Márcia Denser*
.
Merece atenção especial o novo livro de Naomi Klein, The shock doctrine: the rise of disaster capitalism (ICM Books, Nova Iorque, ainda não lançado no Brasil), jornalista e pesquisadora canadense, autora de No Logo (Sem logo – A tirania das marcas em um planeta vendido. Rio, Record, 2005). A obra fala da carreira do economista Milton Friedman, morto em novembro de 2006, prêmio Nobel de economia de 1976, inventor da ideologia do pensamento único – um cara que devia ter sido “desinventado”.
Nos anos 1950, Friedman lecionou na Universidade de Chicago e elaborou a teoria das liberdades planetárias de um novo capitalismo, que escapa a todas as restrições impostas pelos governos e pelos Estados. Capitalismo com o qual já sonhavam as futuras multinacionais e os investidores financeiros internacionais. Quando se tornou conselheiro econômico do ditador Augusto Pinochet, no Chile, década de 70, Friedman pôs sua teoria em prática e reformou a economia chilena. Mais tarde, tornou-se mentor, uma espécie de mago negro para Margaret Thatcher, Ronald Reagan, Bush pai e Bush filho, Anthony Blair e Nicolas Sarkozy.
Mas Friedman foi também um homem prático. Desde o início, tinha consciência de que sua solução de “pureza” para regular a sociedade jamais seria aceita pelas populações, a menos que estivessem em estado de choque. Literalmente.
Para que as pessoas aceitassem o desmantelamento da assistência social, a supressão do salário mínimo e de todo controle das condições de trabalho, a privatização dos serviços sociais, impostos que favorecessem apenas os ricos, a perda do direito de divulgar sua oposição a esse estado de coisas, para que as pessoas aceitassem esse deal – esse assassínio coletivo das condições de sobrevivência e das liberdades civis – era necessário primeiro que sofressem um desastre econômico e fossem tomadas de pânico. Daí o slogan: “bomb now, die later” – primeiro bombardeamos, depois matamos os sujeitos.
A “doutrina do choque” penetra e determina há tempos as decisões globais do G8, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, dos estrategistas da CIA e do próprio exército norte-americano (guerras do Golfo e do Iraque), aliás, totalmente mercenarizado e terceirizado. Às vezes, o choque é tramado totalmente em segredo, como no Chile, em 1973. Por vezes, às claras, como na Rússia, em 1991, ou na África do Sul, em 1994. Os defensores da “doutrina do choque” estão estreitamente associados às equipes da CIA que trabalham com “técnicas de interrogatório coercitivo de prisioneiros”, ou seja, de tortura.
Os dois tipos de choque são diferentes e têm efeitos diferentes, porém ambos são devastadores. Um é solitário e físico. O outro, coletivo e ideológico. O primeiro é imposto por meio de eletrochoques (objeto de assíduos estudos por parte da CIA desde os anos 1950) e por privação sensorial. O segundo, pela encenação controlada de um desmoronamento econômico, pelo desmantelamento de todas as infra-estruturas sociais existentes, pela sincronização bem calculada de um período de pobreza abjeto e de pânico, após o qual se sai cinicamente com falsas promessas à mão.
Contudo, esses dois tipos de choques têm um único objetivo: esmagar qualquer resistência. Para isso, começa-se por destruir o sentido de identidade do indivíduo. Os que administram os choques – torturadores ou economistas – aprenderam, após meio século de experimentações, que a forma mais eficaz de destruir o sentido da identidade das pessoas consiste em desmontar e fragmentar sistematicamente a história de sua vida até aquele instante, ou seja, apagar o passado.
Uma vez o passado apagado, qualquer slogan politicamente abjeto é engolido, posto que inscrito em tabula rasa, na página em branco da Desestória.
Numa longa entrevista dada em setembro do ano passado, Naomi diz:
Por ocasião da morte de Friedman em 2006, percebemos quanto suas idéias radicais de livre mercado chegaram a dominar o mundo, como varreram a antiga União Soviética, a América Latina (grifo meu), a África, como essas idéias triunfaram durante os últimos trinta e cinco anos. E isso me impressionou muito porque já estava escrevendo esse livro. Nessas idéias, nunca ouvimos falar de violência, nunca ouvimos falar de crises e nunca ouvimos falar de choques. Ou seja, a história oficial é de que estas idéias triunfaram porque desejávamos que assim o fosse, que o Muro de Berlim caiu porque as pessoas exigiram ter seus Big Macs junto com a sua democracia. E a história oficial do auge dessa ideologia passa por Margaret Thatcher dizendo “Não há alternativa”, à Francis Fukuyama afirmando que “a história terminou, o capitalismo e a liberdade caminham juntos”.
Portanto, o que procuro fazer nesse livro é contar a mesma história, a conjuntura crucial na qual essa ideologia entrou com força, mas reintroduzo a violência, reintroduzo os choques e digo que existe uma relação entre os massacres, entre as crises, entre os grandes choques e os duros golpes contra vários países e a capacidade de imposição de políticas que são rejeitadas pelas populações do planeta.
Inconscientemente, Klein, malgrado seu conhecimento abrangente da atual conjuntura histórica, revela-se surpresa, pois fala inevitavelmente do ponto de vista duma cidadã dos países centrais onde os tais choques não foram imediatamente sentidos tampouco percebidos, até porque, segundo Jameson, “há sempre cegueira no centro”. Claro. Os países centrais não enxergam porque não precisam ver, até que tudo venha à tona e, então, ficam estarrecidos. O que não é naturalmente o nosso caso.
Mas por hoje fico por aqui, coluna que vem tem mais choque: bomb now, die later!
Deixe um comentário