O caminhoneiro Adeil Helpes saiu cedo de casa naquele sábado ensolarado, dia 4 de outubro, véspera das eleições gerais de 2014. Foi carregar milho na empresa Sonora para levar até a fazenda Guará, no interior do município de Coxim (MS) – cidade centenária no extremo norte do Mato Grosso do Sul, com apenas 33 mil habitantes, e ponto estratégico no movimento de expansão territorial brasileiro rumo ao Oeste no Século XVIII.
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Adeil passou antes na casa dos pais para tomar café com bolo de fubá. Queria levar a mãe para passear. No seu jeito alegre, vestia a roupa de sempre: camisa de manga comprida, calça jeans, bota de cano curto, cinto de fivelão e chapéu de cowboy.
– Vamos comigo, mãe, a senhora quase não sai.
– Não, eu não posso ir porque tenho que limpar dois frangos pra vizinha – respondeu a mãe, com seu jeito decidido.
Ele ainda insistiu:
– Não, mãe, deixa que eu ajudo a senhora.
– Não, eu não posso sair – encerrou a matriarca.
Nessa hora, seus netos Murilo, de sete anos, e Isadora, de nove, filhos de Ana Rosa, acordaram. Como a viagem seria em estrada de chão, ficaram entusiasmados com a aventura.
– Nós vamos com o senhor, então, tio.
– Se o seu avô e a sua vó deixarem, eu levo. Daqui a pouquinho eu to voltando – disse Adeil.
Mas a avó estava com um mau pressentimento com aquela viagem.
– Não, não vai levar não, vocês nem comeram nada.
– Não, vó, nós nem estamos com fome. Na volta, a gente come – responderam os netinhos.
Eles estavam ansiosos para sair porque estudavam durante a semana, e ficavam presos em casa. Venceram a queda de braço com a vó e partiram alegres, acompanhados da namorada de Adeil, Natália, de 16 anos.
Adeil estava feliz porque estava pronto o caminhão que o seu patrão havia comprado especialmente para ele dirigir. Ele faria mais um trabalho, votaria no domingo e iria a Limeira (SP) buscar o caminhão.
Partiu para o frete. Chegou rapidamente à ponte sobre o córrego Figueira, distante 22 quilômetros da cidade, pela BR-359. Passou por Silvolândia, às margens do rio Taquari – considerado um dos principais pontos de pesca de água doce do país. Há no município muitos balneários, ranchos pesqueiros, áreas de camping, cachoeiras e dezenas de ilhas, além dos passeios de barco e de chalana pantaneira. Os turistas chegam atraídos pelos cardumes de peixes como pintado, surubim e piraputanga.
Adeil percorreu mais oito quilômetros pela BR, até pegar uma estrada vicinal à esquerda, de terra batida. Mais oito quilômetros e estava no córrego Figueira.
Ele reduziu a aceleração e entrou devagar na ponte, que ficava ao nível da estrada. A carreta carregada de 30 toneladas deixou o aterro e foi avançando pela ponte, que rangia sob o peso da carga, numa extensão de 49 metros. O peso máximo permitido era 15 toneladas, mas não havia placas com essa informação no local. Quando o cavalo (conjunto da cabine e das rodas de tração) estava quase chegando ao outro lado, com a carga toda sobre a ponte, o motorista ouviu um forte estalo, seguido de outros com menor intensidade. Adeil percebeu que a ponte estava ruindo e gritou:
– Ah! Meu Deus do céu, a ponte quebrou!
Sentiu que o chão afundava atrás dele e acelerou tentando chegar ao aterro. O cavalo poderia se desprender da carroceria e salvar a todos.
– Vou acelerar, vou ver se eu saio – gritou para a namorada, Natália.
Quando percebeu que a carroceria afundou e puxou o cavalo para trás, já emborcando, ele juntou e abraçou os dois sobrinhos, que estavam ao seu lado. A lateral direita da ponte esfarelou-se e fez com que a carreta tombasse para aquele lado, caindo no rio, de uma altura de cinco metros, com as rodas para cima (foto abaixo).
A carreta tombou
Pedro Helpes, pai de Adeil, estava numa oficina consertando a caminhonete quando recebeu uma ligação do filho mais velho.
– Pai, o senhor sabe o que tá acontecendo?
Diante da resposta negativa do pai, completou, sem meias palavras:
– A carreta do Adeil tombou lá da ponte da dona Bibi, no córrego da Figueira, e parece que morreu todo mundo.
Pedro levou as duas mãos à cabeça e exclamou:
– Deus o livre!
Pegou outra caminhoneta emprestada com o dono da autoelétrica, passou em casa para pegar a mulher e seguiu para a casa da Ana Rosa.
Rosa estava sozinha, preparando um almoço caprichado para os filhos, que ficavam com os avós durante a semana.
Pedro também foi direto ao assunto:
– Dora, aconteceu um acidente com as crianças.
– Mas não morreu ninguém, né? – perguntou a filha, já aflita.
– Eu não sei não, mas foi feio. A ponte quebrou, a carreta virou.
Rosa ficou desesperada. Ele percebeu e procurou acalmá-la.
– Deixa tudo quietinho que eu vou desligar o fogão, fechar a casa, deixar tudo no jeito. Você fica tranquila.
Entraram na caminhonete e pegaram a estrada. Rosa seguia aos gritos:
– Oh, meu Deus! Glória a Deus que não tenha acontecido nada.
Quando chegaram à ponte, que fica numa baixada, ela viu de longe a aglomeração de gente e dois carros de funerária. “Acabou”, pensou imediatamente.
Descontrolada, Rosa foi contida e confortada por amigas que lá estavam. Fizeram-na sentar e foram passando as informações. Pedro desceu do carro e correu por cima do que restava da ponte. Embaixo estava tudo interditado pela Polícia Civil. Pulou em cima da caçamba virada e depois na água, que era rasa. Tinha pedras no leito do rio. Não havia mais o que fazer, conta o pai:
– Não tinha jeito de ver nada. A carreta, que estava virada, tombou e puxou a cabine, que virou e bateu com tudo na pedra. A cabine bateu na pedra e achatou. Não tinha jeito de retirar o pessoal lá de dentro. Era 1h da tarde quando resgataram eles de lá.
Adeil sofreu traumatismo craniano e morreu no momento da queda. As crianças morreram afogadas.
Triste, triste
Na varanda da sua casa, no bairro Senhor Divino, seu Pedro relata toda a história com tranquilidade, mas se emociona ao contar o momento em que teve certeza de que havia perdido o filho:
– Aí foi um desespero que… [ele quase não consegue falar]. Eu vou falar pro senhor, nós ficamos tudo sem saber nem o que fazia. Ficamos tudo… [seus olhos enchem de lágrimas] foi uma tragédia triste mesmo. Pra nós foi difícil. Até hoje, tá com um ano e sete meses agora, é difícil o que nós passamos. A minha mulher até hoje não gosta nem de lembrar. Ontem mesmo, Dia das Mães, passou um desespero. A filha minha também ficou mal porque os meninos eram dela. Os filhos de Adeil ficaram.
Um senhor que vinha de moto logo atrás e presenciou o acidente conta mais detalhes:
– Eu vi tudinho. Na hora que passou na ponte, ele tirou a aceleração da carreta. Ele ia passando no máximo a uns 20 por hora. Entrou bem devagar na ponte. Escutei o estalo, vi a carreta tombando e já escutei a menina gritando lá dentro.
Logo que a carreta caiu no rio, ele e outro motorista desceram e conseguiram pegar a perna de Natália e puxá-la de dentro da cabine pelo vidro.
– Quando nós tiramos, ela caiu, desmaiou. Nós ficamos pensando o que fazer e ligamos pros bombeiros – contou o rapaz.
No dia do acidente, Pedro andou por baixo da ponte e percebeu as péssimas condições de conservação:
– Nós entramos por baixo, estava tudo podre, aquela coisa toda branca.
O dono de uma lanchonete próxima do local, Sávio Montovani, dá testemunho semelhante. Ele costuma pescar naquele córrego.
– A Ponte estava feia. Por baixo, a longarina estava meio corroída. Eu passava para pescar e via isso. A madeira não estava num estado bom para aguentar a pressão.
Pedro afirma que a prefeitura tentou dar outra versão para o acidente:
– O secretário de Obras alegou que ele [Adeil] tinha errado da ponte. Mas não foi nada disso, todo mundo viu. Era a ponte que estava podre mesmo. Não tinha nem um sinal de desviar. Ele passava sempre lá na ponte, direto, todo mundo. Eu passava o ano inteiro lá, porque eu trabalhava no laticínio do seu Joaquim Baiano. Eles também queriam um sinal. Não tinha sinal de nada, era uma ponte meio abandonada.
Uma nova ponte foi construída no local. Carros de passeio e caminhões mantém um tráfego intenso no local. A placa informa que se trata de uma obra da Prefeitura de Coxim, no valor de R$ 177 mil. “Avança, Coxim”, diz o slogan. Mas a placa não informa o limite de peso que a ponte suporta.
Motorista desde guri
Adeil trabalhava há vários anos como caminhoneiro. Puxava soja de Rondonópolis (MT) para o Porto de Santos em carretas treminhão. A paixão pelos caminhões era antiga.
– Toda vida, a paixão dele era só caminhão. Motorista ele era desde guri, porque eu sempre trabalhei com caminhão. Quando era moleque, ele já dirigia caminhão. Eu sempre fui encarregado de fazenda. Ele tinha 15 anos e trabalhava comigo, com caminhão gaiola, tudinho. Mas sempre na fazenda, na BR não.
O garoto não gostava de estudar. O pai ri quando conta.
– Estudo, ele tinha pouco, bem pouco. Devia ter o segundo ano só. Não gostava, gostava era de caminhão e rodeio. Gostava de montar quando era moleque. Ganhou rodeio muitas vezes, ganhou moto, ganhou dinheiro. Tinha uns vinte e poucos anos. Era bom, montava touro.
Andava sempre vestido de cowboy. Caprichava nas botas. Quando morreu, estava com um par de botas que não tinha nem acabado de pagar. O chapéu de pelo, o berrante, ficou tudo guardado na casa dos pais. Ele também foi encarregado da fazenda, como o pai.
– Adeil cuidava bem de gado. Gostava de fazenda também, mas depois virou com esse negócio de caminhão, era carreta e carreta…
Com 32 anos, foi casado e tinha dois filhos, uma menina de 15 anos e um menino de 12. Torcedor do Santos, não gostava de festas, a não ser as de rodeio.
A Delegacia de Polícia de Coxim investiga o caso. Os investigadores apuraram que a ponte estava em mau estado de conservação.
Confira amanhã: “Na Chapada dos Guimarães, um mergulho no Portão do Inferno”
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O caminhoneiro Adeil Helpes saiu cedo de casa naquele sábado ensolarado, dia 4 de outubro, véspera das eleições gerais de 2014. Foi carregar milho na empresa Sonora para levar até a fazenda Guará, no interior do município de Coxim (MS) – cidade centenária no extremo Norte do Mato Grosso do Sul, com apenas 33 mil habitantes, e ponto estratégico no movimento de expansão territorial brasileiro rumo ao Oeste no Século XVIII.
Adeil passou antes na casa dos pais para tomar café com bolo de fubá. Queria levar a mãe para passear. No seu jeito alegre, vestia a roupa de sempre: camisa de manga comprida, calça jeans, bota de cano curto, cinto de fivelão e chapéu de cawboy.
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– Se o seu avô e a sua vó deixarem, eu levo. Daqui a pouquinho eu to voltando – disse Adeil.
Mas a avó estava com um mau pressentimento com aquela viagem.
– Não, não vai levar não, vocês nem comeram nada.
– Não, vó, nós nem estamos com fome. Na volta, a gente come – responderam os netinhos.
Eles estavam ansiosos para sair porque estudavam durante a semana e quase não saiam. Venceram a queda de braço com a vó e partiram alegres, acompanhados da namorada de Adeil, Natália, de 16 anos.
Adeil estava feliz porque havia ficado pronto o caminhão que o seu patrão havia comprado especialmente para ele dirigir. Ele faria mais um trabalho, votaria no domingo e iria a Limeira (SP) buscar o caminhão.
Partiu para o frete. Chegou rapidamente à ponte sobre o córrego Figueira, distante 22 quilômetros da cidade, pela BR-359. Passou por Silvolândia, às margens do rio Taquari – considerado como um dos principais pontos de pesca de água doce do país. Há no município muitos balneários, ranchos pesqueiros, áreas de camping, cachoeiras e dezenas de ilhas, além dos passeios de barco e de chalana pantaneira. Os turistas chegam atraídos pelos cardumes de peixes como pintado, surubim e piraputanga.
Adeil percorreu mais oito quilômetros pela BR, até pegar uma estrada vicinal à esquerda, de terra batida. Mais oito quilômetros e estava no córrego Figueira.
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