Relendo o prefácio da décima quarta edição do meu livro Os Carbonários, publicada em 1998, vi um trecho que antecipa o essencial do que gostaria de dizer `a Comissão da Verdade se alguma vez fosse chamado a prestar meu depoimento sobre os “anos de chumbo”.
“Nos anos de chumbo, tive a tríplice felicidade de sobreviver, não ter sido capturado e seviciado e não ter matado ninguém. A ventura de ser apenas um guerrilheiro mediano (medíocre?), tremendamente sortudo, com um (tardio) sentido da realidade, que me permitiu escapar (oito dias antes do aniquilamento do comando Juarez de Brito, da VPR) e me deixou um inventário de cicatrizes relativamente brando, que se resume à dor da perda de alguns queridos companheiros. Pude desovar, em algum momento do exílio, a carga de ódio que me deixaram aquelas tragédias. Dele me recordo, vagamente, como quem visita um pesadelo: revejo-me num decrépito e solitário studio, sem banheiro, em Paris, com uma revista O Cruzeiro, recém-chegada do Brasil, pelo correio, com fotos dos cadáveres de Lamarca e Zequinha e uma crônica terrível, cruel, desrespeitosa – muito bem escrita – de David Nasser, glosando o feito d’armas da repressão e tripudiando sadicamente sobre os caídos. Naquela noite, odiei-o intensamente. Decidi matá-lo. Fantasiei como seria: regressaria clandestino ao Brasil e o executaria com cinco tiros de pistola. Acho que nunca detestei alguém tanto quanto naquela noite insone, de setembro de 1971, quando me senti culpado de estar vivo. Sonhava “justiçar” David Nasser e também o delegado torturador Sérgio Fleury, que certos companheiros juravam ter visto em Paris naqueles dias. Até hoje me lembro de todo aquele ódio dentro de mim. Recordo também como era ruim, tremendamente ruim, senti-lo.
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O ódio, o rancor, o sentimento de vingança são – percebi na carne – profundamente autodestrutivos. Impediam-me de aproveitar tudo de bom que a vida me oferecia naquele momento. Estava vivo, em Paris, com 20 anos, cercado de coisas belas, de pessoas novas, interessantes, provenientes de todo o mundo. Mil e uma experiências eram possíveis, centenas de atrações culturais e outras, a meu dispor, mas estava ali, aprisionado numa paranóica autoclandestinidade, vivendo, às margens do Sena, a continuidade da guerra perdida, do outro lado do oceano. Demorei ainda quase dois anos para emergir dessa masmorra mental que o DOI-CODI, que nunca conseguira me pegar, me infligia à distância. Depois entendi como pudera suicidar-se o Frei Tito, que não conseguia tirar da cabeça seu torturador, o delegado Fleury, ou Maria Auxiliadora, a Dôra, que se atirara debaixo de um trem, em Berlim, para fugir da Vila Militar.
Mil anos depois, em 1996, num pátio do Quartel Central do Corpo de Bombeiros, já secretário de Meio Ambiente da cidade do Rio de Janeiro, recebi uma medalha, uma homenagem pela minha colaboração com o destacamento de Bombeiros que combate incêndios florestais, no Parque Nacional da Tijuca. Solenidade de ritual militar, e eis que, para minha surpresa, surge o então secretário de Segurança do governo do estado do Rio de Janeiro, para me entregar a condecoração. O general Nilton Cerqueira se aproximou com a medalha na mão e prendeu-a na lapela do meu paletó branco de listinhas. Protocolarmente, cumprimentou-me pelos serviços prestados aos soldados do fogo. Trocamos um seco aperto de mão. Não senti ódio, rancor ou raiva. Não senti simplesmente nada pelo homem que matou meu amigo Carlos Lamarca. Apenas um tremendo constrangimento, acredito, compartilhado. Lá estávamos nós, vinte e seis anos depois, ambos autoridades, num país diferente.
(…) Certa ocasião, conversei longamente com um oficial da FAB que foi colega de meu falecido tio, aviador. Há trinta anos teríamos trocado tiros, possivelmente; hoje concordamos em muita coisa: a ecologia, a necessidade de ética na vida pública, a urgência de realizar o papel singular do Brasil no mundo, a justiça social, os estragos do cassino global. Após breve escaramuça, evitamos cuidadosamente qualquer menção aos anos de chumbo, quando negávamos um ao outro a elementar condição de brasileiros. Se adentrássemos aquele terreno, imediatamente tenderíamos a pular para dentro das nossas respectivas velhas trincheiras. E quem ganharia com isso?
Uma vez fui duramente recriminado por uma pessoa aparentemente ligada a grupos de direitos humanos, dedicados a manter viva a memória dos crimes da repressão naquela época. Como diabos poderia eu, Alfredo Sirkis, autor de Os Carbonários, ser secretário de Meio Ambiente de uma Prefeitura que tinha como responsável pela Guarda Municipal o tenente coronel Amendola, um ex-membro de uma equipe da PM que, na época, operava junto com o Exército na luta anti-guerrilha? Foi inútil tentar lhe explicar que eu tinha informações que me davam uma razoável presunção (embora não certeza absoluta) de que aquele oficial participara de operações de rua e combates mas não de interrogatórios e, de que, como tal, fora apenas um combatente do outro lado. E, afinal, ora bolas, o que quer que tivesse sido, não havia razão para eu desistir de meus projetos de reflorestamento comunitário, saneamento, combate à poluição e às agressões ambientais, construção de ciclovias e outras coisas boas para a cidade, para “renunciar e denunciar”, como me cobrava. Inútil. Senti naquela pessoa, jovem, da esquerda sectária, uma truculência psicológica e vibrações negativas que me fizeram tomar, depois, um banho de sal grosso. Não cheguei à crueldade de lhe narrar algo que vários companheiros que haviam feito treinamento em Cuba relutantemente me haviam relatado. A certa altura do adestramento, ao falar de coleta de informações junto a eventuais prisioneiros, o instrutor, apelidado Comandante Cubanito, se fazia ao mesmo tempo de vago e enfático: El prisonero tiene que hablar… pues tiene que hablar ! Nenhum deles dera muitas asas ao assunto, mas o sentido da afirmação era inequívoco. Tinha sentido claramente que, em caso de necessidade, ele era perfeitamente capaz de pendurar um prisioneiro no pau-de-arara, em defesa da revolução.
A tortura é algo abjeto. Degrada a quem a pratica. Provoca nojo e revolta a qualquer pessoa normal. E, no entanto, boa parte dos exércitos consideram-na arma de guerra. (…) Certa vez, em Portugal, um oficial aviador uruguaio, exilado, contou-me como alguns de seus colegas de academia militar, segundo ele previamente “boa pessoas”, se viram envolvidos no combate contra os Tupamaros. Um belo dia lhe exibiram, num hangar, com toda a naturalidade do mundo e até uma ponta de orgulho, la picana, o telefone de campanha usado para dar choques elétricos nos testículos dos presos. Poucos dias depois ele – secretamente partidário do general Liber Seregni, líder do Frente Amplio – desertou. Quantos tiveram essa coragem? Na sua opinião, em pelo menos boa parte dos casos a transformação de uma pessoa normal em torturador se relacionava menos com uma monstruosidade de caráter – embora essa também encontradiça – do que com uma dinâmica psicossocial, com uma cultura na qual a humanidade do inimigo passa a ser pura e simplesmente negada e o dever de obter a informação se sobrepõe a qualquer outra consideração. A velha história da banalidade do mal… Uma pergunta que sempre me perseguiu – perdoem-me, companheiros, mas o subconsciente é impertinente – é o que teria acontecido se tivéssemos vencido. Em que pesem os crimes do camarada Stalin, os sangrentos caprichos e as catastróficas experiências de Mao Zedong, o genocídio de Pol Pot. De fato, na história do Brasil, foi a direita, e apenas a direita, quem ao longo da história suprimiu liberdades e pisoteou direitos humanos. Talvez beneficiada pela sua não menos histórica inapetência para o poder, a esquerda não teve, para sua própria felicidade, a chance de eventualmente vir a ser liberticida. Fica no ar a dúvida.
Apesar dos anos que passaram e do quadro político totalmente diferente, não se pode esquecer tudo quanto sucedeu na rua Barão de Mesquita, na rua Tutóia, na Base Aérea do Galeão, no DOPS de São Paulo ou na “casa da morte”, em Petrópolis. As gerações futuras devem conhecê-lo, pois isso poderá, eventualmente, contribuir para evitar novos surtos autoritários numa história humana que não é linear, mas se move em ciclos. Não se pode, porém, fazer dessa memória um perene abscesso de fixação na relação com as instituições militares, inclusive ampliando o escopo da denúncia para oficiais que não participaram de interrogatórios. Há, efetivamente, uma razão de Estado que indica que, se não podemos nem devemos permitir o esquecimento, também não devemos nem podemos fazer que aqueles fatos, dos quais participou apenas uma ínfima minoria dos quadros que hoje compõem o quadro de ativa das nossas Forças Armadas (nossas, sim), se transformem num foco permanente de tensões, conflitos e reflexos regressivos. A absorção pelo seu esprit de corps dessa consciência é algo sumamente problemático, que precisa ser tratado com habilidade e sobriedade. Quanto mais o meio militar estiver mesclado ao civil, em busca de soluções para o país, mais forte a democracia. Quanto mais ele se sentir objeto de permanente estigma e se fechar, isolado, mais problemas haverá no horizonte. Encontrar o ponto de equilíbrio é difícil, mas ao mesmo tempo fundamental, sobretudo num momento em que o Brasil precisa de grande colaboração militar diante de gigantescos problemas ambientais, como o da Amazônia e o da manutenção do monopólio do Estado brasileiro sobre o material bélico, que, nas mãos de traficantes, ameaça a vida da população e o controle do Estado de direito sobre o conjunto do território.
Se a tortura por razões políticas foi algo que se aconteceu num período de doze, treze anos, sob o regime militar, depois de ter acontecido, duas décadas antes, no Estado Novo, de Getúlio Vargas, atingindo também pessoas de classe média e boas famílias, ela já existira antes desses períodos, e continuou existindo depois, em milhares de obscuras e fétidas delegacias de roubos e furtos e outras, onde sempre as mesmas técnicas são aplicadas por policiais preguiçosos e despreparados contra suspeitos, em geral pobres e negros, culpados ou inocentes, de uma gama de delitos comuns. Sair dessa situação e conseguir historicamente que ela vá minguando até sumir, como resquício de uma maldita pré-história, é algo que requer um “choque de civilização”.
Garantir que nunca mais haverá presos políticos e torturas em quartéis depende da consolidação da democracia, de instituições sólidas e de regras democráticas incorporadas pelo conjunto da sociedade. Para que nunca mais haja guerra entre brasileiros, quer em média escala, como em 30 ou 32, quer em “baixa intensidade” – a mas nem por isso menos cruenta – como nos anos de chumbo do final dos 60, início dos 70. A guerra civil, o confronto fratricida engendra inevitavelmente violações dos direitos humanos, inclusive em dimensões muito maiores do que aqui. É só olhar para a ex-Iugoslávia no flanco da Europa. Dificilmente haverá uma guerra civil “limpa”. Tortura nunca mais, ditadura nunca mais, mas também luta armada nunca mais. Nenhuma ilusão mais de que existem atalhos, de que se pode consertar o Brasil por outro caminho que não o do paciente, constante e persistente exercício da democracia e daquelas liberdades que no passado chegamos a desprezar como “burguesas”.
Se não me envergonho, tampouco posso me orgulhar, porque cometemos muitos erros. Pessoas inocentes também caíram vítimas da guerrilha. Balas perdidas, enganos trágicos, também alguns crimes. Um marinheiro inglês de 19 anos foi estupidamente metralhado num estapafúrdio e cretino ato de solidariedade ao IRA. Um oficial alemão, aluno da Escola Superior de Guerra, foi “justiçado”, por engano, confundido com um militar boliviano presumidamente envolvido na morte do Che Guevara. Houve o caso notório de Márcio Toledo, executado por seus próprios companheiros, acometidos de surto paranóico-stalinista. E aquelas dezenas de soldados, policiais, suboficiais e oficiais, combatentes do outro lado, caídos em confronto, na porta de bancos, na escolta de embaixadores, em escaramuças de rua? Guerra é guerra, mas como não deixar, hoje, de lamentar todas essas vidas perdidas, de pensar, também, nas famílias deles. Os próprios sequestros de embaixadores, conquanto permitiram arrancar companheiros das torturas e, em alguns casos, salvar-lhes a vida, tiveram o aspecto problemático de usar pessoas inocentes como reféns. Quase trinta anos depois, tudo é infinitamente mais complicado do que o maniqueísmo, simplificador e confortável. Por tudo isso se pode dizer que a anistia de 1971, da forma “recíproca” como se deu, conteve certa sensatez que transcende as manobras táticas do então ministro da Justiça, Petrônio Portela, para fazê-la ser engolida pela chamada “linha dura” militar. Aquela anistia, nivelando a “subversão” aos chamados “crimes conexos”, foi injusta, pois foram atos muito diferentes, porém acabou sendo sábia. Em história isso acontece.”
(fotos: a primeira e segunda: “Felipe” da VPR, em 1970. A terceira, em Lisboa, escrevendo Os Carbonários, em 1978)
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