Sionei Ricardo Leão*
Os desfiles em comemoração ao 7 de Setembro terão entre os protagonistas o 1º Regimento de Cavalaria, Dragões da Independência, unidade sediada em Brasília, que alterna com o Batalhão do Imperador a guarda do Palácio do Planalto. A mesma efeméride não fará qualquer menção, no entanto, ao “sangue, suor e lágrimas” derramados pelos integrantes do Batalhão dos Periquitos, composto por afrodescendentes que em batalha expulsaram da então Província da Bahia as tropas portuguesas que se recusavam a aceitar a autonomia da ex-colônia em relação à sua metrópole.
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Não será propósito desse artigo desdenhar o valor simbólico do 1º Regimento de Cavalaria, como simbólica foi a postura de Dom Pedro I, às margens do Ipiranga, mas questionar dos porquês que, a exemplo dos periquitos, vigora no Brasil a (i)memória de tantas contribuições da população negra no passado militar do Brasil.
Os periquitos, além de despontarem na defesa da Independência, na Bahia, protagonizaram, em 1824, um levante em favor do conceito do federalismo, razão pela qual o Estado decidiu por desmobilizar a unidade, distribuindo seus membros entre tropas pernambucanas, a fim de retirá-los da política e da história.
Como argumenta o historiador Hendrik Kraay, autor de Race, State, and Armed Forces in Independence-Era Brazil: Bahia, 1790s-1840, “as autoridades removeram os ex-escravos (e também a maioria dos soldados negros) da Bahia, dessa forma traçando mais explicitamente a linha divisora entre escravos e soldados. O levante do Batalhão dos Periquitos (outubro a novembro de 1824), percebido como uma revolta de soldados negros e ex-escravos, urgiu essas medidas”.
Por assim dizer, como em outros momentos, a inserção de negros livres e escravos nas tropas regulares era seguido de uma celeuma para as autoridades, ou seja, como conviver com pessoas que haviam conquistado a cidadania fardada, em meio a um regime escravista. Essa dicotomia ocorreu por ocasião da insurreição pernambucana contra os batavos de Maurício de Nassau, no século 17, com os lanceiros negros na Farroupilha (1835-1845) e com os “voluntários da pátria”, na Guerra do Paraguai (1864-1870).
Em todos esses momentos, o país recorreu ao indivíduo negro para embrenhar-se nos combates – personagens que encerrado o conflito eram legados ao esquecimento e à exclusão.
Recorrendo uma vez mais aos escritos de Hendrik Kraay, depois da guerra pela Independência, os senhores-de-engenho baianos se depararam com essa situação, que foi recorrente nos séculos passados, o desafio de restaurar a autoridade “sobre uma população escrava que vira e ouvira muitas novidades, sobre um exército cuja fileira continha um número apreciável de escravos (cuja condição ainda não fora resolvida), e sobre ‘classes de cor’ que ganharam nova consciência de sua importância em conseqüência dos seus serviços na guerra”.
A solução nesses momentos foi basicamente a mesma, extirpar o feito dos afrodescendentes da memória. Da mesma forma que pouco se fala ou se conhece respeito dos periquitos, vige equivalente absenteísmo quanto ao zuavos da Bahia, companhias compostas, exclusivamente, por negros recrutados em Salvador para lutar na Guerra do Paraguai, ou sobre os terços de henriques, organizados em referência a Henrique Dias, ex-escravo e herói de Guararapes, em 1694.
Essa prática, vale ressaltar, não se restringiu ao período escravista, pois percebe-se a continuidade dela, ainda no século 20, por ocasião da Revolta da Chibata, do marinheiro João Cândido, recentemente anistiado pelo Estado e na II Guerra Mundial, assuntos que merecem análises à parte.
Nesta passagem pelo Dia da Pátria, contudo, fica o registro dos brasileiros que, de fato, pegaram em armas para consagrar a ruptura entre Brasil e Portugal, em terreno singular, haja vista, que a Bahia década a década vem se cristalizando pela sua vertente cultural afro-brasileira.
Importa, enfim, assinalar que a história de nosso país, por vezes desdenhada, distorcida e estereotipada foi certamente erigida nos sabres de tantos dragões como pelo sacrifício humano de inumeráveis e anônimos periquitos.
*Sionei Ricardo Leão é jornalista e repórter da Clicatv, do Jornal de Brasília. Dirigiu seis documentários, entre eles, o Kamba’Race, que recebeu o Prêmio Palmares de Comunicação (2005) do Ministério da Cultura. Integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal (Cojira-DF).
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