernismo brasileiro tiveram primeiras edições reduzidíssimas, foram lidos por um número não menos reduzido de leitores, só que esses livros tinham uma qualidade em comum: continuavam vendendo ao longo do tempo, ampliando pouco a pouco as tiragens e o número de leitores.
O tempo é sua pedra de toque, tempo necessário à sua assimilação, à sua reflexão, à sua avaliação, à sua penetração e acumulação na memória profunda, algo observado por críticos como Octávio Paz, Silviano Santiago, Sérgio Miceli, pelo viés sociológico.
Repito, toda geração tem seus epígonos. Esta de agora não só não foge à regra, mas institui outras, constituindo exceção, replicando a conjuntura político-social de exceção descrita por Paulo Arantes (1) , caracterizada pela fusão da intelectualidade tucana com as alta finanças em meio à idiotia triunfante e bem pensante do novo Febeapá. Pior que o pensamento único dominante é a própria ausência de pensamento que contamina os contemporâneos e suscita a generalização da cretinice e do oportunismo político enquanto embota a percepção, donde a falência da elite intelectual que parece ter desistido ao mesmo tempo do Brasil e da reflexão sobre o processo histórico em curso.
É a “extinção da inteligência dos inteligentes” no mesmo instante em que ocorre a formação de um “bloco histórico da crueldade social” que envolve a grande mídia na atmosfera envenenada e obscura duma Censura (e auto-ensura) Onipresente, infinitamente pior que a censura praticada durante a ditadura, que, comparada à atual, não passava de brincadeira de amadores.
Eu sei porque eu lembro.
Se ontem o inimigo era “o general de óculos escuros da república de bananas”, contra o qual a sociedade se mobilizava, hoje o inimigo “somos nós”, contra quem o Sistema Econômico como um todo se mobiliza. Com nossa total e incondicional colaboração.
Como vêem, a diferença é sutil.
Então como se dá a produção dos atuais epígonos literários? Escrevem com facilidade, aliás caracterizam-se por escrever MUITO, são copiosos, cacofônicos, mas são matéria sem substância (que no íntimo perseguem desesperadamente) porque ela – a substância, a idéia, o espanto original, o sangue, a paixão – sempre lhes escapa de forma que aí a poesia desaparece, se equivoca, soa oca, vira ornamento verbal, adorno crítico de sub-elites perversas e burras, cacofonia pós-parnasiana para boi dormir de poetisas de sobremesa e vates oficiais, que em nossa cultura sempre abundaram.
Só que a esses epígonos se acrescente a Torcida Unânime dessa sub-elite emergente dos anos 90, inculta, acrítica, boçal, o Silêncio não menos unânime da Crítica Acadêmica a que foi reduzida desde que se elegeu o Mercado como Instância Única de Consagração de Qualquer Coisa, donde a Exceção – e por que não o Salto Qualitativo? – desses Pós-Diluidores.
Que confundem literatura com informação de luxo. Que continuam a dar as cartas e o tom geral da nossa cultura periférica e manca que assim prossegue girando em falso, celebrando o eterno retorno do Mesmo Revolucionário A Favor, travestido de Transgressor de Plantão, atualizado como Intelectual de Auto-Ajuda, lançando mais um livrinho na Fenac, onde é proibido fumar, porque não se bebe e não se trepa para consumar a Assepsia Final, a Apoteose do Não-Dito!
Se em 70 os valores estavam invertidos, em 2007 eles se pulverizam!
(Confiram a genial entrevista de João Gilberto Noll no site Paralelos, onde confessa que continua incorrendo no experimentalismo existencial, na contracorrente do vácuo contracultural presente).
Será que a crítica da cultura e da literatura agora se resume a isso? A esse exercício de insinceridade estética? Praticado oralmente e por escrito, na internet, na imprensa, em sociedade, enfim, na vida?
É importante captar a pulsação do "espírito de época" (ou da "falta de espírito de época" como diz Jameson, em quem já não boto fé, talvez por ser brilhante demais, mas não levar a parte alguma) porque essa "insinceridade" cultural praticada a torto e a direito, de efeitos catastróficos a longo prazo, é produto da Censura Econômica a que se sujeitou o ser humano. Que ou se acanalha ou morre de fome (indo para o diabo toda a literatura e a liberdade para escrevê-la!).
1) Extinção. São Paulo, Boitempo, 2007.
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