Em entrevista à revista Veja desta semana, o ministro Tarso Genro, primeiro filiado ao PT a assumir o Ministério da Justiça durante o governo Lula, fala das mudanças de seu partido, diz que não há risco da Polícia Federal ser partidarizada e combate qualquer tentativa de estatização que prejudique a livre circulação de idéias e o controle da opinião pública.
Tarso, que já ocupou três ministérios e passou pela presidência do PT no auge da crise do mensalão, garante que “dentro do partido, as visões mais tradicionalmente ligadas ao messianismo proletário tornaram-se cada vez menos expressivas”.
Segundo ele, “hoje, independentemente de ranço ideológico aqui e ali, não há mais nenhum grupo no PT que defenda um projeto socialista compatível com a supressão das liberdades, com uma visão de dominação de classes, de estado classista”.
O ministro também acredita que o País está amadurecendo e que “dede 1988, estamos consolidando a democracia”, apesar das grandes desigualdades sociais.
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“A democracia tem de admitir uma desigualdade social relativa, senão ela não será democracia. O elemento estratégico vital para sua consolidação é a coesão social”, disse ele.
Conhecido pelas duras críticas feitas durante o governo Fernando Henrique Cardoso, com relação ao excesso de medidas provisórias e à reeleição, o ministro explica porque o mesmo tipo de comportamento é aceitável para o presidente Lula. “As situações podem ser análogas, as críticas são recorrentes e pertinentes, mas os resultados dos governos são diferentes”, garante.
Além disso, o ministro diz que irá trabalhar com os estados e municípios para garantir que a segurança volte às ruas. "Assumo o compromisso, em nome do governo e acima de qualquer relação partidária ou ideológica, de trabalhar com os estados e os municípios para que os cidadãos brasileiros voltem a ter prazer de sair às ruas com segurança", afirmou.
Leia a íntegra da entrevista do ministro:
Veja – Seu antecessor era ligado ao PT, mas o senhor é o primeiro ministro da Justiça filiado ao PT e com uma história política vinculada ao partido. Há risco de, sob seu comando, a Polícia Federal virar uma polícia petista?
Tarso Genro – O risco é zero. Desde a Constituição de 1988, os sucessivos governos foram profissionalizando cada vez mais a Polícia Federal. A margem de uso da polícia pelo poder político foi se estreitando cada vez mais. Portanto, repito: o risco é zero.
Claramente, há uma ala do PT querendo controlar a PF, manipulando inquéritos, investigações etc.
Políticos tentando instrumentalizar as instituições existem no PT, no PSDB, no PMDB. É recorrente. Não digo que sejam tentativas normais ou aceitáveis, mas apenas que são recorrentes. Portanto, sobre isso, não acho que o PT tenha feito nada de excepcional. O que posso afirmar é que todas essas tentativas são absolutamente equivocadas. Foram rechaçadas na gestão do Márcio Thomaz Bastos e serão rechaçadas na minha. Um dirigente do PT, sendo ministro da Justiça, precisa dar exemplo de comportamento republicano. É o que pretendo fazer.
No primeiro mandato do presidente Lula, surgiram propostas para controlar a imprensa, a universidade, o Ministério Público, o cinema, a cultura. Essas tentações totalitárias podem voltar neste novo mandato?
Qualquer regulamentação do estado que venha a diminuir a circulação das idéias, que venha a estatizar e controlar a formação da opinião pública é antidemocrática. Não estou falando das propostas específicas que você mencionou, porque nem as conheço em detalhe, mas falando de uma questão de princípio. O estado deve interferir em apenas dois pontos na questão da informação. Primeiro, para garantir sua livre circulação. Segundo, para impedir que se torne veículo da criminalidade organizada, como algum órgão, digamos, fazendo promoção da pedofilia.
Não se pode dizer que esse seja o pensamento do PT, não?
Gostaria de fazer uma reflexão sobre isso. Quando se fala de liberdades democráticas, a crítica que se faz ao PT é justa e ao mesmo tempo injusta. Vou me explicar. É justa porque o PT também se originou de organizações revolucionárias que defendiam a visão unitária do estado a partir da luta de classes. Mas a crítica é ao mesmo tempo injusta porque essa visão unitária do estado nunca foi hegemônica no PT. Hoje, é altamente minoritária, não tem nenhuma chance de vingar. É por isso, inclusive, que o PT vem sofrendo algumas dissidências. Dentro do partido, as visões mais tradicionalmente ligadas ao messianismo proletário tornaram-se cada vez menos expressivas. Hoje, independentemente de ranço ideológico aqui e ali, não há mais nenhum grupo no PT que defenda um projeto socialista compatível com a supressão das liberdades, com uma visão de dominação de classes, de estado classista. Além disso, só para fechar o raciocínio, a história nos ensina que, no Brasil, a violência contra as liberdades democráticas, contra a liberdade de imprensa, é coisa da direita, não do PT.
As instituições brasileiras estão amadurecendo no caminho certo ou o governo e o PT acham que é preciso mudar o rumo?
Rigorosamente, o país está no caminho certo. Desde 1988, estamos consolidando a democracia. Tivemos o impedimento do presidente Collor, depois a estabilidade democrática no governo FHC, seguida das duas eleições do presidente Lula. Isso mostra que as instituições democráticas estão, se não consolidadas, em via de consolidação. É difícil uma democracia se consolidar com tanta desigualdade social. Isso porque a democracia tem um arcabouço institucional, mas sua base é a coesão social.
O principal desafio da democracia brasileira é consolidar-se apesar da imensa desigualdade social?
Acho que a palavra adequada é coesão social. A democracia tem de admitir uma desigualdade social relativa, senão ela não será democracia. O elemento estratégico vital para sua consolidação é a coesão social. Eu diria que a grande utopia da revolução democrática do Brasil é fazer com que as pessoas pertençam às classes sociais, e não que sejam destituídas de classes sociais. Temos de reestruturar a sociedade de classe. As pessoas têm de ter o sentimento de pertencer às classes sociais porque assim elas participam de um diálogo de coesão. Isso é que dá estabilidade e força à democracia.
O senhor elogiou há pouco a estabilidade democrática no governo FHC. Mas, em 1999, o senhor escreveu um artigo, intitulado "Por novas eleições presidenciais", no qual afirmava que a reeleição de FHC não era legítima e defendia que ele deixasse o cargo. O senhor se arrepende de ter escrito aquele artigo?
Na verdade, minha intenção com aquele artigo era fazer uma dura crítica às medidas econômicas tomadas logo no início do segundo mandato, em janeiro de 1999, que destruíram a âncora cambial da estabilidade. No artigo, coloquei taxativamente que o mandato de Fernando Henrique estava ilegitimado por aquele ato e, por decorrência, ele deveria convocar nova eleição. Meu objetivo foi fazer um duro ataque político, e não propor uma mobilização para interromper seu mandato. Na época, assim que leu o artigo, Lula me disse: "Esse seu artigo vai ser interpretado como um chamamento ao PT para fazer o impeachment. Seu artigo está errado". Lula tinha razão. Foi interpretado mesmo como se fosse um "fora FHC". A repercussão foi muito mais forte do que eu esperava. O conteúdo das críticas que está ali eu mantenho. Mas, se soubesse que teria sido apanhado como proposta de interrupção do mandato, eu não teria dado aquela forma.
Mas, dois meses depois, em outro artigo, o senhor chamou FHC de "o presidente fora-da-lei", pelo excesso de medidas provisórias, pela cooptação de deputados e pelo empenho em arquivar CPIs. Como Lula fez as mesmas coisas, ele também é um "presidente fora-da-lei"?
Dentro da normalidade democrática, acredito que as críticas à ilegitimidade do mandato são totalmente pertinentes, como foram pertinentes as críticas que a oposição fez ao presidente Lula. Naquela ocasião, apesar das críticas, Fernando Henrique conseguiu legitimar seu mandato, exatamente como fez o presidente Lula. O mérito da crítica está na disputa entre governo e oposição.
Então, fica subentendido que a oposição critica tudo aquilo que ela mesma fará caso vire governo. Afinal, o presidente Lula abusa de medidas provisórias, coopta deputados e tentou impedir CPIs…
As situações podem ser análogas, as críticas são recorrentes e pertinentes, mas os resultados dos governos são diferentes. Primeiro, quem não legislar com medida provisória não governa. Isso não tira o direito de a oposição fazer crítica, mas o fato é que não governa. Em relação a CPIs, sabemos que existem as legítimas e as ilegítimas. É um direito da oposição pedir CPIs e é um direito do governo se opor a elas. E, quanto à cooptação de deputados, vivemos hoje uma situação-limite do sistema político. Os hábitos de formação de maioria são pré-republicanos. Hoje, as bases de sustentação de um governo são formadas por negociações regionais em cima de lideranças, não de partidos. O que o segundo governo do presidente Lula está fazendo é tentar modificar esse hábito, formando um governo com base num documento de coalizão política, valorizando os partidos – os partidos que temos, que são reais, que estão aí. Mudar isso, só com uma reforma política.
O senhor apostaria um centavo na reforma?
Na reforma integral, não. A reforma política deve vir na seqüência da evolução pela qual a democracia vem passando. O próximo passo seria uma reforma política com fidelidade partidária, financiamento público de campanha e valorização dos partidos através de uma votação em lista.
Uma corrente do PT está empolgada com a tese de um terceiro mandato para o presidente Lula. Isso pode prosperar?
Se alguém do PT está pensando nisso, então está pensando contra o PT. Isso é contra o pensamento de 99% do PT, é contra o presidente da República e é um desserviço à democracia.
Em documentos internos, o PT defende que o presidente da República possa fazer consultas plebiscitárias diretas à população, sem passar pelo Congresso.
É uma discussão residual dentro do partido. Mas, de novo, é preciso levar em conta que essa idéia não prospera dentro do governo nem dentro do PT.
O senhor é a favor da anistia ao deputado cassado José Dirceu?
O governo não tem nenhuma posição sobre isso, não é uma questão governamental, não é uma questão do Ministério da Justiça. É uma questão hoje do José Dirceu e dos seus companheiros.
O senhor já passou por outros três cargos, mas está no governo desde o primeiro dia do primeiro mandato. Qual foi seu maior aprendizado?
Foi compreender a complexidade de governar democraticamente o país. Eu achava que bastava ter uma maioria eleitoral, pois isso se refletiria nas questões do Parlamento. Mas é muito mais complexo. Outro aprendizado relevante é sobre decisões macroeconômicas. Sempre pensei que as mudanças macroeconômicas, para fazer uma retomada forte do crescimento, pudessem ser mais rápidas. Pensei que bastavam medidas administrativas diretas do presidente. Eu não contava com a diversidade real de interesses que existe na sociedade brasileira. E essa relação entre estabilidade e crescimento é muito mais complicada do que eu pensava.
E qual foi o maior aprendizado do governo?
Eu diria que foi a compreensão de que as questões mais fundamentais do país são muito mais amplas do que um partido pode pensar. Por exemplo: a relação entre crescimento e estabilidade. Não dar valor à estabilidade, num mundo instável e globalizado, é um equívoco. Porque aí não se conseguem as modificações necessárias para que o país cresça e deslanche.
Isso significa que não existe possibilidade de que, neste segundo mandato, o governo relaxe na estabilidade em nome de um crescimento mais acelerado?
Não existe a menor chance de que haja esse desequilíbrio no segundo mandato. O valor da estabilidade como ponto de partida de um projeto social já foi incorporado pela maioria do PT e do governo. E o presidente Lula tem essa certeza de forma muito clara.
A falta de segurança é, hoje, a principal preocupação do brasileiro. O que o senhor tem a dizer para o cidadão que anda com medo de sair às ruas?
Assumo o compromisso, em nome do governo e acima de qualquer relação partidária ou ideológica, de trabalhar com os estados e os municípios para que os cidadãos brasileiros voltem a ter prazer de sair às ruas com segurança. Hoje, com os escritórios integrados de segurança, com os programas sociais, com o aprimoramento da inteligência policial, é possível firmar um pacto federativo de segurança pública muito forte com estados e municípios. São questões tão universais que dificilmente serão partidarizadas.
Quem são os pensadores que o senhor mais admira?
Até meus 30 ou 35 anos, eu era um admirador de Lenin, que conseguiu introduzir, num país atrasado, princípios políticos e organização política modernos, que, mais tarde, se revelaram como uma Revolução Francesa tardia. Reconheço que, do modelo leninista, resultou o stalinismo, mas também resultou a formação de um estado democrático de direito originário das dores desse parto. Depois dos meus 30 ou 35 anos, passei a ter grande admiração por Nelson Mandela. Ele é um gênio político, comandou uma transição sem sangue de dentro do cárcere e conseguiu derrotar o apartheid pela ação política, pela convocação e pela mobilização social. Se não fosse pela generosidade de Mandela, a África do Sul estaria hoje afogada em sangue: sem revolução, sem paz e sem estado. Por fim, do ponto de vista teórico, tenho duas referências intelectuais fortes: Antonio Gramsci, que foi o grande intérprete da cultura política revolucionária originária do Renascimento e do Iluminismo, e Norberto Bobbio, cuja genialidade demonstrou que, sem regras estáveis e previsíveis, o resultado é sempre pior para uma maioria. Bobbio interferiu profundamente nos destinos do socialismo italiano, dizendo que, se existe uma possibilidade verdadeira de socialismo, ela é, em primeiro lugar, uma questão democrática.
Qual a pitada de leninismo que o senhor colocará agora no Ministério da Justiça?
Nenhuma. Na minha gestão no Ministério da Justiça quem estará muito presente será Norberto Bobbio. Isso significa compreender que, sem uma ordem jurídica legítima, sem a obediência às regras do direito, a saída será sempre totalitária. A obra de Bobbio unifica a democracia, a norma jurídica e o direito.
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