André Rehbein Sathler e Renato Ferreira *
Narra Homero, no milenar Odisséia, o episódio em que Ulisses e seus homens, retornando para casa depois de vencerem a guerra contra Troia, precisaram navegar próximos à Ilha de Capri. Ao passarem por essa rochosa ilha, os navegadores corriam o sério risco de serem atraídos pelo canto das sereias locais e, hipnotizados por elas, lançarem as embarcações na direção das pedras, em manobra suicida.
A solução adotada por Ulisses foi pedir aos seus marinheiros que cobrissem os ouvidos com cera e o amarassem ao mastro, com ordens expressas de não o soltarem, independentemente do que ele dissesse, até que estivessem em um ponto já distante das criaturas tão sedutoras quanto perigosas. De acordo com o poema clássico, foi assim que Ulisses foi capaz de contornar a Ilha de Capri em segurança. Trata-se, na verdade, de estratégia diversionista, na qual Ulisses era grande especialista, tendo-a utilizado também para escapar de Polifemo, ao dizer que se chamava ninguém. Se o canto da sereia era irresistível, então o caminho para escapar não estava em resistir, que levaria ao fracasso. Trata-se da metarresistência, ou da criação de uma resistência à minha incapacidade de resistir.
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A utilização da narrativa de Homero para raciocinar sobre a Constituição e os limites que ela impõe ao legislador é bastante conhecida, sendo um exemplo difundido a obra Ulysses Unbound, de Jon Elster. Apesar disso, poucos exemplos práticos parecem ser tão claros para raciocinar a partir desse referencial quanto a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 241, de 2016, em fase inicial de apreciação pelo Congresso Nacional.
A ideia da PEC é estabelecer um limite constitucional, pelo prazo de 10 (dez) a 20 (vinte) anos, para o gasto público, dispondo que, nesse período, o gasto de um exercício não poderá exceder o dispêndio do exercício anterior, corrigido pela inflação. É uma tentativa de romper a dinâmica de progressiva ampliação da despesa pública que se estabeleceu de maneira muito intensa no Brasil, principalmente a partir de 2011. Espera-se, com o chamado Novo Regime Fiscal, inverter a curva de crescimento insustentável da Dívida Pública, para que sejam recuperados os fundamentos macroeconômicos necessários à retomada do crescimento sustentado.
O canto da sereia corresponde à tendência dos formuladores de políticas públicas (Executivo e Legislativo) de ampliar o gasto público, para atender as demandas cada vez maiores de um número cada vez maior de grupos de pressão de todo tipo. Na análise de custo-benefício que é feita no momento em que se estuda uma medida que ampliará o gasto, a tendência tem sido sempre a de privilegiar o benefício (concentrado) que o gasto gerará em detrimento do custo (difuso) da política pública.
A lógica por trás dessa escolha é bem conhecida: os políticos priorizam suas carreiras, que dependem, no mais das vezes, da viabilização de benefícios de curto prazo aos eleitores, pois é isso que os conduz a reeleições ou a novos cargos eletivos. Assim, eles contam com incentivos para apoiar benefícios bem delimitados (para grupos específicos) e não são incentivados a se contraporem aos custos (que são espalhados por toda a sociedade). Se levarmos em conta, além disso, a excessiva concentração da arrecadação em tributos indiretos, cria-se um quadro em que os benefícios são cada vez mais concentrados e os custos cada vez mais difusos.
O canto da sereia, nessa situação, ecoa harmonicamente aos ouvidos dos formuladores de políticas públicas no Brasil, e a marcha da insensatez segue. O sistema político brasileiro, mormente o presidencialismo de coalizão, torna o canto da sereia da expansão do gasto irresistível. Cumpre a Ulisses, diante disso, buscar o escape criando a resistência à nossa própria incapacidade de resistir. A tendência natural seria direcionar o barco das finanças públicas diretamente ao paredão de pedras, como, aliás, parece que já estamos fazendo, com uma expansão de 345,4% das despesas totais entre 2003 e 2015, ante um crescimento de 250,3% das receitas.
A cera e as cordas foram os instrumentos utilizados por Ulisses para criar a metarresistência e, nessa perspectiva, representaram também o triunfo da técnica sobre a magia. Amarrar (to bind) Ulisses, ou os nossos legisladores, no caso da PEC, representa a abolição da fantasia de que “gasto corrente é vida” e reinstaura a constatação de que, em contexto de crise fiscal, “gasto corrente é vida mantida por aparelhos”.
Estão corretos, assim, tanto os que dizem que a PEC nº 241 é uma atitude radical quanto aqueles que dizem que ela é necessária. Afinal, embora Homero não narre, certamente muitos marinheiros devem ter achado que a atitude de cobrir os ouvidos com cera e ainda amarrar o comandante ao mastro era radical. Mas talvez eles tenham sido os primeiros a agradecer a Ulisses depois de terem se afastado da Ilha de Capri…
* André Rehbein Sathler, doutor em Filosofia, professor do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
Renato Ferreira, doutorando em Ciência Política pela UERJ.
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