Júlio Roberto de Souza Pinto*
O Brasil adotou um sistema político que combina presidencialismo com parlamentarismo. Em que pese à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 ser quase que uma cópia da Constituição dos Estados Unidos da América, a nova República presidencialista brasileira manteve algumas das características da monarquia “parlamentarista” autoritária anterior. O Executivo, por exemplo, continuava a ter iniciativa de lei, em conformidade com o parlamentarismo europeu que inspirara a Constituição Política do Império do Brasil de 1824 (1).
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, de orientação nazi-fascista e produzida sob os auspícios de Getúlio Vargas, manteve outros institutos parlamentaristas introduzidos pelo regime instalado pelo golpe de 1930, encabeçado por Vargas, como a exclusividade do Executivo na iniciativa de certas leis, entre as quais as orçamentárias. Outro instituto próprio do parlamentarismo introduzido no período foi o sistema proporcional, empregado na eleição dos deputados e que naturalmente induz a uma multiplicidade de partidos políticos (2).
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, Carta autoritária que, outorgada por Getúlio Vargas, dissolveu a Câmara dos Deputados e o Senado, introduziu ainda outros institutos parlamentaristas no sistema constitucional brasileiro: a dissolução da Câmara dos Deputados pelo Executivo, as leis delegadas, os decretos-leis, as restrições às emendas parlamentares aos projetos de autoria do Executivo e a iniciativa de emenda constitucional pelo Executivo (3).
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, de índole democrática, conquanto se tenha inspirado na Constituição de 1891 e, por aquela via, na Constituição dos Estados Unidos, manteve alguns dos institutos parlamentaristas introduzidos nos regimes autoritários precedentes, tais como o proporcionalismo e o multipartidarismo dele decorrente, e a exclusividade do Executivo na iniciativa de determinadas leis, entre as quais as orçamentárias (4).
O regime autoritário de 1964, materializado nos inúmeros Atos Institucionais e nas Constituições da República Federativa do Brasil de 1967 e de 1969, reintroduziu os institutos parlamentaristas suprimidos no regime democrático de 1946: as leis delegadas, os decretos-leis, as restrições às emendas parlamentares aos projetos de lei de autoria do Executivo e a iniciativa de emenda constitucional pelo Executivo; e introduziu outros institutos próprios daquele sistema de governo, como a preferência para os projetos de lei encaminhados pelo Executivo (5).
O regime instituído pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em que pese ter mantido o sistema presidencialista de governo, conservou alguns dos institutos parlamentaristas introduzidos nos regimes autoritários anteriores, tais como o proporcionalismo e o multipartidarismo que dele decorre; as leis delegadas e os novos decretos-leis ou as medidas provisórias; a exclusividade do Executivo na iniciativa de certas leis, entre as quais as orçamentárias, a preferência para os projetos de lei de autoria do Executivo e a iniciativa de emenda constitucional pelo Executivo (6).
Muitos estudiosos, porém, entendem que essa combinação brasileira de presidencialismo com institutos parlamentaristas tem gerado efeitos negativos no comportamento político e parlamentar. Para Scott Mainwaring, a mistura tupiniquim do sistema presidencialista de governo com o sistema proporcional de eleição dos deputados e a consequente multiplicidade de partidos políticos estimularia, entre outros males, a indisciplina partidária no interior das câmaras representativas do povo e o distanciamento da vontade do eleitor nas deliberações legislativas. As coalizões governistas seriam construídas e mantidas de forma sempre precária e o controle dos eleitores sobre os eleitos seria dificultado, situação agravada pela fraca institucionalização dos partidos político (7).
De acordo com Octavio Amorim Neto e Gary Cox, a adoção do proporcionalismo de lista aberta numa sociedade tão heterogênea como a brasileira concorreria para a alta fragmentação partidária verificada no interior da Câmara dos Deputados. Essa elevada fragmentação da legislatura dificultaria tanto a tomada de decisões e a formação de pactos para a sustentação de planos econômicos quanto a responsabilização ou a accountability governamental (8). Para Jairo Nicolau, tal fragmentação também estaria associada à facilidade com que se pode criar um partido político, as agremiações políticas podem coligar-se e os deputados podem mudar de legenda (9).
Ainda segundo Nicolau, o sistema proporcional de lista aberta também estimularia a competição intrapartidária. Como os partidos não controlam as candidaturas, os colegas de legenda tenderiam a disputar acirradamente os votos dos simpatizantes da agremiação. Nessa disputa, em lugar de defender a ideologia e o programa do partido, o postulante a um assento na Câmara dos Deputados enfatizaria as características que o diferenciam dos colegas de legenda. Tal competição intrapartidária seria transportada para o âmbito da Câmara dos Deputados, com reflexos no comportamento parlamentar (10).
Há várias legislaturas, o Congresso Nacional vem apreciando diferentes propostas de reforma do sistema político. Na 50ª Legislatura (1995-1999), por iniciativa das lideranças das bancadas partidárias que integravam a base de sustentação do Governo Fernando Henrique Cardoso, o Senado Federal discutiu a substituição do sistema proporcional pelo sistema distrital misto, o fim das coligações nas eleições proporcionais, o estabelecimento de uma cláusula de desempenho eleitoral ou barreira ao funcionamento parlamentar e o financiamento de campanha exclusivamente público (11).
Na legislatura seguinte (1999-2003), as lideranças governistas mudaram de estratégia: em lugar de alterações que implicassem emendamento da Constituição, resolveram propor modificações passíveis de ser operadas por lei. Em outras palavras, em vez de alterações que exigissem a aprovação de uma maioria qualificada, resolveram propor modificações que demandassem a aprovação de uma maioria simples (12). No lugar do voto distrital misto, por exemplo, propuseram o voto proporcional em lista fechada.
Na 52ª Legislatura (2003-2007), já no Governo Luís Inácio Lula da Silva, a Câmara dos Deputados apreciou várias propostas de reforma política, inclusive as oriundas do Senado Federal.
Essas propostas, consubstanciadas no Projeto de Lei nº 1210/2007, foram objeto de caloroso debate no Plenário da Câmara dos Deputados no início da presente legislatura (2007-2011), logo depois da eclosão da crise política conhecida como “Escândalo do Mensalão”. Nos termos da justificação do PL nº 1210/2007, que reapresentou a proposta de lista fechada, “na medida em que boa parcela de nossa representação política enfrenta o desafio eleitoral através de esforços e estratégias individuais, inclusive no financiamento de campanhas, certamente seu comportamento com relação ao partido não terá as mesmas características que teria, caso o partido fosse relevante para a escolha dos eleitores”.
Ainda na forma da justificação do PL nº 1210/2007, que voltou a propor o fim das coligações nas eleições proporcionais, os partidos se coligam para contornar a barreira do quociente eleitoral. “Os votos dos partidos coligados se totalizam em nível de coligação e, na atribuição de cadeiras, segue-se a ordem de votação nominal dos candidatos, como se de apenas um partido se tratasse. A mecânica mencionada é habitualmente ignorada pelo eleitor, que sufraga um candidato, sem saber que o voto que a ele confere pode, na verdade, vir a eleger candidato de outro partido (…). A não permanência da coligação após o pleito, no trabalho legislativo, acentua o caráter oportunista e episódico da aliança”.
Ainda nos moldes da justificação do PL nº 1210/2007, que reapresentou a proposta de financiamento de campanha exclusivamente público, “hoje em dia, as campanhas se tornaram caríssimas, o que leva à necessidade de abundantes recursos financeiros, em geral não disponíveis para partidos e candidatos. A necessidade de recursos é suprida seja pelas contribuições privadas, de cidadãos e, sobretudo, de grandes empresas, seja pelo uso da máquina administrativa. Em ambos os casos, são maculadas a normalidade e a legitimidade das eleições. Na primeira situação, gera-se dependência da representação com respeito aos seus financiadores, o que não é sadio para a vida democrática. Na segunda, configura-se uma deturpação do princípio republicano, desigualando os competidores e criando-se uma patrimonialização da coisa pública em proveito de poucos”.
A proposta de reforma política materializada no PL nº 1210/2007, no entanto, foi rejeitada pelo Plenário da Câmara dos Deputados no início do segundo período legislativo de 2007. As lideranças do PCdoB, do PT, do PPS, do PSOL, do PMDB, do PSDB e do DEM no começo se posicionaram a favor da proposta. O PCdoB, o PT e o PSDB inclusive fecharam questão nesse sentido. Já as lideranças do PDT, do PSB, do PV, do PP, do PR, do PSC e do PTB desde o início eram contrárias. No caso específico do PDT, havia uma diferença de posição entre a direção nacional do partido e sua liderança na Câmara (13).
Com o início da discussão no Plenário, influenciado pelo grupo paulista, o PSDB mudou de posição. O partido chegou até mesmo a outra vez fechar questão, desta feita contra a proposta de reforma política. As lideranças tucanas se convenceram de que as regras políticas vigentes de algum modo seriam mais favoráveis à formação de uma base de apoio à candidatura de José Serra à Presidência da República. Alguns deputados do PSDB de outras regiões do país, entretanto, mantiveram-se favoráveis à proposta (14).
Ao mesmo tempo, as lideranças do PP, do PR e do PTB, com a conivência da liderança do PMDB crescentemente tensionada pelo grupo do Rio de Janeiro, contrárias a esta ou qualquer outra proposta de reforma política efetiva, pressionavam o Governo (15).
Com a mudança de posição do PSDB e a crescente pressão do PP, do PR, do PTB e do grupo de peemedebistas do Rio, os líderes do PPS e do PMDB ao final liberaram as bancadas. Resultado: a lista fechada foi rejeitada e com ela foi virtualmente arquivada a proposta de reforma política.
Eis aí a expressão máxima da influência do sistema político sobre o comportamento parlamentar: partidos fracos, com pouco enraizamento social, destituídos de identidade ideológico-programática e de coesão, constituídos de políticos individualistas, particularistas, apartidários e governistas, bem adaptados, portanto, às regras políticas vigentes, não querem e dificilmente poderiam mudá-las.
Mas não há nada de errado com os institutos parlamentaristas introduzidos no sistema constitucional brasileiro em si mesmos. O sistema proporcional e o multipartidarismo dele decorrente, as leis delegadas e as medidas provisórias, a iniciativa legislativa e a iniciativa exclusiva de certas leis pelo Governo, a preferência para os projetos de lei do Governo, a iniciativa de emenda à Constituição, enfim o exercício de poderes legislativos pelo Governo e o protagonismo do Governo nas atividades parlamentares funcionam bem em países parlamentaristas europeus. Nesses países, entretanto, o governo é formado e mantido pelo Parlamento, e os parlamentares dispõem de eficientes mecanismos de controle das atividades governamentais, tais como as questões ao governo e as moções de censura (16).
O problema no Brasil não se deve à combinação de presidencialismo com parlamentarismo, mas sim à mistura malfeita de institutos de um e do outro sistema de governo. Aqui, a coligação que ganha as eleições não é a coalizão que governa. Enquanto na Europa o governo é formado e mantido pela maioria do Parlamento, no Brasil depois de eleito é o que o presidente da República procura formar uma maioria no Congresso Nacional que dê sustentação a seu governo. Com muito custo consegue formá-la e com maior custo ainda logra mantê-la.
Além disso, devido ao voto proporcional em lista aberta ou ao voto em pessoas e não em programas partidários e às coligações eleitorais oportunistas, há no Brasil uma multiplicidade de partidos fracos, com pouca capilaridade social, destituídos de identidade programática e indisciplinados, constituídos de políticos individualistas, personalistas e com longo histórico de migração partidária. Resultado: os custos políticos da formação e da manutenção de uma maioria congressual têm sido altíssimos. Escândalos como o Mensalão dão uma boa medida disso.
Afora isso, para garantir alguma governabilidade no país, ao longo dos tempos tem-se transferido importantes parcelas de poder legislativo do Congresso Nacional para a Presidência da República, notadamente nos períodos autoritários. Como se isso não bastasse, tem-se dotado o presidente da República de eficientíssimos instrumentos de cooptação de congressistas, tais como a disponibilidade sobre o Orçamento da União e sobre centenas de milhares de cargos públicos. Resultado: o presidente da República legisla sem qualquer responsabilidade política e controla o Congresso Nacional, cooptando parlamentares da oposição, o que põe abaixo os dois principais pilares do governo democrático: a representação e a accountability.
Em conclusão, cumpre esclarecer que não se está aqui a defender um ou outro sistema eleitoral. O sistema majoritário ou distrital e o bipartidarismo dele decorrente funcionam razoavelmente bem no presidencialismo norte-americano, assim como o sistema majoritário ou distrital misto no parlamentarismo alemão. Agora, se é para manter o sistema proporcional e o multipartidarismo que dele decorre, os protagonistas têm de ser os partidos e não políticos individuais, o que só é possível com a lista fechada.
(1) PINTO, Júlio R. S. Poder Legislativo brasileiro: institutos e processos. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 24-30
(2) Id., ibid., p. 31-35
(3) Id., ibid., p. 35-40
(4) Id., ibid., p. 40-44
(5) Id., ibid., p. 45-51
(6) PINTO, Júlio R. S., Op. cit., p. 52-61
(7) MAINWARING, Scott. Presidentialism, multipartism, and democracy: the difficult combination. Comparative Political Studies, v. 26, n. 2, 1993, p. 198-228; MAINWARING, Scott, e TORCAL, Mariano. Teoria e institucionalização dos sistemas partidários após a Terceira onda de democratização. Opinião Pública, v. XI, n. 2, 2005, p. 249-286
(8) AMORIM NETO, Octavio, e COX, Gary. Electoral institution cleavage structure, and the number of the parties. American Journal of Political Science, v. 41, n. 1, 1997, p. 149-174
(9) NICOLAU, Jairo. Multipartidarismo e democracia: um estudo sobre o sistema partidário brasileiro (1985-1994). Rio de Janeiro: FGV Editora, 1996
(10) Id. Voto personalizado e reforma eleitoral no Brasil. In SOARES, Gláucio A. D. e RENNÓ, Lucio (Org.). Reforma política: lições da história recente. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006, p. 23-33
(11) ARAÚJO, Caetano E. P. Reforma política: desenho de um debate. In MESSENBERG, Débora, PINTO, Júlio R. S. et al (Org.). Estudos legislativos: pensamento e ação política. Brasília: Câmara dos Deputados, Senado Federal e Universidade de Brasília, 2008, p. 55-70
(12) Id., IBID
(13) PINTO, Júlio R. S. Entre um sistema eleitoral dispersivo e um regramento parlamentar concentrador: o comportamento dos deputados federais da 53ª Legislatura. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de Brasília, 2010
(14) Id., IBID
(15) Id., IBID
(16) PINTO, Júlio R. S. Poder Legislativo brasileiro: institutos e processos. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 5-24
*Júlio Roberto de Souza Pinto é doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, mestre em Liberal Arts por Wheaton College (Wheaton-ILL, EUA), especialista em Direito Legislativo pela Universidade do Legislativo Brasileiro (Senado Federal) e pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e em Educação pela Universidade Mackenzie (São Paulo). É pesquisador e professor do Centro de Formação e assessor jurídico da Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados, advogado e autor de vários livros e artigos
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