Toca o telefone. É Edson Sardinha, o editor do site, reclamando da minha prolongada ausência de colaborações para o Congresso em Foco. Dou mil explicações: a dura vida de um corretor de imóveis, obrigações familiares, o trabalhão que me dá escrever estas poucas dezenas de linhas… tudo verdade, mas me convenço no íntimo de que preciso retomar esse hábito bissexto.
E cá estou, decidido a falar de Brasília, a cidade onde nasci e voltei a morar depois de rodar por um punhado de lugares. O trabalho tem me levado a viajar com certa freqüência pelo país afora, e é impressionante a péssima imagem que os brasileiros que não são daqui – ou aqui residem ou residiram – têm da capital federal. Muitos, superseguros do que falam, responsabilizam Brasília por todos os males nacionais: o lugar em que a corrupção e o afastamento dos poderosos do povo se juntam para encarnar tudo o que há de ruim, a cobiça, a mediocridade, a busca de privilégios, a vaidade, o parasitismo, a hipocrisia, a rapinagem, a frivolidade…
Quem vai negar que Brasília é ou foi cenário de sacanagens homéricas? Quem vai negar que os ingredientes citados costumam mesmo ser fartamente encontrados nessa estranha coisa a que se dá o nome de poder? Quem conhece um pouquinho mais os contornos brasilienses pode agregar à tela, sem incorrer em exagero, outras pinceladas: embora afrontadas por minorias que parecem crescer em número e qualidade, ainda reinam por aqui uma breguice e um provincianismo desoladores.
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Mas aí eu paro. Porque o Detrito Federal, a ilha da fantasia, a vilã dos sonhos pátrios que está no imaginário brazuca é ficção pura. E ficção de má qualidade.
Sabe qual o grande problema dessa ficção? A falta de complexidade da personagem principal. Muitos brasileiros fizeram de Brasília o mordomo de um roteiro de filme policial B não, de C pra baixo… Um jeito cômodo de dizerem que não têm nada a ver com isso. Os desacertos do Brasil, a bandalha tropical, os problemas nacionais… tudo deve ser debitado na conta deles, “dos ômi”, o que significa dizer: na conta de Brasília.
Os caras esquecem que eles mesmos – quer dizer, os eleitores de outros estados – é que mandam pra cá os políticos que mandam no país. Políticos locais estão longe de ser exemplo de convivência saudável com a coisa pública, como já demonstraram o ex-senador Luiz Estevão, no caso do TRT de São Paulo, e o atual governador, José Roberto Arruda, na violação do painel do Senado (para ficar em apenas dois exemplos). Mesmo não sendo um show de virtudes, porém, são uma minoria numericamente pouco expressiva entre os personagens dos grandes escândalos nacionais, nos quais personalidades de outras paragens costumam aparecer como protagonistas na arte de produzir patifarias.
De qualquer maneira, a fórmula de culpar Brasília por tudo possibilita a uma legião de pessoas fugir de suas responsabilidades repetindo um discurso a todo tempo alimentado e realimentado por colunistas renomados e meios de comunicação de grande audiência. Estes, por sinal, costumam confundir Brasília, a cidade, com seus poderes: o Congresso, o governo, os tribunais superiores. A primeira é o centro nervoso de uma unidade federativa na qual vivem mais de 2 milhões de brasileiros. A outra é comandada por gente que a brasileirada dos mais diversos recantos despachou pra cá.
Pouco importa. Em revistas, jornais, no rádio e na TV, você lê ou ouve que Brasília fez isso, que tem mais uma dos homens de Brasília. No fundo, uma técnica a serviço dos verdadeiros responsáveis por erros e desmandos. Ora, bolas, quem fez não tem rosto próprio, nome, CPF?
Ignoram tais fabricantes de mitos, ou fingem ignorar, que o valerioduto começou em Minas e o mensalão, embora pago na capital federal, abastecia os seus cofres no polígono que concentra as riquezas nacionais: o eixo São Paulo/Rio/Minas/Paraná, também contemplado com o grosso dos favores mensaleiros. O caso das ambulâncias envolveu a federação inteira, sanguessugada por quadrilhas tão ávidas quanto operantes.
Vamos além, que a corrupção é só um capítulo da saga de nossas tragédias. Pensemos na prepotência do que o Elio Gaspari diz ser a turma do andar de cima. Sua arrogância e sua indiferença em relação às carências da maioria são culpa de Brasília? Culpa de Brasília a ignorância e as precárias condições de vida a que estão sujeitos milhões de brasileiros? E o poder estadual e municipal? E a exclusão causada por um sistema social fundamentalmente injusto? Culpa de Brasília? Culpa de Brasília a sociedade algo cínica e do estilo salve-se-quem-puder em nos transformamos, entre seqüestros, balas perdidas e uma criança arrastada cruelmente por um carro?
Desconfio há algum tempo das simplificações. São úteis pra espantar a insônia e dormir tranqüilo, porém, imprestáveis para entender o que se passa e refletir sobre o que podemos fazer para melhorar a realidade com a qual, bem ou mal, temos de conviver.
Nunca é demais lembrar que parte dos preconceitos contra a criação do trio JK/Lúcio Costa/Niemeyer se deve ao ódio eterno que lhe devotam zilhões de cariocas. Considero o Rio minha segunda cidade. É a terra dos meus pais, lugar em que já morei, paixão e tristeza permanentes pela arte de transmutar beleza em caos. Amigos e parentes cariocas chegam a ser infantis na insistência em atribuir a Brasília a causa principal das mazelas tupiniquins. Mal disfarçam o ressentimento pelo que julgam ultrajante: perder prum lugar assim o título de capital.
Brasília é bem mais rica – e, em alguns aspectos, também mais pobre – do que supõe o superficialismo de seus críticos. Sem falar que seu nascimento permitiu povoar e desenvolver um Centro-Oeste até então esquecido, abandonado à própria sorte. Ela é o deputado oportunista, mas também é Carlês pegando as filhas na escola em meio ao corre-corre de um dia de labuta suada e honesta. São os carros oficiais desfilando seus vidros blindados e Luzelina tomando o ônibus de volta a Valparaizo. É Isabela fazendo Breno e Bruna, nossos filhos, escovarem os dentes, e é a alpinista-decote-em-carne-viva seduzindo o senador idoso, velhaco na política mas presa fácil pra certas armadilhas femininas. É o senhor parando na faixa de pedestre, é o rapaz bem-nascido matando alguém com um bólido possante.
Como centro urbano, ainda é um bebê. Completará 47 anos mês que vem. Cenário de muitas histórias individuais felizes, a chamada ilha da fantasia vai perdendo cada vez mais o jeitão de cidade do interior. São cada vez mais carros, mais crimes, mais pessoas, mais prédios. O setor imobiliário continua fazendo fortunas, assim como o exercício da advocacia, o lobby e tantos outros ofícios, alguns praticados conforme a ética do vale-tudo. Ou da farinha pouca, meu pirão primeiro.
Uma coisa eu sei: a mais incompreendida das cidades brasileiras, que tantos pretendem transformar na Geni verde-amarela, continua sendo um lugar muito legal pra se viver. Sonho em vê-la é se conectar com os melhores ventos que sopram de outros rincões do país. Pra se depurar, numa purificação que precisa ser simultânea com a da nação inteira. Até lá, que não se condene a ré em questão à revelia, sem possibilidade de apelação. Que se permita no mínimo direito à defesa e a um julgamento que obedeça aos ritos normais.
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