Edson Sardinha
Enquanto os senadores voam de Airbus, a transparência no Senado ainda decola na velocidade de um 14-Bis. Com um ano e meio de atraso, a Casa começou a divulgar apenas recentemente os gastos dos senadores com a cota de passagens aéreas, rebatizada de verba de transporte aéreo. Além de atrasada, a transparência chegou pela metade: ao contrário da Câmara, o Senado não informa o nome dos passageiros que utilizaram o benefício, nem os trechos voados, nem mesmo a data de cada viagem. Resultado: o cidadão continua sem saber como cada senador utilizou o dinheiro público para voar. Se ele, por exemplo, deslocou-se de seu estado para Brasília, a razão da cota, ou se levou, digamos, a namorada para passear.
De acordo com informações oficiais do Senado, a Casa gastou R$ 5,69 milhões com passagens dos senadores no ano passado. Uma redução de 39% em comparação com os R$ 9,35 milhões anunciados em 2009. O valor representa, ainda, uma economia de 68% em relação aos R$ 18,21 milhões gastos em 2008, antes que o país tivesse conhecimento da chamada farra das passagens, revelada pelo Congresso em Foco em 2009. Mas as cotas reservadas a cada senador são generosas e permitem mais voos do que o previsto em ato normativo, conforme cotações feitas pelo site nas duas principais companhias aéreas do país. A variação de preços chega a mais de 40%.
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A redução drástica na cota de que dispunha cada parlamentar, a proibição expressa do benefício público em viagens de turismo e para o transporte de familiares de deputados e senadores foram algumas das medidas anunciadas pela Câmara e pelo Senado em resposta às denúncias. Com a mudança nas regras, só podem voar com a cota senadores e servidores – esses, desde que informados à Mesa Diretora. O corte nos gastos viria acompanhado da publicidade das despesas de cada congressista, medida considerada fundamental para inibir a repetição do uso indevido do dinheiro público.
No Senado, essa determinação estava expressa no Ato Normativo 5, de 22 de abril de 2009, que substituiu a cota pela verba de transporte aéreo. Mas apenas no final de novembro esses dados passaram a ser divulgados, de acordo com a assessoria da Casa. Na Câmara, essas informações estão disponíveis desde dezembro de 2009.
Transparência opaca
O problema é que quem acessa o Portal da Transparência do Senado em busca de informações sobre a verba mensal de transportes se depara com dados pouco reveladores. A pesquisa permite identificar apenas o valor que cada senador utilizou no mês, o número da fatura e do registro da agência de viagens contratada pelo Senado para comprar os bilhetes para os parlamentares. No caso, a Sphaera Turismo Representações Ltda. Nada que revele, porém, como cada senador utilizou o benefício. Como a mesma norma estipulou um prazo de três meses entre a utilização da verba e a publicação dos dados, as últimas informações disponíveis se referem ainda ao mês de outubro.
Nos dez primeiros meses de 2010, o Senado gastou R$ 4,77 milhões com passagens dos senadores, de acordo com o levantamento feito pelo Congresso em Foco. Cada senador tem à disposição para gastar por mês o equivalente a cinco trechos de viagens, ida e volta, entre a capital de seu estado e Brasília. Nas contas do Senado, isso varia de R$ 6 mil – para senadores do Distrito Federal e de Goiás – a R$ 27,8 mil, reservados todos os meses a senadores do Amapá.
Os valores não utilizados num mês acabam sendo aproveitados pelos parlamentares para extrapolar o limite mensal no outro. O Congresso em Foco identificou 47 ocasiões em que 19 senadores gastaram em um mês mais do que o previsto na cota mensal de seus estados. De acordo com os dados disponíveis na página do Senado, o senador que utilizou maior montante da verba em um único mês foi Valdir Raupp (PMDB-RO). Nenhum deles, porém, extrapolou o limite anual.
Viajou para onde?
O presidente interino do PMDB gastou R$ 36,59 mil em julho, mais que o dobro dos R$ 16,69 mil reservados para os senadores de Rondônia. Naquele mês, o Senado realizou apenas quatro sessões deliberativas. Os senadores entraram em recesso no dia 20 de julho e só retornaram aos trabalhos em 2 de agosto. Ou seja: Raupp gastou mais dinheiro com passagens num mês em que o Senado praticamente não trabalhou. Ainda segundo o Portal da Transparência, Raupp usou menos que a cota mensal em quatro meses: janeiro, junho, agosto e setembro, último mês registrado pelo peemedebista.
Em dezembro de 2009, o Senado editou outro ato normativo abrindo uma brecha para os senadores voarem com mais tranquilidade em ano eleitoral. A mudança permitiu aos parlamentares utilizarem em 2010 créditos não usados no ano anterior. O Congresso em Foco questionou o Senado se o modelo adotado não prejudicaria a transparência com esse tipo de gasto, recomendada pelo Ministério Público Federal. “Essa situação é decisão da Administração Superior do Senado Federal”, informou a Casa, por meio de sua assessoria.
Cotas generosas
O Congresso em Foco comparou os valores fixados pelo Senado com as tarifas cheias definidas pelas próprias companhias em alguns dos trechos mais caros do país e encontrou diferenças que chegam até a 46%.
O Ato Normativo 5/2009 reserva a cada senador o equivalente a cinco trechos, de ida e volta, entre a capital de seu estado e Brasília. A maior diferença encontrada pelo site se refere ao Pará. Cada senador paraense tem direito a R$ 25,4 mil por mês para se deslocar entre Belém e a capital federal. Mas o benefício daria para bancar de nove a 12 viagens de ida e volta entre as duas cidades, conforme cotações feitas ontem pelo site na TAM e na Gol.
Na maior companhia aérea do país, uma viagem de ida e volta entre as duas capitais é de R$ 2,73 mil na tarifa cheia, na segunda e na quinta-feiras, dias tradicionalmente usados pelos senadores para viajar. As cinco viagens previstas no ato seriam equivalentes, nesse caso, a R$ 13,66 mil. No caso da Gol, que cobra R$ 1,97 mil pelos mesmos trajetos, sairiam por pouco menos de R$ 10 mil. Os senadores do Pará têm direito à segunda maior cota entre todas as bancadas.
O maior valor, de R$ 27,85 mil, é reservado aos senadores do Amapá. Um voo partindo da capital amapaense na segunda-feira à tarde com destino à capital federal, e outro em sentido contrário, no final da quinta-feira, saem por R$ 3,5 mil na tarifa cheia da TAM, incluídas todas as taxas. Com essa tarifa, seria possível comprar cinco passagens entre Macapá e Brasília, de ida e volta, por R$ 17,5 mil. Ou seja, uma diferença de R$ 10 mil em relação à cota. Em outras palavras, o benefício mensal garantido aos senadores amapaenses permitiria sete deslocamentos, em vez dos cinco previstos no ato.
Intermediação
As passagens dos senadores são emitidas por uma empresa contratada pelo Senado para isso. O serviço também se estende aos servidores. Contratada por meio de pregão em 2005, a Sphaera Turismo Ltda recebe R$ 22 milhões por ano da Casa. Foi a empresa que comprou os bilhetes de amigos e familiares da senadora Roseana Sarney (PMDB-MA), de São Luís para Brasília, com a cota de passagens da parlamentar, conforme revelou em março de 2009 o Congresso em Foco, naquela que seria uma das primeiras matérias sobre a farra das passagens. Na Câmara, a negociação é feita diretamente com as companhias aéreas.
No dia 22 de dezembro, o primeiro-secretário do Senado, Heráclito Fortes (DEM-PI), determinou a instauração de uma sindicância para aprofundar um relatório de auditoria sobre prestação de serviços de emissão de bilhetes e ordens de passagens.
Segundo o Senado, a sindicância foi criada em 30 de dezembro, com prazo de 30 dias, com possibilidade de prorrogação. Em nota, a Casa negou haver indícios de irregularidades envolvendo passagens aéreas: “O Senado esclarece que a sindicância se destina a avaliar e aprimorar procedimentos de gestão. Ao contrário do que foi publicado pela imprensa, a sindicância não tem nenhuma relação como supostas irregularidades no uso das passagens aéreas em si”.
Farra das passagens
Em abril de 2009, o Congresso em Foco começou a publicar uma série de reportagens sobre o uso indiscriminado de cotas de passagens aéreas parlamentares, que deu expressão nacional ao que ficou conhecido como “farra das passagens”. Deputados e senadores usavam suas cotas para objetivo diverso do benefício, custear o trabalho dos congressistas. Além disso, constatou-se que uma máfia comercializava as muitas sobras de créditos num mercado paralelo ilegal. O Ministério Público Federal (MPF) abriu, mas ainda não concluiu suas investigações. A Câmara não encontrou indícios contra deputados acusados de vender bilhetes que sobravam e perdoou o uso comprovado para fins particulares. Pelo menos 19 funcionários foram demitidos na Casa.
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