Nos últimos anos, grande parte da atenção da sociedade brasileira esteve (e está) voltada para as finanças públicas. O episódio mais traumático da vida nacional nesses três anos mais recentes, o impeachment da presidente Dilma Rousseff, estava assentado em graves problemas jurídico-financeiros.
Nessa mesma linha, o noticiário da grande imprensa nos últimos meses está tomado, em grande medida, por notícias do mundo das finanças públicas. Eis alguns emblemáticos exemplos:
a) a aprovação da emenda constitucional do teto de gastos, denominado de “novo regime fiscal” e responsável por uma contenção seletiva da despesa pública. Afinal, restringe os dispêndios nas áreas sociais e não estabelece limites para os gastos financeiros (https://goo.gl/au2ZeS);
b) o alarmista discurso oficial do deficit da Previdência Social. É a justificativa, na ótica dos Meireles da vida, para uma açodada e injusta reforma nas condições de usufruto dos benefícios previdenciários. Uma das facetas mais repugnantes do debate rasteiro em torno do assunto envolve uma comparação entre as despesas do regime geral e do regime próprio (dos servidores públicos) sem considerar as profundas diferenças de custeio e a ausência (deliberada) de constituição dos fundos definidos pela Emenda Constitucional n. 20, de 1998 (https://goo.gl/MXI94k);
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c) o governo do senhor Temer anunciou a mudança da meta fiscal (ou meta de resultado primário) para o ano em curso. Depois de muitas idas e vindas, foi definido um aumento do déficit de 139 para 159 bilhões de reais. Parece, só parece, que o Brasil quebrou. Deve ser observado que: c.1) inúmeros países com economias de peso apresentam esse tipo de dado macroeconômico por vários anos sem que isso represente o apocalipse econômico ou algo parecido (https://goo.gl/uhzyKv); c.2) é perfeitamente possível administrar essa situação com o manejo de vários instrumentos de natureza econômico-financeira; c.3) temos reservas num patamar dez vezes maior que o déficit projetado. São cerca de 380 bilhões de dólares, segundo dados do Banco Central (https://goo.gl/9tknNT) e c.4) no limite, é possível resolver o problema pela via da emissão de moeda (com a superação do misto de mito e dogma que advoga uma suposta inviabilidade de fazê-lo) (https://goo.gl/T5EBLj);
d) na esteira da mudança da meta fiscal, pretende-se suspender o reajuste remuneratório dos servidores públicos civis da União previsto em lei para ocorrer em 2018 como mera reposição da inflação. A economia projetada alcançaria cerca de 10 bilhões de reais (https://goo.gl/FgsFNL);
e) o governo anunciou um conjunto de privatizações que pretende arrecadar cerca de 44 bilhões de reais ao longo dos anos de concessão de 58 empreendimentos (https://goo.gl/rfzW8n). Nesse ponto, seria preciso enfrentar um debate profundo para além da máxima falsa e rasteira da “necessidade” de reduzir o tamanho do Estado. Eis algumas importantes indagações: e.1) o movimento persegue aumento de ingressos nos cofres públicos para “fechar as contas”? e.2) e as repercussões estratégicas nos campos político e econômico (com a entrada “em cena” de poderosos interesses alienígenas)? e e.3) existe perspectiva real de aumento das tarifas para o consumidor (em especial nos casos de monopólios)?;
f) diariamente são identificados, quantificados e noticiados os mais estranhos e repulsivos privilégios no âmbito da máquina pública, tais como: f.1) o auxílio-moradia para membros da Magistratura e do Ministério Público (envolve cerca de 430 milhões de reais por ano no âmbito da União) (https://goo.gl/tCgWY2); f.2) a utilização de carros oficiais de representação (em 2015, a locação de veículos para senadores custou cerca de 2,3 milhões de reais) (https://goo.gl/p2Qrfb); f.3) a utilização de aeronaves da Força Aérea Brasileira por autoridades (no primeiro trimestre de 2017, o presidente da Câmara dos Deputados gastou mais de 600 mil reais em jatinhos da Força Aérea Brasília-FAB) (https://goo.gl/ZwBHph) e f.4) as contratações “mirabolantes”, como a de especialistas para ministrar aulas de caminhadas para juízes do TRT5 ao custo de 196 mil reais por ano (https://goo.gl/hvJo4P);
g) vários estados da Federação convivem com situações dramáticas de administração das contas públicas, principalmente em função da forte retração das receitas, chegando ao ponto de atrasar e parcelar remunerações, aposentadorias e pensões (https://goo.gl/MStrak);
h) os escândalos de corrupção se sucedem indicando um considerável sorvedouro de dinheiro público. O mais recente e mais vistoso desses macabros episódios envolve a filmagem de pagamentos de propinas em dinheiro vivo promovidas pelo ex-governador Silval Barbosa, do Mato Grosso (https://goo.gl/L3PyTt);
i) no âmbito de uma reforma político-eleitoral suspeita e ilegítima, buscou-se a criação de fundo de financiamento de campanhas com a disponibilidade de cerca de 3,6 bilhões de reais (0,5% da receita corrente líquida da União) (https://goo.gl/oUKG74). Registre-se que o financiamento público de campanhas é a melhor (ou menos pior) das opções para lidar com essa matéria. Entretanto, só faz sentido se viabilizar, por essa via, pleitos espartanos (com profundas restrições nos gastos de campanha).
Esse rápido apanhado, assim como o noticiário da grande imprensa e o discurso das principais autoridades públicas, trata as finanças públicas de forma seletiva. Mostra muito e esconde muito, também. Perceba-se que os elementos destacados compõem uma área bem definida das despesas públicas. Consideram, em regra, gastos relacionados com a máquina pública, com servidores, com agentes políticos e com benefícios sociais, notadamente previdenciários.
Ocorre que existe todo um mundo econômico-financeiro escondido dos noticiários e da narrativa governamental. As grandes questões econômicas e financeiras de um país, especialmente com o porte e a complexidade do Brasil, vão bem além da seara estritamente fiscal para adentrar em relevantíssimos aspectos monetários, cambiais e creditícios.
Em escrito anterior, com o título de A DESPESA PÚBLICA E SEUS “BOIS DE PIRANHA” (https://goo.gl/LWWnQ4), destaquei os seguintes itens esquecidos ou raramente mencionados no debate público sobre a situação das finanças públicas brasileiras:
a) “as bilionárias despesas com o serviço da dívida pública são praticamente “esquecidas” no debate realizado pela grande imprensa, pelo governo e pelo parlamento. Nesse campo, registra-se o pagamento de cerca de 511 bilhões de reais em juros (nominais) pela União em 2016 (8,1% do Produto Interno Bruto)”;
b) “a sonegação tributária, segundo vários estudos e análises, como aquele que sustenta o sonegômetro do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) (https://goo.gl/wMWAI), atinge o patamar de 500 bilhões de reais por ano”;
c) “os subsídios de várias naturezas concedidos pelo governo constituem um capítulo especial em matéria de gastos públicos. A maior parte desses benefícios não aparecem expressamente no orçamento discutido e aprovado no Congresso Nacional. ‘Segundo o Ministério da Fazenda, de 2003 a 2016 os subsídios embutidos em operações de crédito e financeiras somaram quase R$ 1 trilhão – 420 bilhões do total foram para o setor produtivo’ (Folha de S.Paulo, dia 6 de agosto de 2017)”;
d) “as renúncias de receitas tributárias em conjunto (realizadas e projetadas), entre os anos de 2010 e 2018, alcançarão o patamar de 501,4 bilhões de reais”.
Estes outros elementos, sem pretensão de exaurir a análise, precisam ser considerados:
a) as reservas internacionais atingem, como foi dito acima, o patamar de 380 bilhões de dólares (ou 1,2 trilhão de reais). A maior parte desse valor corresponde a títulos americanos que rendem juros baixíssimos. Inúmeros economistas destacam: a.1) que o nível das reservas é exageradamente alto (deveria observar um patamar menor) e a.2) o custo de formação (ou de carregamento) é muito elevado. Isso porque o Brasil lança títulos remunerados por juros SELIC (altíssimos) para captar os recursos a serem utilizados na formação das reservas em títulos americanos e dólares. Essas operações foram (e são) responsáveis por boa parte do aumento da dívida pública brasileira nos últimos anos;
b) a dívida pública brasileira, bruta ou líquida, cresce continuamente em função: b.1) da formação das reservas internacionais, como já mencionado; b.2) das operações compromissadas; b.3) das altíssimas taxas de juros e b.4) de suspeitos mecanismos de administração, notadamente no âmbito da rolagem ou refinanciamento. Segundo dados do Banco Central do Brasil, a dívida bruta do governo geral em dezembro de 2016 significava 4,3 trilhões de reais e a dívida líquida do setor público, no mesmo momento, cerca de 2,8 trilhões de reais. A responsabilidade dos déficits primários é claramente secundária porque: b.5) tivemos superávits entre 2002 e 2013 (quando o endividamento cresceu pelas razões citadas) e b.6) a “regra de ouro” do art. 167, inciso III, da Constituição limita o endividamento para responder por despesas correntes;
c) o volume de “operações compromissadas” cresceu tanto nos últimos anos que foi responsável por parte significativa do aumento do endividamento público. No Brasil, os condutores da política econômica converteram, na prática, um mero e relativamente modesto instrumento de política monetária, realizado pelo mundo afora, em um grandioso mecanismo de transferência de riqueza do conjunto da sociedade para setores já altamente privilegiados do todo-poderoso mercado financeiro. Em linguagem simples e direta, as operações compromissadas são “compras” de dinheiro dos bancos, realizadas pelo Banco Central, em troca de títulos da dívida pública com cláusula de revenda. Elas reduzem a liquidez (quantidade de moeda em circulação) e são fundamentais para a manutenção da taxa de juros em patamares altíssimos. Esses juros enormes são pagos pelo Banco Central aos bancos no momento de retomada dos títulos. Em dezembro de 2011, 311,86 bilhões de reais do estoque da dívida pública brasileira correspondiam a “operações compromissadas”. Em dezembro de 2012, o valor subiu para 497,5 bilhões de reais. Em dezembro de 2014, o número chegou a 791,57 bilhões de reais. Em dezembro de 2015, o quantitativo alcançou 894,54 bilhões de reais. Em dezembro de 2016, o valor atingiu o patamar de 1.026,39 bilhões de reais. Os dados estão disponíveis no site do Banco Central (https://goo.gl/gBhrpQ);
d) ao firmar os contratos de swap cambial, o Banco Central compromete-se a pagar ao “investidor” a diferença de valor verificado na moeda estrangeira em relação ao real (valorização ou desvalorização) mais uma taxa de juros efetiva. O “investidor”, por sua vez, paga ao Banco Central o valor da taxa selic. Assim, essas operações funcionam como um seguro diante de uma forte alta do dólar, desincentivando a busca pela moeda e, por essa via, impedindo que ela suba mais. É importante destacar que as operações de swap são contabilizadas como um passivo nas contas públicas (com aumento de tamanho da dívida pública). Em 2015, o prejuízo com o swap cambial chegou a quase 90 bilhões de reais. Somente no mês de janeiro de 2016, o prejuízo alcançou o patamar de 16,7 bilhões de reais (ganhos para uma minoria de especuladores e ônus para a sociedade como um todo) (https://goo.gl/gBhrpQ);
e) a dívida ativa da União, composta por créditos tributários e não tributários não pagos pelos contribuintes, atingiu a cifra de 1,84 trilhão de reais ao final de 2016 (https://goo.gl/srox7Y). A recuperação adequada desses valores, num fluxo anual razoável, é rigorosamente sabotada. O Poder Público sistematicamente sonega os meios necessários para a realização deste trabalho. São consideráveis as deficiências de pessoal, apoio administrativo e sistemas de informática nos órgãos específicos da Advocacia-Geral da União (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Procuradoria-Geral Federal). O próprio arcabouço normativo aplicável é atrasado e dificultador do atingimento de padrões adequados de eficiência nessa seara.
Definitivamente, o Brasil não está quebrado. Entretanto, enfrenta uma crise socioeconômica de grande envergadura. São múltiplos os fatores que conduziram ao quadro hoje vivenciado, notadamente:
a) redução de preços das commodities no plano internacional;
b) limitações da política de crédito voltada para o consumo (não tem como se manter indefinidamente);
c) limitações das políticas de assistência social; e
d) ausência de mudanças estruturais (juros, dívida, perfil agrário, modelo tributário, etc).
A superação desse quadro reclama o enfrentamento de entraves substanciais ao desenvolvimento socieconômico com justiça social. Nesse sentido, o caminho a ser trilhado não passa por restrições ou eliminações de direitos sociais, fundamento das mais relevantes ações governamentais mais recentes voltadas para criar excedentes econômicos apropriáveis pelas historicamente insensíveis elites tupiniquins.
Devem ser contabilizadas nessas iniciativas:
a) o teto seletivo de gastos públicos;
b) a terceirização nas relações de trabalho;
c) a reforma trabalhista; e
d) a reforma da previdência.
O caminho justo e adequado reclama, entre outras, as seguintes providências mais gerais, todas com caráter popular, democrático, transparência e controle social:
a) profunda reforma dos mecanismos relacionados com o sistema da dívida pública (fixação da taxa de juros, operações compromissadas, formação de reservas internacionais, administração da rolagem, tamanho da base monetária, política de superávit primário, auditoria do endividamento, entre outros);
b) controle sobre os fluxos de capitais;
c) profunda reforma tributária;
d) reversão da desindustrialização (com planejamento público e financiamento adequado das atividades produtivas estratégicas);
e) combate à reprimarização da economia; e
f) ampliação duradoura do mercado interno baseada em aumento efetivo da renda dos trabalhadores.
Não custa lembrar Cazuza: “Transformam um país inteiro num puteiro/pois assim se ganha mais dinheiro”. Esses “transformadores” são justamente uma diminuta elite socioeconômica (latifundiários, grandes empresários, barões da grande mídia e especuladores ) e seus representantes políticos. Faz parte desse jogo de exploração e extrema desigualdade socioeconômica tratar as contas públicas, para a sociedade, de forma perversa e seletiva, no sentido do que mostrar e do que esconder.
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