O Dia Internacional da Mulher (8/3) traz anualmente à cena pública a questão dos direitos da mulher. A propósito, nos surpreendem as inúmeras convergências sobre o assunto no pensamento de dois filósofos contemporâneos muito distanciados entre si, a judia Hannah Arendt e o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Nossa fonte foram textos publicados na revista galega Fiesta da Palabra Silenciada nº 22, “Os Feministas” (Galícia, Espanha. Concellaria da Mujer, Concello de Vigo, 2006).
Embora não fosse feminista, Hannah Arendt, cujo centenário de nascimento aconteceu ano passado (1906-2006), aborda aspectos-chave do feminismo, centrando-se na explicação das dicotomias que determinaram a exclusão histórica da mulher. Alimentado pela religião e filosofia, o pensamento dicotômico é gerador das injustiças, das desigualdades e do racismo. As dicotomias se baseiam nas diferenças genéricas, como se o par “homem/mulher” constituísse o modelo de organização fundamental, como se toda oposição fosse sexuada. Nas oposições binárias está sempre presente o pensamento patriarcal, como em sol/lua, céu/inferno, corpo/alma, razão/sentimento, natureza/cultura. Aliás, foi essa última que justificou não só a exclusão, bem como a exploração “natural” das mulheres ao longo dos séculos.
Mas há outras duas dicotomias determinantes para a opressão feminina: público/privado e ativo/passivo. Em A condição humana, Hannah Arendt divide o mundo em esfera pública e esfera privada. A palavra “privado” para Hannah recobra seu sentido primeiro: “Viver uma vida privada significa estar privado de coisas essenciais à vida humana, estar privado da realidade que provém de ser visto e ouvido pelos outros, estar privado de realizar algo mais permanente que a própria vida. O homem privado não aparece e assim é como se não existisse, qualquer coisa que realize carece de significado e conseqüência para os outros, e o que importa só a ele não interessa aos demais”. As conseqüências da privacidade foram nefastas para as mulheres. Nesse mundo doméstico, que concilia domínio e propriedade, pratica-se a violência contra a mulher, condenada à sujeição, à exploração, aos serviços gratuitos, fora do alcance da proteção legal. O espaço privado, desvalorizado, inexistente, torna necessária a existência do espaço público.
Segundo Hannah: “Tudo o que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos. Essa aparência constitui a realidade. O termo “público” significa o próprio mundo, enquanto comum a todos. Ele transcende nosso tempo vital, tanto quanto ao passado, como quanto ao futuro. A distinção entre as esferas público/privada é igual à diferença entre as coisas que devem mostrar-se e aquelas que devem permanecer ocultas.”.
Em razão das conquistas científico-tecnológicas, só na época moderna é que podem florescer a riqueza, a diversidade e o valor da intimidade humana, mas desde o começo da história, a parte corporal da existência sempre se manteve oculta, separada, como todas as coisas relacionadas às necessidades do processo da vida. Separados vivem servos e escravos, que com sua força de trabalho atendem às necessidades da sobrevivência, bem como as mulheres que com seu corpo garantem a perpetuação da espécie, reduzindo o papel da mulher à procriação. Uma novidade necessária para o feminismo – ao serem as mulheres consideradas apenas como corpo e natureza e secularmente exploradas como tal – foi situar o corpo no centro do discurso e utilizá-lo como meio de liberação.
Outra dicotomia nociva para a mulher é a do ativo/passivo. As imagens religiosas, a simbologia dos contos infantis, a poesia, a educação, a roupa, o sapato etc. levam a mulher a aceitar a passividade e o silêncio como “comportamentos adequados” a ela, e a passividade está unida ao mundo privado.
As mulheres são presas que se caçam facilmente, não sabem se defender. Na guerra, ficam com os velhos, as crianças e os doentes, enquanto os homens lutam. Mas a passividade feminina sempre conduz à morte, tanto na guerra, como na paz.
Assim, a dominação masculina, como sistema de dominação simbólica, se autoreproduz de forma inconsciente como alienação, como se fosse eterna, existisse desde sempre, posto que alienada da razão. Mas estas já são as idéias de Bourdieu a respeito do feminismo, que ficam para a próxima coluna. Até lá!
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