Ricardo Ramos e Andrea Vianna*
Imersos em escaramuças jurídicas, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) parecem não ter pressa para julgar o inquérito que envolve o influente deputado Inocêncio Oliveira (PL-PE) por empregar, em situação subumana, trabalhadores rurais da Fazenda Caraíbas, no interior do Maranhão. Desde outubro de 2003, o procedimento, que pede a condenação penal de Inocêncio e um administrador da propriedade por aliciarem e manterem trabalhadores em condições análogas à da escravidão, se arrasta no Supremo.
O caso era o primeiro item da pauta de ontem do Plenário da corte, mas novamente não chegou a ser apreciado. Há mais de dois anos, o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, ofereceu denúncia em que pede a condenação da dupla pelos crimes a uma pena que pode chegar a 14 anos e oito meses de prisão. No início de fevereiro, o Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região (Maranhão) determinou que Inocêncio pague uma indenização no valor de R$ 360 mil por danos morais, baseado nos mesmos fatos analisados pelo Supremo.
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Deputado federal desde 1975, Inocêncio está agora no seu oitavo mandato na Câmara, Casa que presidiu entre 1993 e 1994. Na ocasião, exerceu interinamente, por nove vezes, a presidência da República, na condição de substituto constitucional do então presidente Itamar Franco. Inocêncio lançou-se na política pela antiga Arena, partido de apoio ao regime militar, mas destacou-se na cena nacional no PFL, legenda à qual pertenceu entre 1985 e 2005. Ano passado, depois de uma rápida passagem pelo PMDB, filiou-se ao PL. Médico por formação, ele ocupa atualmente a primeira secretaria da Câmara dos Deputados.
A denúncia
Segundo inspeção de auditores fiscais do Ministério do Trabalho e relatos dos próprios trabalhadores, o parlamentar e seu preposto são responsáveis por manter 53 pessoas em péssimas condições de vida na fazenda entre os meses de dezembro de 2001 e março de 2002. Em quatro meses, os trabalhadores teriam que capinar uma área do tamanho de 1.530 gramados do Maracanã.
No processo, Fonteles pede que a denúncia seja aceita pelo Supremo, foro competente para acolher acusações criminais contra parlamentares. Mas, a julgar pelo posicionamento da relatora do caso, ministra Ellen Gracie, o caminho do inquérito deve ser o arquivo.
Em fevereiro de 2005, a ministra recomendou a rejeição da denúncia, pois, segundo ela, os depoimentos dos auditores fiscais não valeriam como novas provas processuais. Em seu relatório, Gracie observou que, como os trabalhadores não estavam algemados, o fato descaracterizaria o crime de trabalho escravo.
Após juntar esses depoimentos aos autos, Fonteles decidiu reabrir o caso arquivado pelo seu antecessor, Geraldo Brindeiro. Entretanto, o argumento jurídico da relatora foi acompanhado pelo ministro Eros Grau e, com o pedido de vista de Joaquim Barbosa, o caso está parado há um ano na corte.
Procurado pelo Congresso em Foco, o deputado disse, por meio de sua assessoria, que não se pronunciaria sobre o assunto. No entanto, à época da reabertura do inquérito, Inocêncio afirmou se tratar de uma “armação” a denúncia oferecida por Claudio Fonteles. O deputado declarou que não era responsável pela contratação dos trabalhadores e que não é verdade que eles estivessem em condições análogas à escravidão. A defesa jurídica do primeiro-secretário da Câmara alega ainda que não foi constatada a presença de trabalho escravo na região, mas de trabalho em situações degradantes, o que nem sequer é tipificado como crime.
Na ocasião, Inocêncio disse ainda que dois ex-ministros do Trabalho da era Fernando Henrique Cardoso, Francisco Dornelles e Paulo Jobim Filho, declararam textualmente que as acusações contra ele eram infundadas.
Após a vistoria dos fiscais, os trabalhadores foram libertados e, pressionado por dois processos trabalhistas, Inocêncio decidiu vender a fazenda. Com o ato, ficou livre de uma das ações, que o obrigava a melhorar a infra-estrutura para manter empregados em sua propriedade rural.
Extrema gravidade
Ao longo das 12 páginas da denúncia, abundam os relatos de condições subumanas de moradia e de trabalho.
Cláudia Brito, coordenadora do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho que esteve na fazenda de Inocêncio, constatou “uma situação de extrema gravidade quanto ao descumprimento da legislação trabalhista”. Segundo ela, “os trabalhadores estavam alojados de forma precaríssima, em barracos coletivos para até 30 trabalhadores, deteriorados, com paredes esburacadas, com cobertura de palha, com piso de chão batido, sem instalações sanitária e elétricas”.
Na inspeção realizada entre os dias 19 e 27 de março de 2002, logo no início, os fiscais do Trabalho deduziram que a fazenda era do parlamentar, pois vários empregados usavam camisetas com a estampa do candidato a “deputado federal Inocêncio Oliveira”.
“Ficou claro para a equipe de fiscalização que todos os trabalhadores conheciam e mantinham contato com o deputado Inocêncio de Oliveira e manifestavam um orgulho ingênuo de estarem trabalhando para uma pessoa tão importante e poderosa”, relatou a auditora Cláudia Brito, nos autos do procedimento.
Moradia alagada
Segundo os depoimentos de vários trabalhadores, ouvidos como testemunhas na diligência, o alojamento onde ficavam, de dimensões inferiores a uma quitinete, viviam cerca de 30 trabalhadores e volta e meia era inundado.
“Num barraco de 6x4m ficam alojados cerca de 30 trabalhadores, não havia instalações sanitárias; não era fornecida água potável (a água para consumo era retirada do açude)”, declarou o trabalhador rural Edilson Diniz Ferreira aos auditores do Trabalho. “Desde dezembro de 2001 o acesso ao alojamento está alagado, sendo os trabalhadores obrigados a nadarem em locais onde a água alcança a altura do peito de um homem adulto para se locomoverem do alojamento até a sede da fazenda, e de lá de volta para o alojamento”.
O próprio “gato” (aliciador contratado para levar os trabalhadores à fazenda), Vicente da Silva Souza, admitiu, em seu depoimento aos auditores do trabalho, as indignas condições de moradia dos trabalhadores: “Todos os empregados dormem no mesmo barraco, construído de tronco de árvores, cobertura de palha de coqueiro, piso de terra batida, sem janelas, sem instalações sanitárias dormindo todos juntos, inclusive a cozinheira”.
Segundo a chefe da equipe, Inocêncio tinha conhecimento das condições de moradia e trabalho dos seus empregados: “O deputado conhecia os locais onde morava e costuma ir nos barracos, nos locais onde estavam trabalhando”, afirmou. “Mesmo nos barracos situados no outro lado do rio o deputado federal costumava ir, atravessando o rio a cavalo, enquanto os trabalhadores atravessavam a nado”, ressaltou Cláudia.
Água de cacimba
Assim como a moradia, a alimentação dos empregados da Caraíbas, segundo as testemunhas, era escassa e a água usada para matar a sede e tomar banho era dividida com os animais. “A água fornecida aos trabalhadores era retirada de um cacimba (espécie de açude) infestado de insetos e ‘capa-rosa’”, disse Vicente Borges, um dos empregados da fazenda. “A água é bastante suja, com lama, cabeça de prego, ‘capa rosa’ e fezes de animal (gado). O gado, os cavalos e outros animais também usam o açude para beber água e se banhar”, testemunhou Miguel Ferreira, outro trabalhador rural.
Além de todas as carências, devido à falta de banheiros, os empregados do deputado tinham de se refugiar no mato para atender às necessidades fisiológicas. “Que o barraco (era) construído com troncos de árvores, (…), sem instalações sanitárias; (…) (os trabalhadores) fazem as suas necessidades fisiológicas no mato”, afirmaram Miguel Ferreira e José Alves de Souza aos fiscais.
Em contraste, a auditora do Trabalho Débora Barboza constatou que as acomodações do empregador Inocêncio, quando ele vinha à sua propriedade, eram mais confortáveis e dispunham, inclusive, de instalações sanitárias.
“Inocêncio Oliveira chegava à fazenda por avião, desembarcando em Teresina (PI) e, às vezes, em São Luís (MA). (…) Ele ficava na casa-sede da fazenda, a qual possui três quartos e dependências para empregada; (…) a sede da fazenda tinha instalações sanitárias próprias”, depôs a auditora.
Café com farinha e salário descontado
A alimentação dos empregados restringia-se, basicamente, a arroz e feijão. “Era de péssima qualidade, composta apenas de feijão e arroz (no almoço e no jantar), e que o café da manhã consistia apenas em café puro e farinha de puba (mandioca)”, contou Vicente de Pinho Borges. Segundo os relatos, a comida, feita num fogão à lenha, era preparada de forma improvisada e armazenada num recipiente plástico onde estava escrito “não reutilizar esta embalagem”.
Vários empregados relataram, também, que ficavam impedidos de deixar a propriedade até que pagassem todas suas dívidas contraídas na Caraíbas: “Declaro ainda que no caso de algum trabalhador que quisesse deixar a fazenda, sendo apurado saldo a pagar pelo mesmo em razão da alimentação e compra das ferramentas ou botas, era exigido que o mesmo permanecesse trabalhando até que o saldo fosse acertado”, afirmou Edílson Ferreira aos auditores.
Um dos trabalhadores contou que trabalhou o mês inteiro para não receber nada. “No dia 8 de março de 2002, sexta-feira, o gato (aliciador) Vicente (…) fez o acerto de contas e informou ao final que, dos 15 trabalhadores, apenas 5 tinham saldo a receber, no valor de R$ 20, sendo que o declarante nada recebeu”, disse o ex-empregado Vicente Borges, pois suas dívidas correspondiam aos valores dos dias trabalhados.
Durante seis meses de trabalho, José Alves de Souza ressaltou que “não conseguiu receber um salário mínimo por mês”. Já a cozinheira, dona Francisca, disse que “recebeu apenas R$ 50 de salário”, sem precisar ao auditor o período.
O aliciador Vicente Silva explicou aos fiscais que os empregados eram pagos por produção: R$ 3 por linha de roçado. “Este valor é variável, sendo que o máximo (…) pago aos trabalhadores foi R$ 6”, disse Silva. Ele afirmou que os trabalhadores faziam, em média, 25 linhas por mês de roçado, cada um.
Em algumas ocasiões, segundo admitiu o aliciador, o pagamento era feito, pessoalmente, pelo deputado: “Mensalmente, o proprietário da fazenda Inocêncio de Oliveira comparece à fazenda e nessa ocasião, acerta com o declarante serviço que foi executado e o ‘gato’ paga aos trabalhadores conforme a produção”, declarou Vicente.
Um dos trabalhadores rurais, Jeremias Marcos da Silva, também confirma a presença de Inocêncio. “O pagamento aos gatos e demais trabalhadores (…) é feito mensalmente, em torno do dia cinco, época em que, invariavelmente, o proprietário senhor Inocêncio permanece no local, o qual o mesmo percorre a fazenda acompanhado pelo declarante observando os trabalhadores, conversando com todos, certificando-se das condições de trabalho e moradia oferecidas”, disse o ex-funcionário.
Apesar dos relatos, o deputado alegou, em sua defesa nas ações trabalhistas, que não sabia do que se passava em Caraíbas. Para Sebastião Caixeta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), essa desculpa não serve. “Ele deu poderes para que um agenciador contratasse os empregados e o agenciador obviamente sabia das condições de trabalho. Ora, o agenciador era um preposto do deputado, o qual passa também a ter responsabilidade, de acordo com os Códigos Civis de 1916 e 2002”, esclarece.
“O estado em que foram encontrados os trabalhadores impressiona. Dá a impressão de ser, ainda, a época do Brasil Colônia. São maltrapilhos, seres humanos sem dignidade”, afirmou ao Congresso em Foco Maurício Lima, procurador regional que atuou nas ações de natureza trabalhista.
*Colaborou Guillermo Rivera
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