Com um discurso com uma eloqüência que há muito não se via no plenário da Câmara, o deputado Cezar Schirmer (PMDB-RS) apresentou a extensa lista de indícios nos quais se baseou para pedir a cassação de João Paulo Cunha (PT-SP) por quebra do decoro parlamentar. E conclamou os colegas a demonstrarem que nem todos são iguais no Congresso.
"Neste turbilhão de acontecimentos que envolveram dois ex-presidentes da Câmara, seis presidentes de partido e sete líderes de bancada, a população se pergunta, atônita, perplexa: sobra alguém? Sobra sim: nesta Casa e fora dela. Não somos iguais. Somos desiguais em conduta e em devoção ao Brasil, bem mais do que se pensa, mas bem menos que deveria ser. Discretos, tímidos, fomos reduzidos a fantasmas", disse o deputado.
"Os lugares mais quentes do inferno estão reservados àqueles que, em grave crise moral, permanecem na neutralidade" disse Schirmer, ao relembrar uma passagem do clássico A divina comédia, de Dante Alighieri.
Schirmer recomendou a perda do mandato de João Paulo com base em dois pontos centrais: tráfico de influência e falta com a verdade. "Não lhes peço ou pedi voto ou apoio. Nem vou fazê-lo. Cumpri meu dever, que cada um cumpra o seu com a sua consciência", afirmou o relator.
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O peemedebista relacionou pelo menos dez irregularidades nos contratos firmados pela Câmara, durante a gestão de João Paulo, com a agência de publicidade SMP&B, de Marcos Valério. Disse que, de todos os processos analisados pelo Conselho de Ética, o do ex-presidente da Câmara foi aquele que reuniu o maior número de provas materiais.
O deputado disse que a agência de Valério recebeu vantagens descabidas e lembrou que a empresa só não recebeu honorários por duas das 112 subcontratações feitas para a Câmara. "(A SMP&B) Ganhou R$ 1,5 milhão para prestar qual serviço? Nenhum. Para fazer o quê? Para fazer absolutamente nada. Para servir apenas como agenciadora de outras empresas. Não há resposta convincente, nem poderia haver", disse.
O relator também lembrou que Valério presenteou João Paulo com uma caneta Mont Blanc e pagou passagem aérea e hospedagem de três dias, no Rio de Janeiro, para a secretária do ex-presidente da Câmara e sua filha. Afirmou, ainda, que o PT pagou R$ 150 mil à SMP&B para a campanha do deputado à presidência da Casa. Schirmer citou também a proximidade das datas do saque, dos encontros entre os dois e da publicação do contrato de publicidade da agência com a Câmara.
"Qual o padrão ético comum da empresa (SMP&B) em relação a outros órgãos do governo? Ela opera com os Correios, a Eletronorte e a Visanet de forma irregular. Não foi diferente com a Câmara. Qual empresa repassou R$ 50 mil à Câmara e foi matriz do valerioduto? A SMP&B, de Marcos Valério."
Schirmer abriu seu discurso com uma dura resposta a João Paulo, que o chamou de mentiroso e omisso durante a votação do relatório no Conselho de Ética, em março. "Eu não minto, deputado João Paulo Cunha. Vossa Excelência não me conhece. Não somos iguais", afirmou o relator.
O peemedebista disse que não respondeu à altura as acusações de João Paulo, naquele momento, porque atribuiu as declarações ao "calor da refrega": "Não tem avaliações subjetivas, e sim fatos comprovados. É objetivo e direto. É um parecer. Não um panfleto", destacou Schirmer.
Veja a íntegra do discurso do relator:
"O SR. PRESIDENTE (Inocêncio Oliveira) – Tem V.Exa. a palavra.
O SR. CEZAR SCHIRMER (PMDB-RS. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, permitam-me uma saudação inicial aos meus colegas do Conselho de Ética, em especial ao nosso Presidente, o eminente Deputado Ricardo Izar, que tão historicamente tem resistido a tudo por devoção ao Parlamento e ao Brasil.
Cumpro tarefa, para a qual fui designado, por sorteio, no Conselho de Ética, em 18 de outubro de 2005, relatar a Representação nº 44, Processo nº 905, no qual são imputados ao Exmo. Sr. Deputado João Paulo Cunha atos que afrontam o Código de Ética e Decoro Parlamentar desta Casa.
Cumpro meu dever em tarefa que não pedi e nem me agrada, mas que fui chamado a cumprir e procurei exercê-la com zelo, isenção, responsabilidade e espírito público. Este relatório não tem a marca da piedade, sentimento próprio de espíritos superiores, próximos da elevação espiritual e da divindade. Procurei marcá-lo com o timbre da verdade e da justiça, conquista e aspiração do espírito humano e instrumento de evolução moral das civilizações.
Não tem avaliações subjetivas e sim fatos comprovados. Não tem adjetivos nem ilações e sim atos praticados. Não obedece a suposições e sim à realidade. É objetivo e direto. É um parecer, não um panfleto. Baseia-se fundamentalmente no depoimento do Sr. João Paulo Cunha e nos documentos, acostados ao processo, pela defesa que, por mais incrível que possa parecer, foram determinantes no convencimento do Relator quanto a culpabilidade do representado.
Aos argumentos sólidos, minuciosos, aprofundados, tecnicamente irretocáveis, baseados em fatos, atos, depoimentos e documentos, houve a contraposição de ofensas pessoais, na derradeira manifestação do Deputado João Paulo Cunha, no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar.
Eu não menti. Eu não minto, Deputado João Paulo Cunha. V.Exa. não me conhece. Não somos iguais. Não respondi e nem deveria, pois as atribui ao calor da refrega, aos dolorosos momentos vividos por todos e à convicção de que o argumento de quem não tem argumentos é a adjetivação desqualificadora do oponente e não do conteúdo de sua manifestação.
Tais agressões, ouvidas por mim em silêncio, não fazem justiça a minha vida pública, nem àreconhecida relação respeitosa com seus pares do ex-Presidente da Casa, e muito menos contribuíram para valorizar sua defesa.
Não convoquei sua esposa para depor, embora pudesse, em respeito a sua família e a S.Exa., como pai.
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, o processo que hoje será julgado por V.Exas. fundamenta-se em relatório preliminar conjunto das CPMIs dos Correios e do Mensalão, nas conclusões da Comissão de Sindicância e na Representação nº 44/05, da Mesa Diretora da Casa, contra o Deputado João Paulo Cunha e baseia-se em 3 pontos.
Primeiro, um saque de 50 mil reais, realizado pela Srs. Márcia Milanesi Cunha, esposa do representado, em 4 de setembro de 2003, às 16h58min, no Banco Rural de Brasília, contra a empresa SMP&B, de propriedade do Sr. Marcos Valério, resultado de relacionamento intenso entre o representado e o empresário.
Segundo, a omissão de informações relevantes e a ocultação de fatos importantes para justificar o comparecimento e o saque realizado no Banco Rural de Brasília.
Terceiro, a contratação pela Câmara dos Deputados, na gestão do Sr. João Paulo Cunha, da empresa SMP&B Propaganda Ltda., contrato este, em sua execução, marcado por acusações de irregularidades.
São esses os fatos imputados na inicial da representação da Mesa da Câmara dos Deputados, de forma que, a partir daí, a investigação ético-disciplinar pôde aprofundar-se na comprovação, na apuração e na reconstituição dos episódios mais marcantes desse relacionamento, as circunstâncias em que ocorreu o referido saque, a origem dos recursos, sua destinação, a tentativa de construir uma versão e a evidência da prática de irregularidades e favorecimentos à SMP&B no processo licitatório de sua contratação e na execução do contrato.
Foram asseguradas todas as formas e prazos de defesa, observados todos os procedimentos e trâmites preestabelecidos, o contraditório foi levado à exaustão e a defesa foi exercida ampla, restrita e plenamente, na forma da lei e da Constituição.
Dos fatos e procedimentos apurados em relação ao representado.
Em fevereiro de 2003, o Exmo. Sr. Deputado João Paulo Cunha foi eleito Presidente da Câmara dos Deputados, como candidato único, tendo recebido em torno de 90% dos votos deste plenário.
Para realizar sua campanha, sem concorrente, foi contratada pelo Diretório Nacional do PT a empresa SMP&B, do Sr. Marcos Valério, por 150 mil reais. Recursos esses devidamente pagos e contabilizados, origem da relação existente entre o representado e o Sr. Marcos Valério, tendo diminuída a intensidade e a assiduidade dessa relação e contatos nos meses seguintes.
Nesse período de 2003, o representado foi presenteado pelo Sr. Marcos Valério, no dia de seu aniversário, com uma caneta Mont Blanc, e sua secretária pessoal recebeu, por dádiva do proprietário da SMP&B, o Sr. Marcos Valério, passagens e hospedagem no Rio de Janeiro para si, sua família e sua filha durante 3 dias.
Tais presentes foram doados ao Programa Fome Zero em agosto de 2005, 2 anos depois de terem sido recebidos e após as denúncias de tais fatos terem vindo a público.
Em 3 de setembro de 2003, o Representado recebe, na residência oficial da Presidência da Câmara dos Deputados, o Sr. Marcos Valério, proprietário da empresa de publicidade SMP&B, para um café da manhã, configurando proximidade inaudita entre o ex-Presidente e o empresário mineiro, que se desloca a Brasília, segundo a versão apresentada, para um ameno e simples cumprimento pela atuação parlamentar do Representado. Não é crível.
Em 4 de setembro de 2003, um dia após o café da manhã, a portas fechadas, na residência oficial, realiza-se o saque de 50 mil reais no Banco Rural, disponibilizados pela SMP&B do Sr. Marcos Valério ao Representado. Poucos dias depois, em 14 de setembro, é publicado o edital de concorrência pública que beneficiaria a empresa SMP&B do empresário em questão.
Dia 3, o café; dia 4, o saque; dia 14, a concorrência.
A versão fantasiosa.
Em 4 de setembro de 2003, um dia após esse café da manhã, a portas fechadas, na residência oficial, realiza-se o saque de 50 mil reais no Banco Rural, disponibilizados pela SMP&B do Sr. Marcos Valério ao Representado. Poucos dias depois, em 14 de setembro de 2003, é publicado o edital de concorrência pública, que beneficiaria a empresa SMP&B.
A defesa juntou aos autos faturas de serviços de tevêa cabo prestados pela TVA, alegando que a esposa do representado foi ao Banco Rural para reclamar de cobrança indevida, corroborando informação contida no Ofício 421, de 2005, primeiro ofício dirigido ao Presidente da CPMI dos Correios, Senador Delcídio Amaral.
Tal fatura, processada em 2 de dezembro de 2003, postada no dia 3 de setembro de 2003, na melhor das hipóteses, chegou à residência do Representado, em Osasco, São Paulo, no dia 4 de setembro de 2003. Surpreendentemente, nesse mesmo dia, em Brasília, a 1,5 mil quilômetros de distância, sob a compulsão da celeridade, a esposa do representado vai ao Banco Rural em Brasília reclamar de uma fatura que venceria dia 13 daquele mesmo mês por uma diferença de cem reais.
Não é verossímil. Não é assim que acontece no mundo real. Poderia, se essa fosse a razão verdadeira, reclamar pelo 0800, pela Internet, ou reclamar para a empresa prestadora do serviço de TV a cabo, jamais no Banco Rural, às 16h58min.
Ainda comprovando a montagem de uma versão, a esposa do representado esteve no Banco Rural 3 vezes, segundo documentos juntados aos autos pelo Relator, sem contestação da Defesa. Uma vez, segundo informação do voto vencido no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, da Deputado Angela Guadagnin, dando como verdadeira a versão da defesa a ida ao Banco Rural aconteceu às 16h58 minutos. Portanto, após o expediente. Repito, após o expediente. Também não é verossímil. Ninguém vai ao banco fora do expediente para reclamar de um valor equivocado. A ida ao Banco Rural fora do expediente normal foi feito com o propósito, único e exclusivo de sacar 50 mil reais, conforme recibo assinado pela Sra. Márcia Milanesi Cunha referente ao cheque emitido pela SMP&B Propaganda Limitada, Agência Assembléia, em Belo Horizonte.
Isto revela que o primeiro Ofício nº 421, de 2005, dando a versão do Representado para os acontecimentos tinham claro objetivo de ocultar informações relevantes e construir versão falsa a respeito da ida de sua esposa ao Banco Rural para efetuar o saque.
O primeiro ofício foi retificado pelo ofício nº 447/2005, depois da divulgação da lista do Marcos Valério.
Ao informar à CPMI dos Correios que o comparecimento de sua esposa ao Banco Rural se deu em função de uma controvérsia relativa a faturas de um serviço de TV por assinatura, deixando de informar o referido saque, ocorrido sob sua instrução naquela mesma data, o Representado teve em vista seu interesse pessoal de não revelar informações sobre o fato sabidamente suspeito no contexto da apuração.
Tinha razão o Presidente Lula quando afirmou em entrevista em Paris:
A desgraça da mentira é que, ao contar a primeira, você passa a vida inteira contando mentira para justificar a primeira que contou.
A defesa também juntou aos autos para justificar o recebimento e a destinação do dinheiro, três notas fiscais com datas de 10 de setembro, 30 de setembro e 19 de dezembro de 2003, relativas à contratação de pesquisas eleitorais em Osasco – SP e outros Municípios.
Mais uma vez, vislumbra-se a tentativa de montagem de uma versão.
Informações da Secretaria da Fazenda de Guaratinguetá, São Paulo, sede da DATAVALE, empresa contratada para fazer a pesquisa, a Prefeitura afirma: O recolhimento dos impostos das notas fiscais de nºs 151, 152, 153 foram pagas em 27 de julho de 2005; e mais, a empresa DATAVALE não emitiu outras notas fiscais no mesmo talonário de numeração de 151 a 200.
Estranho que em um talão de 50 notas apenas 3 tenham sido usadas num período de 2 anos, e, mais estranho ainda, que a quitação dos impostos devidos pela empresa sóocorreu 2 anos depois da data da pesquisa, quando a crise havia sido deflagrada e quando o Representado precisava construir uma história convincente a respeito do destino dos 50 mil reais.
Curiosidade à parte, foi o passeio do pacote do dinheiro, originário de um cheque contra a empresa SMP&B do Banco Rural em Belo Horizonte, recebido em Brasília, em julho, que deslocou-se para São Paulo, daí para Osasco, e lápermaneceu até chegar em Guaratinguetá, seu destino final, segundo a versão da Defesa, em setembro ou dezembro.
Por que o dinheiro fez tantas escalas? Não teria sido mais fácil fazer o pagamento direto pelo Diretório Nacional do PT à empresa de pesquisa, transferência eletrônica ou cheque contabilizável nas contas do partido? Por que, quando a SMP&B prestou serviço ao Diretório Nacional do PT para a campanha do Deputado João Paulo Cunha àPresidência da Câmara dos Deputados, tudo foi pago, registrado e devidamente contabilizado? Por que, 6 meses depois, já na Presidência da Câmara dos Deputados, tudo foi feito na mais absoluta clandestinidade?
Estamos diante de um exemplo evidente de uma vantagem indevida percebida pelo Representado, que se apropriou de recursos não declarados, de origem suspeita, com destinação duvidosa. Tudo sob o manto protetor do oculto, da informalidade inaceitável nas relações público-privadas.
O que também causa estupefação é o fato de o Representado, à época Presidente desta Casa com o nosso voto, ter se envolvido em 2004 na indicação de uma empresa de publicidade para a prestação de serviço de propaganda ao seu candidato a prefeito em Osasco. A empresa do Sr. Marcos Valério édo mesmo grupo de empresas da origem do saque de 50 mil reais e manteve contrato de 10 milhões de reais com a Câmara dos Deputados.
E mais, curiosa e coincidentemente, na lista dos recebedores do Sr. Marcos Valério, as duas únicas citações a campanhas eleitorais de Municípios são em São Bernardo e Osasco.
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, o terceiro ponto motivador desta representação das CPMIs dos Correios e do Mensalão, da Corregedoria e da Mesa desta Casa contra o Representado diz respeito à análise da concorrência promovida por esta Casa em setembro de 2003 para a contratação de serviços de publicidade e propaganda.
Passo a focalizar, mesmo rapidamente, o elenco de falhas, irregularidades e ilegalidades cometidas na Concorrência nº 11, de 2003, e no Contrato nº 2003/204.0 dele decorrente, bem como sua execução.
Vale ressaltar como preliminar a estranheza que causa o fato de que venceu a Concorrência nº 11/2003 a SMP&B, que na Concorrência nº 09/2001, quando presidiu a Casa o Deputado mineiro e hoje Governador do Estado Aécio Neves, esta mesma SMP&B não atingiu a pontuação global mínima exigida pelo edital, obtendo a menor média das 9 empresas licitantes, ficando em última colocação.
O relatório final da CPMI dos Correios recentemente lido e o parecer deste Conselho de Ética exaurem com profundidade técnica a ação e a omissão, o envolvimento direto, a responsabilidade do gestor nas irregularidades encontradas, queem seguida realço: contratação e realização de serviços sem licitação e não previstos no objeto do contrato; ausência de projeto básico relativo aos serviços de propaganda; prorrogação irregular de contratos; inexecução do serviço de consultoria; ausência de controle e fiscalização sobre veiculações de anúncios; subcontratação e fuga ao processo licitatório; fiscalização deficiente das cláusulas contratuais; despesas em valores superiores ao orçado; utilização de critérios subjetivos no julgamento da concorrência; vício do edital que permitiu a celebração de contrato guarda-chuva; volume excessivo de subcontratações; vantagens descabidas a SMP&B; subcontratações de pesquisas do Vox Populi para atender a interesse político pessoal.
Destes apontamentos, desejo aprofundar apenas 2, para maior clareza: ao se analisar a execução do contrato 2003/2004, entre a Câmara dos Deputados e a SMP&B , em que consta o montante pago às subcontratações e o montante pago por serviços diretos realizados pela empresa vitoriosa na licitação a SMP&B Propaganda Ltda., observa-se que, do total realizado de 10 milhões 745 mil 902 reais e 17 centavos brutos, apenas 17 mil e 91 reais foram pagos por serviços executados diretamente pela empresa do Sr. Marcos Valério, ou seja, mais de 99% dos serviços foram subcontratados. Ou, para ser mais preciso, os serviços prestados diretamente pela SMP&Brepresentaram 0,01% do total gasto, prática vedada pelo art. 78 da Lei nº 8.666/93 e expressamente proibido no item 9.7 do Edital nº 11/2003. Ou seja, a empresa contratada realizou apenas 0,01% dos serviços; o resto, 99,9% foi subcontratado.
Curiosamente, a despesa relativa aos 52 processos de execução do contrato da SMP&B com a Câmara dos Deputados foi autorizada formal e expressamente pelo Presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha.
É o único contrato da Câmara em que isto aconteceu, pois normalmente a execução dos contratos e respectivas despesas é de competência do órgão fiscalizador, é da Diretoria Geral.
Outro fator que merece atenção relaciona-se com vantagens descabidas à empresa do Sr. Marcos Valério. Das 118 subcontratações realizadas, a empresa só não recebeu honorários em 2, ou seja, dos 9 milhões 654 mil 928 reais e 77 centavos, líquidos, pagos pela Câmara Federal durante o contrato, a SMP&B Propaganda recebeu a título de honorários pelas subcontratações 1 milhão 75 mil318 reais e 22 centavos.
Ganhou 1 milhão e 75 mil reais para prestar qual serviço? Nenhum. Para fazer o quê? Nada, rigorosamente nada. Mas, então, qual a vantagem que a empresa privada teria em participar de uma licitação, com todos os ônus burocráticos que isto representa, firmar contratos com a administração pública, assumindo responsabilidade pelo serviço licitado, para durante a execução do contrato servir somente como agenciadora de outras empresas? Como barriga de aluguel de outros interesses?
Não há resposta convincente. Nem poderia haver. Mas se nenhuma dessas práticas irregulares tivesse sido denunciada, bastaria perguntar:
Qual a empresa de propaganda que transacionou com a Câmara dos Deputados na gestão do Deputado João Paulo Cunha? A SMP&B Propaganda Ltda. Qual é o proprietário da SMP&B? O Sr. Marcos Valério.
Qual o padrão ético comum de atuação da empresa de propaganda do Sr. Marcos Valério em relação a outros órgãos da administração pública? Esta empresa de propaganda SMP&B opera em todos os seus contratos com o Governo Federal, Correios, Banco Popular do Brasil, ELETRONORTE, Visanet e muitos outros de forma irregular, cometendo ilegalidades em prejuízo do Erário. Não foi diferente com a Câmara dos Deputados. Qual a empresa que repassou 50 mil reais ao ex-Presidente da Câmara dos Deputados e foi a matriz do valerioduto? A SMP&B, do Sr. Marcos Valério.
Sr. Presidente, Sras. Deputadas, Srs. Deputados, citei aqui fatos incontroversos e relevantes, e outros irrelevantes. Os irrelevantes com propósito de revelar as circunstâncias, o cenário, a moldura emocional e psicológica para aproximar de V.Exas., em função da distância temporal, a compreensão dos acontecimentos fatídicos causados pelas relações não republicanas do representado com o Sr. Marcos Valério.
Não foi o famoso café da manhã com Marcos Valério um dia antes do saque, não. Não foi nem a presença da empresa do Sr. Marcos Valério na eleição de Osasco em 2004; nem a inclusão da campanha de Osasco na lista de Marcos Valério.
Não foi a caneta Mont Blanc, nem a viagem da secretária ao Rio de Janeiro custeada pelo Sr. Marcos Valério, nem a entrega desses presentes ao Fome Zero 2 anos depois de recebidos; não, é claro que não.
Não foram as notas em seqüência, em datas espaçadas ao longo de 3 meses; nem o pagamento dos impostos municipais 2 anos depois da realização das pesquisas e depois da publicação das denúncias.
Não foram os encontros impróprios em Brasília e São Paulo com o Sr. Marcos Valério; nem o passeio do dinheiro mal havido entre Belo Horizonte, Brasília, São Paulo, Osasco e Guaratinguetá.
Não foi a açodada ida ao Banco Rural em Brasília reclamar de 100 reais na fatura de TV a cabo, no mesmo dia em que a fatura chegou a Osasco; nem a assinatura da esposa do representado no recibo de 50 mil reais da SMP&B em 04 de setembro, às 16h58min, depois do horário oficial de funcionamento do Banco.
Não foi o relatório de auditoria da Secretaria Interna da Câmara dos Deputados, apontando irregularidades no contrato da SMP&B com a Câmara dos Deputados; nem o relatório preliminar do Tribunal de Contas da União na mesma direção.
Não, não foi. Não foi a tentativa frustrada de construir uma versão fantasiosa nem a de imputar tudo a incompatibilidades pessoais ou partidárias. Nem mesmo o fato de que atos praticados no exercício da Presidência desta Casa adquirem dimensões exponenciais, pois a quem mais se deu mais será exigido.
Nada disso. Isso é apenas um pano de fundo. O cenário, a moldura, as circunstâncias, o ambiente no qual os fatos aéticos aconteceram e os atos indecorosos foram praticados. De todos os processos analisados no Conselho de Ética, a materialidade dos fatos e atos atribuídos ao Deputado João Paulo Cunha é a mais indiscutível, incontestável e indubitavelmente comprovada.
Houve a comprovação do saque de 50 mil reais contra SMP&B. Houve a comprovação da omissão intencional de informação relevante e da ocultação da verdade. Houve a constatação de ações e atos aéticos inesivos ao interesse público na execução e na contratação da SMP&B pela Câmara dos Deputados.
Todos esses fatos comprovados e sem explicações convincentes configuram flagrante afronta ao Art. 4º do Código de Ética e Decoro Parlamentar, incompatível com o decoro parlamentar e a aplicação da perda de mandato em conseqüência conforme o Art. 55 da Constituição Federal.
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, meus caros colegas, não lhes pedi voto ou apoio nem vou fazê-lo. Cumpri meu dever, cada qual cumpra o seu, segundo a sua consciência. Somos homens e mulheres livres. Testemunhamos crise ímpar na vida brasileira, sem precedentes, desde a Independência.
Neste turbilhão de acontecimentos que envolvem dois ex-Presidentes da Câmara dos Deputados, sete Presidentes de partido, 6 Líderes de bancada, Ministros e Lideranças expressivas, a Nação, atônita, perplexa, sofrida, assistindo à tamanha frouxidão moral, pergunta: Sobra alguém? Sobra, sim, nesta Casa e fora dela. Não somos iguais, somos diferentes, somos desiguais em ideologias, partidos e visão de mundo. Somos desiguais em condutas, compromissos e devoção ao Brasil. Aqui existem homens e mulheres de bem, bem mais do que se pensa, mas bem menos do que deveria.
Discretos, tímidos, reservados, silenciosos, envergonhados até, fomos reduzidos, nesta crise, a fantasmas de nós mesmos pela prevalência do espírito de corpo sobre o espírito da Nação que quer ética, justiça, honradez e dignidade.
E se não sairmos, homens e mulheres de bem desta Casa, da passividade, da omissão, do alheamento e da indiferença, ignorando o clamor das ruas vamos ouvir logo, logo, a voz vingativa das urnas. E tão grave, tão ruim quanto um Parlamento fechado é um Parlamento desmoralizado.
Aprendemos com a Divina Comédia de Dante: os lugares mais quentes do inferno estão reservados àqueles que em tempo de grave crise moral permanecem na neutralidade.
Quero homenagear aos homens e às mulheres de bem desta Casa, de todos os partidos, do alto, do médio e do baixo clero, ou até os sem clero como eu, e convocá-los ao bom combate, homenageando um dentre tantos que não sucumbiu às luzes e ao fascínio do poder e se mantém fiel aos seus compromissos éticos e à sua história, o Deputado Antonio Carlos Biscaia, ex-Presidente da Comissão e Justiça, que disse em palestra a universitários em 20 de janeiro, no Rio de Janeiro: Enfim, diz ele, é preciso que se resgate a credibilidade da classe política perante a opinião pública, o que somente será conseguido através de medidas enérgicas, de valorização da conduta ética, seguidos de implacável perseguição, sem qualquer tolerância, aos desvios verificados, posto que o povo brasileiro anseia por poder acreditar nas instituições e ter orgulho da sua nacionalidade.
Vale a pena acreditar nessa esperança. Vale a pena acreditar nessa esperança, sendo rigorosos e exigentes quando avaliarmos nossa conduta, para que o povo seja generoso, tolerante e justo quando nos julgar.
Que Teotônio, Tancredo e Ulysses dêem luz aos retardatários dos novos tempos de dignidade e honradez que virão. Com eles, sem eles ou contra eles, mas virão esses novos tempos. Ninguém segura o caminho inexorável desta Nação rumo à paz, à justiça e à verdade.
E mais cedo virão esses tempos, quanto mais rapidamente compreendermos a frase de Disraeli aos ingleses no alvorecer dos tempos modernos: A Inglaterra será melhor quando os homens de bem tiverem a ousadia dos canalhas.
Permitam-me que nestes instantes derradeiros da minha oração, na tribuna parlamentar, esta ou outras, que freqüento desde os 20 anos, vivenciando hoje os mais desagradáveis momentos de minha vida pública na tarefa que me coube realizar não fale mais a V.Exas., fale a mim mesmo, ao meu espírito, ao meu coração e aos meus sentimentos, fale às minhas filhas, fale aos jovens do meu País, fale aos brasileiros que não estão aqui. Aos que estão em casa, nas ruas, nas fábricas, nas escolas, nos campos e nas cidades que se deixam tragar pelo desencanto, pelo desalento, pela amargura, pela descrença e pelo ceticismo.
Não é hora para desertar, é hora para resistir; não é hora para fugir, é hora para lutar; não é hora de recuar, é hora para avançar e vencer.
Esta nódoa que a tantos constrange servirá para conhecer, separar, melhorar, crescer e construir um Brasil generoso e justo, ético e feliz. (Palmas)"
*Fonte: notas taquigráficas da Câmara (sem revisão do autor).
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