À medida o governo brasileiro avança, lentamente, no meio a numerosas dificuldades de toda índole, setores políticos e judiciais, que estão além de toda qualificação ética, manipulam o mais agressivo lumpen para consolidar o sonhado golpe branco. No Brasil tem acontecido, desde o final de 2012, fatos que só se apresentam nas teocracias mais atrasadas do Oriente.
A herança dos vigaristas
No dia 6 de março de 2013, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias(CDHM) da Câmara dos Deputados definiu seu novo presidente. O PT tinha sempre prioridade na escolha da presidência de comissões, por sua alta representatividade na Câmara. Aliás, coerente com a tradição de luta pelos direitos humanos da esquerda (à qual alguns de seus membros ainda pertencem), sempre escolhia a CDHM. No entanto, tentado por comissões mais vinculadas à infraestrutura e aos aspectos econômicos do Estado, cometeu o grave “erro” de não escolhê-la.
A ocasião foi aproveitada pelo Partido Social Cristão, uma comunidade formada por fanáticos bible bashers, que elegeram uma figura bizarra, que produziu reações negativas em ativistas de direitos humanos, grupos políticos, celebridades do meio artístico e até no exterior. O artigo, cheio de alarme, foi publicado nos EUA (leia o texto, em inglês).
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Ao mesmo tempo, sites americanos acumularam milhares de assinaturas contra o presidente da CDHM. Todavia, não deve ignorar-se este fato:
Apesar de toda a oposição dos setores democráticos, a comunidade evangélica pentecostal (salvo alguns pequenos grupos), e os representantes de grupos fascistas, policiais ou militares no Parlamento, lhe deram forte apoio. Além disso, as autoridades do Parlamento, o Poder Executivo e o Judiciário ignoraram o problema, apesar da clara violação das leis contra racismo.
Dois anos antes, o que fora depois presidente da CDHM havia publicado no Twitter uma declaração considerada racista:
“Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato. […] A maldição que Noé lança sobre seu neto, respinga sobre continente africano, daí a fome, pestes, doenças, guerras étnicas!”
O bizarro personagem insistiu nesse ponto durante o ano de 2013, enquanto durou seu mandato, e repetiu maldições contra mulheres, gays, figuras pops e quaisquer outras pessoas ou grupos que pareciam contradizer as fábulas bíblicas.
Apesar de seu protagonismo de escândalos e provocações, é evidente que, pela limitada capacidade mental que surgia de seus discursos, sua conduta global era manipulada pelas Igrejas Evangélicas e, sem sombra de dúvida, pela direita (parlamentar ou não) que busca o golpe branco desde há tempo.
O ódio pelas religiões africanas, e o estímulo à agressão contra as comunidades afrodescendentes em todo o país, pode ser entendido como produto do fanatismo supersticioso, próprio de grupos de ativistas “surtados”. Entretanto, isso está combinado com estratégias de etnocídio e de democídio de comunidades pobres, que já foram executadas no Carandiru, em Pinheirinho, em Carajás e outros lugares onde a ultradireita parlamentar têm força.
Ou seja, é uma ingenuidade atribuir a luta antiafro apenas à demência e ignorância dos estelionatários da fé e seus seguidores. Há uma política de faxina social de tipo nazista, cujo melhor exemplo está em São Paulo (por exemplo, no massacre de maio de 2006).
Essa soturna galera de apocalípticos abandonou a Comissão de Direitos Humanos e Minorias no começo de 2014. O PT, consciente de que havia cometido um gravo erro, reassumiu seu controle. Apesar disso, a batalha foi dura. Um representante do pior do fascismo tupiniquim, célebre por ter defendido o fuzilamento do então presidente FHC, se apresentou como candidato avulso. O presidente da Câmara não foi capaz de impedir sua inscrição. Ele perdeu por apenas 20 votos.
Desgraçadamente, o período anterior foi gravíssimo para os direitos humanos. Deve-se adicionar o crescimento da campanha dos bible bashers, e o aumento de suas postagens na internet, especialmente no You Tube, de suas mensagens de ódio contra as religiões afro-brasileiras e os negros em geral, e de suas ações de ataque contra terreiros dessas religiões.
Linchamento religioso e racial
Embora talvez não tenha existido uma conexão direita entre os fanáticos fascistas e os linchadores de Guarujá, é fácil perceber como os preconceitos estendidos pela ralé racista incidiram de maneira direta na brutal carniçaria.
Fabiana Maria de Jesus era uma mãe de família de 33 anos, habitante de uma favela de Guarujá e, de acordo com o funeral religioso que foi realizado, devia pertencer à comunidade católica. Faz nada menos que dois anos, a polícia de Recife denunciou a desaparição de uma criança e publicou um retrato falado da suposta sequestradora. A mãe da criança disse, na época, que a mulher que havia raptado se filho não se parecia em nada a esta imagem.
Agora, dois anos depois, sem qualquer indício sobre a criança raptada, e sem qualquer evidência de que houvesse outros sequestros de crianças no litoral de São Paulo, um site sensacionalista da internet, Guarujá Alerta, publicou o identikit antigo, que nada se aparecia à antiga sequestradora, caso ela existisse.
Mas, o Identikit muito menos se parecia a Fabiana Maria de Jesus, uma jovem morena que foi atacada nos primeiros dias de maio de 2014, por uma chusma enfurecida de lumpen linchadores.
A jovem mulher morreu após dois dias de agonia, depois de ter sido linchada por um grupo calculado em 100 pessoas durante meia hora. Algumas testemunhas declararam que a vítima portava uma bíblia que foi confundida com um livro de “Magia Negra”.
A polícia diz que o linchamento durou “meia hora”, mas não sabemos como os policiais não tiveram tempo, em meia hora, de dispersar e prender os linchadores. É uma prática internacional, nunca criticada por ONGs de direitos humanos, que, diante de um linchamento, mesmo que os linchadores não portem armas de fogo, a polícia tem direito a disparar e, se não houver outro remédio, até de maneira letal.
Mas aqui não aconteceu isso. Até hoje, quase um mês após a morte pavorosa da jovem, a polícia não tem identificado mais de cinco ou seis sujeitos (até a quantidade exata é confusa). Tampouco houve pronunciamentos do Ministério Público. Nem sequer sabemos se eles serão indiciados. Um deles foi autorizado a falar perante as câmaras, algo que a polícia sempre impede aos detentos. Disse que ele era pai de família e se assustou ao saber que uma “sequestradora” andava solta. Tudo isso parece uma armação cuja finalidade seria dar uma advertência com uma vítima qualquer. Afinal, grupos fascistas sempre matam o primeiro que encontram para criar terror nos outros.
Portanto, cabe perguntar-se se este linchamento foi tão “espontâneo” como parece.
Em cidades onde a presença de evangélicos é expressiva, se lança sempre a notícia de que as crianças desaparecidas são capturadas por afrobrasileiros para rituais de magia negra. Esse é o nome que os evangélicos dão aos rituais afro. Tendo em conta a forte aliança de eleitores evangélicos com candidatos de ultradireita e juntando isso com a política de faxina social orientada pelos governos de SP, Rio e, parcialmente Minas, parece que, voluntariamente ou não, o linchamento de pessoas de cor “coincide” muito bem com os planos de extermínio racial e social.
Com esta conversa sobre “magia negra” aqueles fanáticos estimulam o sentimento de que a comunidade negra brasileira que pratica esses ritos é aliada do demônio (sic). Esse histerismo homicida, que visa a estimular o linchamento é cultivado nos rituais hebefrénicos das igrejas, mas também em vídeos que os pastores e seus aliados colocam na internet. Vejamos:
Essas acusações da conivência dos negros com o diabo, que estiveram em seu apogeu faz “apenas” 800 anos, se encontram em diversos vídeos do You Tube.
Veja uma gangue de terroristas religiosos atacando um terreiro em Olinda:
Traficantes evangélicos expulsam afrodescendentes das favelas de Rio:
Mas, há outros vídeos cujo endereço prefiro não divulgar para não fazer propaganda destes doentes mentais, nos quais antigos membros de religiões afro dizem ter-se convertido por “graça de Deus”, e contam aos pastores evangélicos que as religiões africanas estão aliadas com os diabos. Aparecem até sugestões para matar líderes afrobrasileiros.
Os crentes dessas religiões afro estão naturalmente muito preocupados pela possibilidade de assassinato e linchamento massivos. O bárbaro crime de Guarujá colocou todo mundo em alerta.
“Existem vídeos em que determinados pastores até pregam a morte dos sacerdotes africanos. Esses vídeos incentivam as pessoas a violarem nossas casas, a perseguirem nossos filhos, a nos perseguirem. Nós sofremos todo tipo de violência, e a Justiça tem se omitido”, denunciou líder de terrreiro Alexandre de Oxalá.
O juiz teólogo e o KKK jurídico
Diante da situação descrita, líderes dos movimentos afros pediram ao Ministério Público a retirada de 17 vídeos da internet nos quais se difunde o ódio contra as religiões africanas e até incentivo ao assassinato.
Isto nada tem a ver com liberdade de expressão, mas é uma forma de crime de ódio bem conhecida e punida com prisão na maioria dos países ocidentais. Quem quiser mais informação pode procurar na internet sobre o “massacre de Ruanda” de 1994, no qual morreram 950.000 pessoas.
O Ministério Público levou, no final de 2013, um pedido ao juiz federal da 17ª Vara do Rio de Janeiro para que retire da internet os vídeos criminosos. O juiz Eugênio Rosa de Araújo deu uma resposta surpreendente.
Não apenas se recusou a tirar os vídeos como injuriou as comunidades afrobrasileiras. Ele fez uma “douta” definição de religião, na qual deixava claro que as afrobrasileiras estavam excluídas. Para ele, há apenas duas religiões verdadeiras, a cristã e a islâmica.
Ele, então, cometeu dois crimes:
1) Ao negar proteção as pessoas atacadas nos vídeos de ódio, o senhor juiz, mesmo que seja por omissão, se torna corresponsável da campanha contra os afrodescendentes.
2) Ao desqualificar as religiões afrodescendentes, o juiz não apenas comete delito de discriminação religiosa, condenado pela lei brasileira, a Constituição e os tratados internacionais, mas, inclusive discriminação racial. Com efeito, fala-se globalmente das religiões afrobrasileiras, fazendo pensar que essa cultura não produz verdadeira religião, mas apenas superstições e ritos irracionais, reforçando as antigas crenças nazistas de que certas raças são menos dotadas que outras.
Artigo 20º da LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989.
O MP recorreu desta decisão com palavras muito dignas, onde mostrava que o juiz fazia um desprezo coletivo a milhões de brasileiros. Mas, que eu saiba, o juiz ainda não foi atuado por crime de racismo.
Pouco depois, as associações de magistrados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo mandaram uma declaração de apoio ao togado do KKK (falo KKK de antes, porque hoje eles não diriam tamanha barbaridade), e, na linguagem rançosa e pernóstica do “juridiquês em fúria” defendem a convicção individual do juiz. Embora esta convicção seja totalmente arbitrária e sem sentido, se eles defendem esse direito do juiz, deveriam também respeitar o do MP. Mas, aí não: eles também colocam na fogueira o promotor que fez a denúncia.
Se você tem estômago, leia parte das declarações de ambas as associações.
Conclusões e alertas
Se um blog de ódio foi suficiente para mobilizar cem linchadores contra uma pessoa que não pertence a estes cultos, e que vive a mais de 1.500 km do local onde se produziram os alegados sequestros dois anos antes, qual será o dano que poderá ser feito agora, em que um juiz e duas associações de juízes ratificam e reforçam a mensagem de ódio dos que estimulam o linchamento?
O reforço se mantém com a continuada presença dos vídeos na Internet e com a prédica de ódio em milhares de igrejas onde milhões de ingênuos e deserdados são roubados dos tostões que poupam com enormes sacrifícios.
É verdade que o juiz Araújo se retratou, considerando o “clamor da sociedade”. Onde está a dignidade de sua certeza individual e sua expressão de consciência?
Mas, por outro lado, parece esquisito que o juiz não soubesse que haveria uma reação negativa, até da própria OAB!
Não quero contribuir à especulação, mas:
Não será que o juiz estava testando a opinião pública? O que teria acontecido se ninguém dissesse nada, ou se ele tivesse obtido substantivo apoio?
Não será isto um balão de ensaio para um futuro pogrom em grande escala contra a comunidade afro-brasileira?
As ONGs de Direitos Humanos devem estar em alerta, como foi desta vez, mas também o governo federal não pode deixar de observar este surgimento de nazismo 70 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. O nazismo será ruim para a maioria de nós, talvez até para os próprios ingênuos que hoje o apoiam.
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