André Rehbein Sathler, Malena Rehbein Sathler e Roberto Romano *
Os partidos são a mensagem: o slogan de McLuhan, como todas as célebres frases, extrapolou seu campo semântico original e passou a ser aplicado a várias áreas. Os partidos surgiram como meio – canal para que um grupo de homens defendesse uma determinada visão de mundo e almejasse tomar o poder o político para buscar a implementação dessa visão. Tornaram-se um fim. De um canal de comunicação entre povo e governo, converteram-se em instrumento de arrecadação de fundos, com objetivo prioritariamente eleitoral. Com isso, o acesso ao poder político deixou de significar a possibilidade de implementar uma dada visão de mundo. Passou a ser uma forma, a melhor talvez, de ampliar o projeto arrecadatório.
Partidos como mensagem não são muito diferentes de empresas com finalidades lucrativas. O que não significa que eles tenham perdido em importância, como se propaga atualmente. Como bem ressalva o francês Bernard Manin, numa releitura que faz de si mesmo, eles só adquiriram outra função prioritária, dentro do que chamamos de democracia de público ou de audiência, na qual as novas redes de informação e convivência parecem cumprir um novo papel na convergência de opiniões, ainda que de forma enviesada.
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Mas esse não é o objetivo do que estamos discutindo aqui. A constatação de que se parte é a de que os partidos, sim, continuam importantes, mas para a corrida eleitoral – principalmente em um sistema de voto personalista – e na distribuição de poder tanto no Executivo quanto no Legislativo. O resultado dessa divisão/distribuição de poder está no nosso presidencialismo de coalizão. Se o seu partido tem poder de barganha junto ao governo, você pode ter muitos benefícios.
Mesmo admitida (concordada ou não é outra história) a face, digamos, empresarial, essa não pode significar o caminho e a ética do free rider descompromissado. Até as empresas – unidades básicas do sistema produtivo capitalista voltadas para a obtenção de lucro – são instadas, desde a década de 1970, a terem “responsabilidade social”, uma preocupação mais ampla com seus stakeholders, ao invés da exclusiva satisfação aos shareholders. Quanto mais os partidos políticos, com sua vocação iminentemente pública, ou seja, voltada para as o significado completo de eleições, isto é, discutir, elaborar e implantar políticas públicas para o bem coletivo. Partidos que descuram dessa vocação pública e se tornam apropriações privadas em nada se diferenciam dos grupos de pressão, a não ser pelo fato de que podem vir a ocupar o poder político. Quando isso acontece, o político torna-se o primeiro lobista.
Michels foi um dos primeiros a enxergar problemas nos partidos, identificando nesses uma tendência quase inexorável, natural, à esclerose, via oligarquização de suas estruturas decisórias. Fala-se muito em reforma partidária, porém as discussões concentram-se em meios de redução da fragmentação partidária, como criação de cláusulas de barreira, alterações no sistema eleitoral etc. Pouco se traz à baila a necessidade de mudanças na própria institucionalidade dos partidos, de modo a evitar seu sequestro por pequenos grupos e que venham a sucumbir à maldição de Michels. Sem essa mudança, todos os outros aspectos da reforma política podem na verdade piorar a situação ao reforçar o caciquismo. De fato, Michels levou adiante as teses de Max Weber sobre a burocratização geral da sociedade e do Estado, com frutos tremendos no século 20, na ordem totalitária. Weber previu, com acuidade, a paralisia mecânica trazida pelo poder burocrático, o qual, segundo ele, seria nosso triste destino. Partidos burocratizados são a anti-política. De seu lado, partidos com hegemonia de coronéis representam a “contemporaneidade do não coetâneo”, ou seja, o regime dos coronéis e dos restos apodrecidos do Antigo Regime.
Com relação à sua estrutura decisória, há a necessidade de rever a conexionalidade administrativa existente entre os órgãos superiores dos partidos. Na atualidade, existem possibilidades quase irrestritas de intervenção dos órgãos superiores nos órgãos inferiores, tanto em termos hierárquicos (ie Diretório na Comissão Executiva) quanto geográficos (ie Diretório Nacional no Diretório Estadual). Outro elemento é o enfeixamento de amplos poderes, plenos nos interregnos, em comissões executivas reduzidas. Outro elemento ainda é a existência, em alguns partidos, de órgãos com competências ambíguas, como conselhos políticos, amplamente ocupados por lideranças partidárias já consolidadas. Na forma atual, prevalece nos partidos o manda quem pode obedece quem tem juízo (ou queira ter alguma chance de sucesso em sua carreira política).
No que concerne aos seus quadros diretivos, seria oportuno repensar o sistema eleitoral intrapartidário, com mecanismos de democratização efetiva dos processos eleitorais internos. O sistema eleitoral majoritariamente indireto, associado à prática de eleição mediante inscrição de chapas, enviesa a escolha dos dirigentes ao também privilegiar e reforçar lideranças já tradicionais. Alia-se a isso a possibilidade incondicional, prevista em quase todos os partidos, de reeleições dos dirigentes e tem-se um forte elemento oligarquizante. Ainda contribui para reforçar o favorecimento das lideranças tradicionais a manutenção de intrincada rede de membresias nativas nos órgãos deliberativos, diretivos e nas comissões executivas. Sem pensarmos nisso, sinceramente, adianta discutir se lista fechada é melhor do que lista aberta nas chapas das eleições?
As condições de filiação e manutenção da filiação são outra área que merece ser objeto de atenção, buscando-se restringir quaisquer possibilidades eminentemente discriminatórias e que concedam poder exacerbado às lideranças instituídas. Semelhantemente, a exigência de pré-requisitos aos candidatos a cargos diretivos no partido deve evitar critérios ambíguos e de aplicação discricionária.
Finalmente, há que se buscar um marco de transparência para os partidos, como obrigatoriedade de clareza e ampla divulgação de sua prestação de contas (não as contas eleitorais, mas sim as contas relativas ao seu funcionamento) e mecanismos mais rigorosos para apreciação e aprovação de alterações estatutárias. Evitando casuímos como o que ocorreu recentemente, quando o PMDB decidiu que novas filiações teriam que ser submetidas à direção nacional do partido, que teria 10 dias deferir ou não a entrada de parlamentares. A intenção era evitar que parlamentares de outros partidos “mudassem” para o PMDB para apoiar a candidatura de Leonardo Picciani, a favor do então governo Dilma.
Ultimamente foi lembrada a fala que “uma sociedade corrupta gera um governo corrupto”. A valer essa máxima, mutatis mutandis, partidos mais democráticos devem gerar uma sociedade mais democrática. Isso implica transformações a partir dos menores grupos de que todos participamos, como pequenas associações de bairros. Está na moda defender a democracia participativa ou maior participação na representação. Mas teóricos importantes como Pateman e Barber, discípulos de Rousseau, deixam bem claro que a participação – qualificada e, portanto, mais democrática – é algo que se aprende em todas as esferas de convivência coletiva, desde muito cedo. Ou seja, educando. Está aí uma aposta que vale a pena.
* André Rehbein Sathler é doutor em Filosofia e coordenador do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados;
* Malena Rehbein Sathler é doutora em Ciência Política e docente do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara;
* Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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