Felipe Seligman
Agência Pública*
Se, de uma maneira geral, a Copa do Mundo no Brasil ficará marcada por recursos mal gastos, superfaturamento de obras e oportunidades de legado desperdiçadas, a cidade de Brasília pode ser considerada a capital do país também sob esses pontos de vista. Em números absolutos o Mané Garrincha, como é mais conhecido, foi o mais caro estádio da Copa e um dos mais custosos entre todos já construídos na história do futebol. Não é só: a obra fez o Governo do Distrito Federal reduzir o uso de terras da capital para cobrir o déficit habitacional de 16%, quase o dobro da média nacional. O Comitê Popular da Copa acusa o governo de priorizar a construção da arena e preterir a política de moradia. Um documento inédito mostra que as receitas da empresa que administra as áreas públicas – muitas usadas em programas de habitação – minguaram com a venda de lotes para bancar a construção da arena.
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Para reconstruir o Mané Garrincha, gastou-se até agora cerca de R$ 1,4 bilhão, valor integralmente pago com dinheiro público. Para complicar, sua construção foi permeada por decisões equivocadas do governo local com consequências no mínimo questionáveis para os cidadãos e para o patrimônio do Distrito Federal.
Para entender essa história, precisa-se voltar à gestão do então governador José Roberto Arruda, que chegou a ser preso e teve de sair do cargo antes do fim de seu mandato, após a revelação de um esquema de pagamentos ilegais a parlamentares de sua base de apoio, o que ficou nacionalmente conhecido como o Mensalão do DEM. Antes disso acontecer, no entanto, o governador Arruda teve uma ideia que, anunciada à época, até parecia fazer sentido.
Escolhida como cidade-sede da Copa, Brasília deveria construir um novo estádio, no lugar do antigo e acanhado Mané Garrincha. Para que não precisasse recorrer a financiamentos bancários ou deixar a arena nas mãos de empresas privadas, o então governador decidiu levantar recursos através da venda de uma grande área verde da Terracap, empresa pública responsável por administrar as terras do Distrito Federal. O dinheiro do negócio iria para o estádio e essa área verde, localizada entre o Estádio e um dos principais shopping centers da cidade, seria utilizada na ampliação da rede hoteleira da cidade, necessária para receber um evento de grande porte.
Mas logo os problemas começaram a aparecer. Brasília é uma cidade planejada e tombada pela Unesco, com um Plano Diretor extremamente rigoroso. E, segundo esse plano, a área em negociação, cujo endereço é a quadra 901 Norte, não poderia receber empreendimentos comerciais. Manifestações públicas contra a venda do terreno começaram a ser organizadas, encabeçadas pelo movimento “Urbanistas por Brasilia”. Eles produziram um manifesto com mais de 130 assinaturas de profissionais da área, criticando duramente a negociação. No fim de 2011, o Instituto do Patrimônio Hitórico e Artístico Nacional (Iphan) emitiu parecer contrário à venda do terreno.
No ano seguinte, no entanto, já no governo do petista Agnelo Queiroz, tentou-se novamente negociar a área, incluindo no Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico elaborado naquele ano a possibilidade de construção de hotéis na área. Em maio de 2012, porém, a Vara do Meio Ambiente e Assuntos Fundiários do DF decidiu que o governo do DF e a Terracap não poderiam fazer obras que alterassem os parâmetros urbanísticos de uso ou de gabarito da quadra 901.
Comprometido em construir o estádio e disposto a torná-lo palco da abertura da Copa do Mundo (o que acabou não acontecendo), o governo não poderia voltar atrás. A construção do novo Mané Garrincha já estava sob a responsabilidade da Terracap, proprietária do estádio desde março de 2011, que precisou abrir o cofre e se desfazer de patrimônio para garantir o término da obra. Um documento do Conselho Fiscal da Terracap relativo ao primeiro trimestre do ano passado apontou “forte redução de disponibilidade de caixa na ordem de 80% relativo ao mesmo período de 2012. Em março de 2013, a empresa possuía apenas R$ 45 milhões de disponibilidade frente a um passivo de R$ 929 milhões”.
Também registrou as vendas de terrenos para bancar o estádio: “Em março de 2013, a Terracap apurou um lucro líquido de R$ 335 milhões, enquanto que no mesmo período de 2012 tinha apurado um prejuízo de R$ 55 milhões. Este lucro em 2013 é fruto da fonte de venda de imóveis, ressalta-se que esses recursos estão sendo aplicados totalmente nas obras do Estádio Nacional de Brasília — Mané Garrincha”.
“Entretanto, como o Estádio está sendo cedido gratuitamente para exploração pelo Governo do Distrito Federal, não está sendo gerada receita para recuperação deste investimento. Neste sentido, de acordo com as práticas contáveis de avaliação a ‘valor justo’ este estádio deverá ser baixado como perda, o que provocará um prejuízo considerável para a Terracap”, diz o documento.
Movimentos sociais de Brasília afirmam que isso teve impacto direto na política habitacional do DF. Reportagem da BBC Brasil publicada no dia 29 de maio apresentou críticas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) em relação à venda dos terrenos, por contribuir para a especulação imobiliária local.
De acordo com a Fundação João Pinheiro, que estuda problemas de moradia no país, o déficit habitacional no Distrito Federal atinge 16% dos domicílios, enquanto no país como um todo a taxa é de 9%.
“Nós não somos contra a Copa, somos contra a utilização do evento para realizar uma verdadeira transferência de renda às avessas. O DF possui hoje um déficit habitacional de mais de 200 mil famílias, mas, em vez de usar terras públicas para isso, o governo preferiu vendê-las para a construção do Estádio”, disse à Agência Pública Raphael Sebba, membro do Comitê Popular da Copa, grupo que vem realizando uma série de manifestações, em todo o Brasil, contra o desperdício de recursos públicos.
Além de administrar as terras do Distrito Federal, cabe também à Terracap promover melhorias sociais e econômicas para a capital do Brasil. Seu dinheiro, em última análise, deve, inclusive, ser destinado à construção de escolas, conforme ponto destacado no próprio site da instituição: “A Terracap repassa ao GDF os recursos financeiros necessários para a construção de escolas públicas nas diversas regiões administrativas do Distrito Federal”.
Superfaturamento
Mas a polêmica sobre os gastos públicos não termina por aí em Brasília. Não bastasse o financiamento 100% público do Estádio, o TC-DF (Tribunal de Contas do Distrito Federal) encontrou indícios de um superfaturamento de R$ 431 milhões. As comparações também impressionam. A Arena Grêmio, por exemplo, estádio do time gaúcho construído com capital totalmente privado com capacidade para 60 mil pessoas, custou pouco menos de R$ 500 milhões, quase três vezes menos que o Mané Garrincha, onde cabem 72 mil espectadores.
A Agência Pública procurou a Terracap para saber quais são os planos de recuperar os recursos investidos no Estádio. De acordo com a assessoria de imprensa, “a Terracap ainda não recebeu a obra “Estádio Nacional de Mané Garrincha”, por essa razão, a construção está registrada no Balanço Patrimonial na conta “Ativo Imobilizado”. Tão logo a obra seja entregue à Terracap, esta será registrada no Balanço Patrimonial à conta‘Investimento’”. Em outras palavras, a Estatal diz que assim que isso acontecer, o Estádio não será mais contabilizado como prejuízo.
A estatal explica que o estádio está cedido ao GDF, mas não de forma gratuita. “Pelo prazo de quatorze meses de cessão, o GDF repassará à Terracap a importância de R$ 28 milhões”. Argumenta também que “iniciou um estudo para identificar um modelo de negócio que melhor se adeque ao Estádio Nacional Mané Garrincha”.
Esse desafio não é dos mais fáceis. Sem nenhum time expressivo, até agora o estádio recebeu partidas de clubes de outros Estados, além da promoção de eventos musicais com atrações internacionais.
*Reportagem produzida pela Agência Pública
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