Lúcio Lambranho
Enviado especial a Corrente (PI) e Avelino Lopes (PI)
O Congresso em Foco visitou por quatro dias trabalhadores rurais dos municípios piauienses de Corrente e Avelino Lopes, acidentados quando voltavam de uma fazenda na Bahia, onde eram submetidos a condições degradantes de trabalho. Ouviu também o relato de familiares de 10 dos 14 mortos. Em comum, os depoimentos revelam a descrença no poder público, que, quase 13 anos depois, ainda os mantêm no abandono.
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João Paulo Pereira (à esquerda) ficou 120 dias internado para se recuperar da fratura exposta que sofreu no dia em que o caminhão caiu no buraco em Rochedo, localidade de Formosa do Rio Preto (BA), a menos de 70 quilômetros da casa da sua família, em Correntes (PI). A lesão no braço esquerdo impede o rapaz de trabalhar ou carregar peso nas tarefas domésticas.
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Ele tinha apenas 12 anos em 1995, ano em que ficou amigo de Jovenildo de Souza Pereira (à direita), apenas um ano mais velho e um dos trabalhadores da Fazenda Porto Alegre. “Lá na fazenda tinha seguranças armados, mas o comentário era que pistoleiros poderiam matar quem tentasse sair”, afirma João Paulo.
Os dois amigos não têm mais forças nos braços e nas mãos. Jovenildo não consegue, desde o acidente, fechar os dedos da mão esquerda. Na semana anterior a essa entrevista, ele ficou sabendo de um chamado dos “gatos” para trabalhar na colheita do café numa fazenda na Bahia. Ele precisa do dinheiro para ajudar a família, mas a tragédia colocou freio na sua necessidade. “Não tenho mais coragem de ir depois do que passei na cata do feijão”, afirma.
Genice Gama de Oliveira deixou as suas duas meninas para ser a cozinheira do grupo de catadores na Bahia. Chegando lá, as brigas e a mesquinharia pela falta do mínimo para cozinhar tiraram Genice das panelas e a jogaram na roça, onde passou a catar feijão ao lado de seus conterrâneos.
O acidente deixou a trabalhadora no hospital por 180 dias. Até hoje, apesar da recomendação médica para a retirada, ela guarda 14 parafusos de metal em uma das pernas. “Eu sabia que não ia morrer quando tudo caiu. Mas tinha certeza que só andaria numa cadeira de rodas”, lembra. Ela dispensa a ajuda para caminhar, mas as dores na coluna, na perna e na bacia são um tormento diário para Genice.
Sem dinheiro para comprar os remédios que poderiam aliviar o sofrimento, a trabalhadora tenta sobreviver vendendo bolinhos e coxinhas na vizinhança do bairro Aeroporto. “Sinto dor demais todos os dias”. A sua mãe, conta Genice, teve que sair de casa para pedir esmola na rua e dar o que comer para ela e as filhas.
“Só sei que uma dessas empresas tem muito dinheiro para pagar o que deve para essa gente toda”, afirma ao falar da total falta de amparo depois do acidente. Genice diz que já tentou se aposentar por invalidez, mas os peritos do INSS não aceitam os pareceres do médico do posto de saúde. “Estou pelejando para me aposentar, mas não aceitaram ainda”, protesta.
O coma, de 15 dias, deixou Osvaldo Vieira Neves (foto) sem muita memória e sem capacidade de aprender. Aos 15 anos, ele saiu da 4ª série para trabalhar na fazenda baiana junto com o pai, Osvaldo Rodrigues Costa, e os irmãos mais velhos, Rosevaldo e Paulo. |
Rosevaldo conseguiu pular antes que o caminhão caísse no precipício e sofreu apenas cortes na mão. Por milagre, Paulo não sofreu nada apesar de ter caído no buraco junto com carroceria do veículo.
Mas o pai da família, Osvaldo Rodrigues Costa, não resistiu aos ferimentos e morreu no acidente em Formosa do Rio Preto. De lá pra cá, Osvaldo, o filho, bem que tentou, mas não conseguiu acompanhar os colegas no colégio e acabou desistindo dos estudos. Ele tenta ajudar a família como ajudante de pedreiro nos serviços que aparecem pela frente.
Osvaldo e a irmã Roseli têm um sonho caso recebam as indenizações a que têm direito. Fazer um túmulo para o pai, enterrado até hoje numa cova rasa no cemitério da cidade. A jovem ficou oito meses em Brasília para acompanhar a recuperação do irmão trabalhando como doméstica. Osvaldo teve traumatismo craniano, fratura nas costelas. Nasceu de novo, mas é “esquecido”, como diz Roseli ao definir as seqüelas neurológicas do irmão.
Luzinete Pereira dos Santos deixou em 1995, aos 35 anos, oito filhos menores com o marido, Norato Nunes dos Santos, hoje com 60 anos. Entre os 14 mortos na tragédia dos catadores de feijão piauienses, a esposa de seu Norato era a única mulher. |
“Ficou muito difícil para o meu pai, que não é de sangue, mas considero muito depois da morte da minha mãe”, explica o único filho de outro casamento de Luzinete, Natanael Nunes dos Santos, 22 anos.
Ele e o irmão Carlos, o mais velho, com 30 anos, assumiram as contas da casa, já que o pai tem a audição reduzida e não pode trabalhar.
Os dois largaram a escola. Natanael foi até a 8ª série, mas o irmão parou na 2ª. Ambos querem voltar para escola, mas, por enquanto, não têm como bancar a família só por meio período ou com dedicação aos livros. Se a indenização vier, Natanael, que trabalha como servente de pedreiro, diz que a família vai comprar um pedaço de terra para produzir e melhorar um pouco de vida.
Maria Amélia da Silva desconfia da conversa dolorida sobre o filho Genisvaldo Barrista da Silva, morto aos 18 anos pelo acidente no pau-de-arara. O desespero que sentiu ao ver o caixão do filho no dia 23 de outubro de 1995 se renova toda vez que toca no assunto.
“Você está vendo eu aqui falando, mas eu estou morta. A pessoa finge, mas isso nunca sara”, dispara dona Maria Amélia ao falar da dor que sente desde que Genisvaldo resolveu ir trabalhar na cata de feijão. A mãe conta que insistiu para o filho não ir, pressentindo que algo errado poderia acontecer. Mas o Genisvaldo, lembra ela, queria juntar uns trocados para comprar uma bicicleta.
Dos dez filhos, sete moram em Brasília, mas ela ainda cuida dos menores e dos netos em Corrente, apesar da pressão alta e dos exames constantes que precisa fazer na capital. Ela não esquece do dia em que viu os caixões dos amigos e do filho espalhados pelo bairro aeroporto.
“Devolveram meu filho sem nada. Sem documentos e até pelado ele estava”, diz. Ela recebe a ajuda do filho Fábio Júnior (foto), 23 anos, que cuida de um pequeno salão onde corta cabelos da vizinhança. Ele quer voltar a estudar, caso a família receba a indenização pela morte do irmão, e fazer cursos de cabeleireiro. A possibilidade de receber o que é de direito também mexe com dona Maria Amélia. “Parece que começa tudo de novo quando alguém vem aqui falar sobre isso. Isso abala a gente demais”, diz.
A mãe de Valcir Pereira de Souza, 18 anos, um dos catadores mortos no acidente de caminhão, guarda, além da dor da perda, uma mágoa que bota para fora logo que começa a falar sobre o assunto. Dona Maria Marques de Souza, hoje com 43 anos, não pode ver a última imagem do filho no caixão. “Eles não deixaram abrir o caixão e fiquei doida”, lembra. Valcir foi encontrado embaixo das pernas do irmão Edvir, na época com 23 anos, também um dos ocupantes do pau-de-arara. |
“Ele ainda estava vivo, mas quando o irmão tirou ele debaixo das sacas depois de reconhecer pelo sapato, meu filho deu o último suspiro”, relembra dona Maria Marques.
Sem o filho que a “ajudava muito”, a lavradora tenta sustentar seus 14 filhos com uma pequena lavoura e uma dúzia de cabras no fundo de casa localizada na localidade de Riacho Fundo, em Avelino Lopes, cidade vizinha de Corrente. “Vocês não sabem do meu sofrimento”, resume dona Maria Marques.
Antes de sair para o trabalho na Fazenda Porto Alegre, Gedeon Damaceno de Souza, na época com 48 anos, vendeu a casa da família para cobrir os gastos com o tratamento de saúde da esposa. Sua iniciativa para tentar acabar com a anemia de dona Miraiza Ribeiro Durval, hoje com 49 anos, sacrificou ainda mais a vida. |
Mas Gedon não sabia o que aconteceria no caminho de volta para casa em Avelino Lopes. O catador é mais um dos mortos da tragédia que tirou a vida de outros 13 companheiros de lida escrava na fazenda baiana.”Foi difícil demais e tive que trabalhar três anos em casa de família”, relembra Miraiza, que segurou sozinha a barra de cuidar dos cinco filhos sem o marido desde 1995.
Por enquanto, só um dos filhos trabalha, e ela tem que se virar para pagar inclusive o aluguel de R$ 30 da casa de chão batido na avenida Sérgio Gama, no centro da cidade. “Tem dia que ele não acha carro para lavar. E eu tenho lutado muito com a pensão de um salário mínimo do INSS”, explica uma das viúvas do acidente de Formosa do Rio Preto.
Ademar Silva do Nascimento ia fazer sete anos quando o pai, João Bispo do Nascimento, morreu no caminhão que trazia os catadores de feijão de volta para Corrente. Hoje, aos 19 anos e longe da mãe que mudou para Cuiabá depois do acidente, ele teve que largar a escola na 5ª série e busca serviço longe da cidade, imitando o pai, morto aos 28 anos.
Apesar da pouca idade, o adolescente já foi trabalhar, pelo menos três vezes, em colheitas longe de casa durante 30 ou até 40 dias. A carteira de trabalho continua em branco. Ainda não conseguiu emprego fixo. “Tem lugar que paga no máximo R$ 15 por dia”, explica Ademar. Ele diz que quer voltar para escola e tentar uma vida melhor, apesar da perda do pai e a distância da mãe. “Meu pai cuidava muito bem de mim”, diz Ademar ao relembrar os anos que ainda tinha João Bispo e a mãe por perto.
Taís Helena Guedes Tete, 42 anos, ainda enche os olhos quando fala da morte do irmão, Paulo de Tarso Guedes Rodrigues, com apenas 13 anos na época do acidente. “Ele era um menino e no dia eu até tentei impedir que ele fosse, mas não consegui”, explica. |
Separada do marido há 13 anos, Taís sonha em fazer uma lápide para o irmão no cemitério da cidade se o dinheiro das empresas que levaram o seu irmão para a Bahia chegar. Depois da morte da mãe, de quem ela “herdou” um salário mínimo de pensão até 2004, Taís se viu obrigada a cuidar sozinha dos quatros filhos e dos quatro irmãos, além de dois sobrinhos.
“Eu passei fome, mas os vizinhos sempre davam um jeito de alimentar os meninos”, relembra. Depois de muita luta, ela conseguiu um lote para construir uma casa modesta de tijolos em que mora hoje com os filhos.
A mulher que dava conta de dez crianças ainda teve de se tratar de um caroço na mama em Brasília. Foi apenas um susto, o diagnóstico não mostrou nenhum rastro de câncer. Taís também recorda da sua batalha durante sete anos para construir a casa. “Cheguei a dormir no relento com meus filhos”.
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