Argentina, por Ariel Palacios: um país “atravancado”
Congresso em Foco – Você diz que seu livro não tem clichês. O que as pessoas não vão encontrar no seu livro?
Ariel Palacios – Não vai encontrar estereótipo, de piada. Não é que seja livro sisudo. É bem humorado, mas tratando com muito respeito a Argentina e os argentinos, explicando todas as peculiaridades deste país, os fatos históricos, a vida cotidiana, a gastronomia, os costumes, o esporte, a relação com o Brasil, se há a rivalidade ou não com o Brasil, a economia, que é bastante esquizofrênica se comparada com a brasileira. A economia brasileira é um mar de rosas comparada com o que foi a argentina nos últimos 40 anos. Não vai encontrar uma frase do tipo “os argentinos são ‘dois pontos’”, aquela coisa de bater o martelo. O livro é uma tentativa de entender a Argentina, até porque os próprios argentinos dizem que não entendem, especialmente na área política e econômica. Se eles próprios não entendem, imagina um olhar de fora. Os clichês vendem mais, por ser a coisa mais fácil de compreender. Mas nunca gostei deles, e é isso que tento explicar no livro, como a rivalidade Brasil-Argentina.
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Os clichês são verdadeiros ou falsos?
Falsos. Um deles é que acham que os argentinos odeiam o Brasil. Existe muito na cabeça dos mais velhos. É uma coisa que talvez acontecia há 80 anos, quando os dois países eram rivais militares, na Segunda Guerra Mundial, nos anos 50. Mas isso desapareceu. Os argentinos adoram o Brasil. Vêm passar a férias no Brasil, consomem quantidades colossais de música brasileira, desde música mais popular como Michel Teló, até música mais elaborada como Tom Zé ou João Gilberto. É um clichê que ainda existe, mas os fatos mostram o contrário.
Eles nos odeiam no futebol?
Eles detestavam antigamente, até que surgiu um novo inimigo, a Inglaterra. Por uma questão geopolítica, por causa [da guerra] das Malvinas, em 1982. Eles agora preferem derrotar a Inglaterra nos campos do que o Brasil.
Isso é uma decepção para o Galvão Bueno e mais da metade do Brasil.
Comentei isso com vários amigos. Houve um momento, na Copa do Japão e da Coreia do Sul, em 2002. A Argentina estava desclassificada e o Brasil enfrentava a Inglaterra [nas oitavas de final, quando a seleção brasileira ganhou por 2 a 1 de virada]. Os argentinos torciam contra a Inglaterra. Não é questão de solidariedade com sul-americano, é que eles queriam ver derrotada a Inglaterra. Isso importava muito mais. Quando eu comentava isso com os amigos no Brasil, notava que o pessoal ficava frustrado, algo equivalente ao amor não correspondido, o ódio não correspondido 100%. “Mas como? Se a gente quer derrotar os caras, por que os caras não querem derrotar a gente?”, me diziam. Bom, eles querem derrotar também, mas não é o principal objetivo. O foco está na Inglaterra. Bem… pode ser frustrante pra muitas pessoas, mas é a realidade. Fazer o quê? Não posso dourar a pílula. Eles querem derrotar o Brasil, mas o principal é a Inglaterra.
É uma coisa de gerações também. Acho que as novas gerações no Brasil enxergam a Argentina de forma diferente. Senão, não iriam de férias pra lá. Um milhão de brasileiros foi de férias pra Argentina no ano passado. No ano anterior, foram quase um milhão. Agora tem um fluxo interessante. Desde 1978, vêm um milhão, em média, de argentinos para o Brasil por ano. Os turistas brasileiros eram muito poucos. Nos anos 80, eram 80 mil, 50 mil por ano. Isso foi crescendo nos anos 90 devagarzinho, nos últimos dez anos cresceu muito mesmo. Quando você viaja, conhece e tem uma percepção diferente do país.
Os argentinos continuam vindo ao Brasil nessa proporção?
Sim, apesar do câmbio desfavorável. Uma coisa interessante é que, nesse últimos 40 anos, não é apenas a classe média alta que vem ao Brasil, mas também a classe média baixa. O motorista de ônibus, a manicure, o bancário foram de férias. Os caras vêm modestamente, de ônibus ou de carro, ficam nas praias mais baratas como Camboriú (SC). Quando você vem num ano, passa duas semanas, volta no ano seguinte, passa 20 anos indo de férias todo ano, óbvio que você conhece o Brasil. Nesses 40 anos de fluxo intenso, os argentinos levaram para a Argentina várias gírias brasileiras, que eles adaptaram lá, palavras que não eram da gíria portenha, mas que foram importadas. O consumo de música é enorme.
Qual gíria?
Uma gíria é “curtir”. E a outra é “transar”. Mas foram levadas pra lá com certas modificações. O “transar” não é o ato sexual em si, a cópula, o coito. O “transar” na Argentina é o amasso, as carícias, as preliminares. Se você está transando com alguém, você está saindo com alguém, mas como no preliminar, não é a transa como o Brasil. O “curtir” é o contrário. O “curtir” passou a ser: “Ele está transando com ela” no sentindo brasileiro. As palavras acabam sendo importadas e tendo pequenas nuances. E há frases que são ditas lá, puramente em português, com sotaque portenho, mas ditas em português em tradução alguma, com o mesmo sentido do Brasil. Os argentinos acham que essas são expressões sonoras que representam muito o que querem dizer. Por exemplo: você chega na casa de alguém e a pessoa fala em português, mas com sotaque: “Adiante!”. Quer dizer: “Entra!”. Com alegria, assim como “bem-vindo”.
“Adiante” não existe no espanhol?
Não, não existe. É uma palavra estrangeira. É dito como se fosse “Adiantchi”, com “tchi”. A outra é uma expressão quando eles querem dizer que algo é o máximo. Eles falam em português, mas falam ‘errado’: “Ah, Militão, isso daí é o mais grande”. [“Más grande” em espanhol significa “maior”]. E eles falam meio rebolando, tentando imitar o jeito… como se a gente, quando falasse, rebolasse. Eu já expliquei pra eles que a gente não rebola quando fala. Então fica: “O mais grande do mundo”, como se fosse “grandgi”, com “dgi” no final. Está ‘errado’, é o ‘maior’, mas não adianta explicar. Eles continuam falando. A presidente Cristina Kirchner falou isso há uns três anos na frente do Lula, uma das últimas visitas dele à Argetina. Ela falou uma frase como “Eu admiro muito os brasileiros porque os brasileiros sempre pensam muito positivamente sobre o Brasil, porque o Brasil, ora, é ‘o mais grande do mundu’”. Ela falou assim: “du mundu”, com “u”. É uma expressão totalmente incorporada. Quando você quer dizer que alguém é o melhor jogador, o melhor diretor de cinema, quando algo é muito especial, você fala: “o mais grande” em português com sotaque. É uma expressão importada com erro gramatical incluído.
O ‘erro’ é uma adaptação argentina, não?
Exatamente, exatamente.
Por que a economia da Argentina é esquizofrênica?
Ela tem tido infelizmente um período muito longo de esquizofrenia. É um termo psicológico, não econômico, mas e aplica muito, porque ela tem tido altos e baixos, uma idas e vindas que qualquer coisa na política econômica brasileira vai parecer um mar de rosas perto daqui. É um país que, desde 1975, teve sete graves crises econômicas. Graves crises, não estou falando de médias ou pequenas. Teve estatizações, privatizações, reestatizações ou expropriações. Teve hiper-inflações pesadas. A hiper-inflação da época do [José] Sarney [1985-1989] é nada perto daquilo. A inflação do Sarney não chegou a 1.000% ao ano.
A do Sarney? E a inflação do Collor?
Isso. Também a do Collor. Se você fala pra um argentino que já sofreu com inflação, ele vai olhar: “Vocês? Hiper-inflação?”. Na época do [Raúl] Alfonsín [1983-1989], chegou a mais de 5 mil por cento por ano. Isso, sim, é hiper-inflação. Depois, o [Carlos] Menem [1989-1999] teve uma inflação de 3 mil por cento e outra de 1.300 por cento ao ano. Houve confiscos bancários, falências de bancos… Então, as pessoas, nessa esquizofrenia, buscam refúgio no dólar, por exemplo. Há 40 anos, elas buscam refúgio no dólar [Ainda existem empresas na Argentina que só aceitam pagamentos em dólar, como alguns hotéis].
Existiu um período em que as pessoas usavam várias moedas.
Isso aí foi na época da crise [2001-2003], quando as províncias estavam falidas e não tinham dinheiro, tiveram que recorrer a uma medida desesperada de emitir bônus provinciais. Eram como títulos da dívida, mas foram mais além e começaram a ser usados como notas, como se fosse dinheiro. É o que chamam de moedas paralelas. Isso durou uns dois ou três anos. Mais ou menos metade das [23] províncias argentinas tiveram que recorrer a isso, de emitir bônus, inclusive sem lastro algum.
Nem todos os “estados” tinham como pagar esses títulos?
Não. Depois, foram pagando lentamente. A crise pegou o final do Fernando De La Rúa e terminou no Eduardo Duhalde. Essas moedas foram eliminadas já no começo do governo do Nestor Kirchner, gradualmente. Na crise, em três anos, de De La Rúa a Dualde, houve cinco presidentes. É como aconteceu em Brasília, quando o governador José Roberto Arruda (ex-DEM) foi preso e cassado em 2009. Era um escândalo de corrupção… Claro, aí você não afeta o resto do país. E essa foi uma crise política. A troca de governadores não afetou a economia do estado, né? Na Argentina, a economia está muito vinculada à política. Qualquer solavanco da política altera as coisas.
Você falou que, no futebol, o rival maior é a Inglaterra por causa das Malvinas. O argentino é mais politizado que o brasileiro?
De forma geral, sim. Houve um período de altíssima politização, dos anos 40 até os 80. A ditadura atingiu muito isso, mas era um período de altíssima politização. Houve um desinteresse crescente pela política nos anos 90 e na crise de 2001, 2002. E esse interesse voltou a crescer – não é que havia sumido, foi menor o interesse, mas sempre maior que no Brasil. Mas a discussão política é muito forte. É politizado? Sim, é. Mas está altissimamente polarizado, ultra-polarizado. Sumiu praticamente do dicionário político argentino o diálogo. As pessoas têm posições políticas, mas elas não dialogam de jeito nenhum. Há uma situação muito tensa na sociedade. As pessoas discutem e não topam ouvir o outro. Isso é uma coisa que ficou muito intensa nos últimos anos. Muito intensa a ponto de não se poder mais reunir amigos de diferentes ideias, porque senão dá briga, de as reuniões familiares terminarem em discussão brava ou, pior ainda, de as pessoas não falarem em política pra evitar problema. Você já sabe que vai dar problema, você omite o assunto. Aí você tem que começar buscar assunto totalmente diferente pra não criar problemas. É impressionante.
Então, é comum terem brigas em família por causa de política?
Sim. Aconteceu nos anos 40 e 50 e voltou agora com muita força mesmo. Nós mesmos antes reuníamos todos os amigos. E, depois, há uns três anos, começamos a fazer duas reuniões diferentes. Os governistas de um lado e o antigovernistas por outro. Meu aniversário e o da Miriam [esposa de Palacios] são muito próximas. Às vezes fazíamos uma reunião grande com os amigos para comer algo em casa, uma pizza, umas empanadas e tal. Reuníamos dez, doze pessoas, que tinham posições ideológicas totalmente diferentes. Agora não dá mais pra fazer isso. Agora, num sábado você chama os kirchneristas e no domingo, os anti-kirchnerista. E os neutros a gente distribuía nos dois grupos. Só que agora a coisa piorou tanto que a gente tem que fazer três reuniões. Os neutros começaram a ser criticados pelos outros dois grupos. “Como é que você não tem uma posição? Você fica neutro? Traidor da pátria!” e aquelas coisas todas. Aí a gente teve que salvar os neutros e botar eles no terceiro dia. Isso porque a gente é muito diplomático.
Com esses solavancos na economia, essa polarização radical da política, qual é o futuro da Argentina em paralelo com o Brasil? O Brasil é um país em que, diz-se, está melhorando suas condições de vida aos poucos. E a Argentina?
O Brasil sempre foi pra frente. Aquela coisa de dar um passo gradual, mas ir avançando. E feito basicamente tudo no consenso. Essa é uma marca da política brasileira. Conseguir consenso é difícil, mas, quando se consegue, estabelece-se alvo e avança. Escuta, faz consenso, avança outro passo. Na Argentina, não. A Argentina é sempre a política do antagonismo. Você dá dois passos pra frente, volta três, avança dois, volta quatro, dá um pulo de dez, volta cinco. É um mistério o que pode ser a Argentina. Tem uma excelente base de educação, que não é como era há 20 anos, porque degradou muito. Você tem um fluxo de profissionais que foram embora do país e nunca mais voltaram. E de novo você tem um fluxo de pessoas que foram embora da Argentina, procurando melhores lugares no exterior. E, quando falo isso, não é o operário, é o profissional técnico. Não dá para saber. Não é um país que tem futuro bastante garantido como é o caso o Brasil. Acho que a Argentina terá um futuro de idas e vindas, de altos e baixos. Até porque tem a questão do diálogo da classe política. Nem o governo nem a oposição são civilizados a ponto de poderem dialogar. Nos dois lados, há uma falta total de vontade de diálogo. Então, não tem como, né? Os próprios governantes tomam medidas contraditórias. O governo diz: “Vamos restringir a compra de dólares por parte da população”. Daí, a própria presidente, a Cristina, tinha 3 milhões de dólares em aplicações financeiras nos bancos, em dólares. Uma pessoa faz uma cruzada anti-dólar e você diz: “Peraí, como pode ser?”. Quando o negócio ficou meio escandaloso, ela decidiu pesificar esses investimentos, passar dos dólares para os pesos. É um país que, de tão acostumado com as crises, investe pouco. O brasileiro é mais arrojado, é mais confiante no futuro, tem menos medo, às vezes meio ingênuo nesse aspecto, pois se arrisca demais. O argentino não se arrisca tanto porque tem medo de alguma crise, algum erro. Outro caso de economia pessoal. A presidente Cristina – além de [ter tido] investimentos em dólares – fala muito em investimento produtivo, na aposta pela indústria, mais até do que na agricultura. A presidente Cristina tem 17, 19 milhões de dólares, uma fortuna, a segunda presidente mais rica da América Latina, depois do [Sebastián] Piñera [presidente do Chile]. Mas o Piñera é bilionário, aí é outra história. Mas, no segundo lugar, não muito mais embaixo está a Cristina. Quais são os investimentos da Cristina? Você nota bem como pensa um político olhando quais os investimentos que ele tem. Imóveis! Ou seja, um investimento assegurado, sem risco algum, que não tem produtividade nenhuma. Imóveis! Compra de casas e apartamentos, e o aluguel dessas casas e apartamentos. Isso é o investimento da Cristina. E tem dois hotéis – serviços. Nada. Nem uma coisa, uma fábrica de autopeças, nada em qualquer de investigação científica. Nada! Então, você nota que, se a presidente pensa assim… E, se ela tinha dólares até pouco tempo atrás, é porque não confiava no peso. A população não confia na economia e a classe política tampouco confia. Uma coisa é o discurso e outra é a realidade que você vê.
O futuro da Argentina é obscuro?
Não diria que é obscuro. Há um grau alto de incertezas, pela classe política que tem na oposição e no governo. Até porque a Argentina tem uma grande sorte, ter vizinhos que são prósperos. A sorte da Argentina é ter vizinhos prósperos. Se você tem um vizinho que está bem, acaba pegando uma carona nessa onda boa. Brasil, Uruguai, Chile… O próprio Paraguai cresceu muitíssimo nos últimos anos, coincidentemente durante o governo [Fernando] Lugo, tudo bem que basicamente graças à soja. Mas o Paraguai melhorou muito do que era há uns seis, sete, oito anos. Há uma certa prosperidade na região – ou uma grande prosperidade se comparando com a Europa – e a Argentina tem essa vantagem, estar numa vizinhança que está indo bem. Se a vizinhança está indo bem, você pega uma carona nisso. Se for pelos vizinhos, acho que a Argentina está em boa companhia.
Mas, de todo modo, é como você diz: há um grau alto de incerteza.
Há um grau alto de incertezas por causa da classe política, de todo os partidos, que não apostam sério no país e isso fica claro pelos próprios investimentos pessoais desses políticos. O dia que aparecer um político que me diga “Eu tenho um investimento aqui porque tenho uma fabriqueta de autopeças” ou “Eu produzo seringas descartáveis” e o cara não tenha só aplicações financeiras em imóveis, aí eu vou dizer: “Esse aí é um cara sério, que está se arriscando e apostando”. Mas quando os caras vivem de renda, nem os próprios políticos apostam.
Você vê um bom futuro para a Argentina?
Não, eu vejo um futuro incerto. Não sei se é bom ou ruim. No momento, vejo que o país está atravancado. A curto prazo não vejo nada bom. Não vejo nada catastrófico, tampouco vejo alguma crise. Algumas pessoas me dizem: “A Argentina está indo de novo para o caminho de 2001, quando colapsou”. Não, longe disso. A situação é totalmente diferente, até porque as reservas do Banco Central não são minúsculas como naquela época. Todo cenário é diferente. Para ter uma crise como aquela, não seria algo imediato. Precisaria muito mais tempo de mancadas. Mas, a curto ou médio prazo, seria impossível uma crise como aquela. Mas não um futuro complicado ou catastrófico pela frente. Isso não tem. Também não é nenhum futuro excelente que vejo. É uma incógnita, não é ruim, nem catastrófico, nem excelente. Tá ali no meio, mas não sei em que grau ali no meio está.
Qual o PIB Argentino em 2012? Foi 0,9% também?
Segundo o governo, 3% e pouco. Mas os economistas dizem que é menos, 1% por aí. Não lembro o número exato.
O Juan Perón morreu, mas o peronismo não. Vai haver chavismo depois da morte de Hugo Chávez na Venezuela?
Eu acho que sim. Continua. Há várias nuances. A sociedade argentina não é como a venezuelana. É muito diferente. A proporção de classe média quando o Perón estava vivo não se compara com a Venezuela chavista. Segundo, o Perón vivo ficou mais tempo no comando do peronismo – não necessariamente no poder, mas no comando do peronismo, quando estava no exílio – mais tempo que o Chávez. O Perón chegou ao poder em 1945 e morreu em 1974, quase 30 anos. E o Chávez são 14 anos mais um ou dois anos antes como oposição. O Perón ficou mais tempo no comando do peronismo que o Chávez no chavismo. São duas sociedades muito diferentes. A economia venezuelana depende altissimamente do petróleo. A Argentina não era nada disso. Há muitos pontos similares, mas não totalmente intransferíveis. Sem a figura do líder, quem vai assumir o comando? Se bem que ele deixou um herdeiro [Nicolás Maduro, vice-presidente da Venezuela]. U herdeiro que é mais moderado que o Chávez, aliás o Chávez estava mais moderado nos últimos anos. Tem que ver como ficam as brigas internas dentro do chavismo. Ou se vai acontecer algo semelhante ao peronismo. O próprio Perón era muito ambíguo. Fazia coisas que eram mais pra esquerda e coisas que eram muito pra direita. Tem que ser os chavistas vão se dividir em radicais e moderados. Acho que vai aparecer uma multiplicidade de chavismos. Vai depender se vão conseguir manter a coesão durante muito tempo ou se vão depois de subdividir e fazer partidos diferentes, cada um sempre dizendo que está representando a vontade do líder defunto. Esse é um clássico na Argentina com o peronismo. O peronista de esquerda e o peronista de direita dizem que ele é quem está seguindo o que o Perón havia mandado. Tudo mundo usa a imagem dele dizendo que ele tinha dito que fazer tal coisa, interpretando do jeito que quer. O Perón é um cara que criou um monte de estatais, mas o Menem dizia que ele, nos últimos anos de vida já falava em privatizações. O que é verdade, não é mentira. O fato que cada um usa o morto do jeito que quer. O morto não está aí para dizer o que acha, até porque talvez, quando o morto estava vivo, não deixava muito claras as coisas. O Chávez criticava os Estados Unidos, mas continuava vendendo petróleo para eles. O Chávez fazia pose de progressista, mas era homofóbico e contra o aborto. Ao contrário do Uruguai, um país de vanguarda mesmo.
O brasileiro come melhor ou pior que o argentino?
Você tem uma carne com melhor qualidade na Argentina e uma gastronomia italiana muito forte, porque o volume de italianos é bestial na proporção do país. Isso não acontece em outro país do mundo, porque mais de 50% da população tem um ancestral italiano. No Brasil em geral, isso não acontece. Vice pode encontrar em São Paulo, mas você não tem uma proporção enorme de italianos no Acre ou na Paraíba ou em Minas. Na Argentina, o peso italiano é descomunal. Você tem uma pasta muito bem elaborada. Mas, ao mesmo tempo, tem uma pouca variedade gastronômica. No Brasil existe mais variedade, mais opções. A gastronomia argentina tem menores opções. São boas, mas muito menores. Menos frutas, menos pratos com verduras, pouquíssimo peixe, apesar da costa, quase nada de peixe. É uma gastronomia muito gostosa, mas bem menos variada.
Carnes e massas.
É o cotidiano. Tem pratos elaborados como o locro, o equivalente mais ou menos à feijoada. Mas o locro as pessoas comem uma vez por ano, em ocasiões especiais. Mas quantas pessoas comem feijoada todo dia? Não conheço ninguém.
A cultura argentina é bem mais que tango e Jorge Luís Borges, né? Mas o tango ainda é vivo?
Sim, eu comento no livro que o tango representa 25% do consumo cultural. Não é tão presente como antes, quando era ouvido pela maioria da população, mas ele tem 25% do mercado. O mercado se diversificou, o que é bom. Você tem um grande grupo que ouve rock argentino e um que ouve música folclórica argentina, como Mercedes Sosa [1935-2009] ou sucessores dela. Tem uma diversificação grande, mas os próprios argentinos dizem que o tango é a música que os representa no exterior.
Vinte e cinco por cento não é pouco.
Não é pouco, mas não é mais da metade.
É como se você no Brasil forró, sertanejo, samba e pagode?
Seria. É o símbolo do país no exterior.
E na literatura, o que há além do Borges (1899-1986)?
Há grandes escritores, como Adolfo Bioy Casares [1914-1999], o Ernesto Sábato [1911-2011], Júlio Cortázar – no ano que vem é o centenário de nascimento dele. Há poucas semanas se completaram os 50 anos de “O jogo da amarelinha”, o livro do Cortázar. Não tem grandes figuras nos últimos anos, algumas estão aparecendo, mas ninguém muito consolidado por enquanto na literatura. Ir mais além daquele patamar de Borges, Casares e Cortázar é muito difícil. Não é bolinho pra um escritor fincar o pé nesse território, mas existem escritores muito legais que estão aparecendo, caras jovens, de 30 e poucos anos.
Quem são?
Uma delas é genial. Foi traduzida no Brasil no finalzinho do ano passado, a Samanta Schweblin [autora de “Pássaros na boca”]. Escreve contos, que era o forte do Borges. Mora em Buenos Aires, mas agora está fazendo uma bolsa em Berlim este ano.
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