Se existe uma instituição mais ligada à história da cidadania no mundo, esta é a British Library, em Londres. Seu acervo, estimado hoje em nada menos que 150 milhões de peças, inclui obras de valor inestimável para a humanidade, como o caderno de anotações de Leonardo da Vinci e um exemplar da Bíblia impresso por Gutemberg, além de milhões de manuscritos de autores como Charles Dickens, Lewis Carroll, Virginia Woolf, Rudyard Kipling e outros.
Mas a maior atração da British Library é um salão totalmente dedicado à Carta Magna, um acordo firmado pelo rei João Sem Terra da Inglaterra em 1215, e que prenunciava os direitos fundamentais dos cidadãos, como o de não ser preso sem o devido processo legal, a garantia de acesso à Justiça e algumas limitações ao poder do rei, especialmente contra abusos na cobrança de impostos.
Pois segunda-feira que vem, dia 15 de junho, a British Library comemora os 800 anos de promulgação da Carta Magna com a divulgação do resultado final de uma iniciativa que revela a importância que a sociedade inglesa dá às questões da cidadania, principalmente ao ensino dos conceitos básicos aos futuros cidadãos.
A pesquisa “Ajude a construir a Carta Magna da Era Digital” é voltada para jovens de 10 a 17 anos, não só do Reino Unido mas de todo o mundo. O objetivo é discutir a percepção que os jovens têm da internet, do seu alcance, suas potencialidades transformadoras e, principalmente, quais devem ser os direitos e deveres fundamentais dos cidadãos no mundo virtual.
São três áreas principais de interesse ‑ acesso na era digital, liberdade online e privacidade online ‑ e os jovens cidadãos são incentivados a votar em ações/direitos/deveres que mais se adequam às suas inquietações em relação à internet.
No dia 15 serão divulgadas as dez propostas mais votadas, que devem ser a base de uma espécie de Carta Magna da era digital. Até o momento, praticamente todas as dez se referem de algum modo à liberdade de acesso, à liberdade de expressão e ao impedimento do controle da internet por quaisquer empresas ou governos.
Considerando-se que, em 2013, o governo britânico instituiu filtros de controle de conteúdo na internet (o que pode ser considerado o ponto de partida para restrições mais agressivas à comunicação via web), a discussão sobre as liberdades em face à era digital são mais que oportunas.
Aqui no Brasil, o tema da liberdade de expressão também está no centro dos debates. E o Supremo Tribunal Federal acaba de dar uma resposta firme, ao aprovar por maiúsculos nove a zero a possibilidade legal de publicação de biografias não autorizadas.
No Reino Unido, não causa espanto que o filtro sobre a internet tenha gerado muita polêmica, e o governo correu para esclarecer que quem quiser pode solicitar a desativação do filtro, em respeito à liberdade de informação e de expressão, conceitos muito caros por lá. Aqui, o que causa espanto é o fato de que, para muitas personalidades, políticos e mesmo especialistas, a votação do STF pudesse ter outro desfecho que não o da aprovação unânime. Um grave desentendimento do princípio da liberdade de expressão, o qual se superpõe, definitivamente, ao do direito à privacidade quando se trata de informações relevantes sobre a vida de figuras públicas. Ou, como a própria ministra Carmen Lucia, relatora do processo, afirmou: “O que não admite a Constituição do Brasil é que sob o argumento de ter direito a ter trancada a sua porta, abolir-se a liberdade do outro de se expressar de pensar, de criar obras literárias especialmente, no caso, obras biográficas, que dizem respeito não apenas ao biografado, mas que diz respeito à toda a coletividade“.
Possíveis abusos devem ser resolvidos na instância adequada, a Justiça. E a ministra confirma: “A busca pelo Judiciário é um direito, o jurisdicionado há de ser respeitado. Ele pode vencer ou perder a demanda, mas sua ação judicial é sinal de respeito ao Estado e à sociedade, muito maior que a intolerância daqueles que sequer aceitam que alguém por pensar contrário, não há de lutar pelo seu direito“.
Não custa relembrar Rousseau: o homem nasce fundamentalmente bom, então é a sociedade quem o deturpa e macula. Isso é o mesmo que dizer que o homem não tem livre arbítrio, que não somos, de fato, responsáveis por nossas escolhas, boas ou más. A culpa é de um conceito abstrtato: a sociedade. Pois nossa crise de responsabilidade ‑ gerada por uma opção rousseauniana de parte da mídia, de extensos setores da educação e até da Justiça ‑ nos impede de enxergar os riscos de um relativismo moral galopante, que dilui responsabilidades, incentiva impunidades e celebra a corrupção de valores e conceitos que justamente sustentam as sociedades mais avançadas.
E é exatamente sobre a questão da liberdade de expressão a mais nova iniciativa da parceria Insper/Palavra Aberta, com a colaboração da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji, que tem sido amicus curie em diversos processos no Supremo relacionados ao tema. No próximo dia 23 de junho, em São Paulo, as duas instituições vão realizar o debate ” Remoção judicial de conteúdo e riscos à liberdade de expressão”, com a participação de vários especialistas.
Em pleno século XXI, quando um dos marcos da cidadania chega às suas oito centenas de existência, ainda é de se perguntar por que as liberdades, em especial a de informação e de expressão, são conceitos tão perigosamente solapados em todo o mundo.
Com a palavra, os jovens da British Library.
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