Celso Lungaretti*
Eder Jofre e Eduardo Matarazzo Suplicy, o maior boxeador brasileiro de todos os tempos e o parlamentar petista mais identificado com a defesa dos direitos humanos, respectivamente, divulgaram carta aberta a Fidel Castro, na qual fazem “um apelo humanitário ao governo de Cuba”. Pedem-lhe que dê “uma nova oportunidade, como merecem todos os seres humanos”, aos atletas Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara.
Ambos desertaram da delegação cubana durante os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, com a intenção de se tornarem pugilistas profissionais na Alemanha. Como amadores, os dois são campeões mundiais de suas categorias e Ringondeaux detém também o título olímpico.
Estiveram desaparecidos por 12 dias, aliviando sua tensão com prostitutas, enquanto esperavam que os aliciadores criassem condições para sua viagem à Europa.
Localizados pela Polícia Federal, passaram dois dias em liberdade vigiada, tendo sido mantidos inacessíveis à imprensa e até a juristas (o presidente da OAB-RJ tentou em vão falar com eles e acabou se contentando com as palavras tranqüilizadoras de um delegado e um procurador). Em seguida, foram recambiados a toque de caixa para Cuba, numa operação muito criticada pelos defensores dos direitos humanos.
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Caso de Miguel Vivanco, diretor-executivo da Human Rights Watch, que enviou carta ao ministro da Justiça, Tarso Genro, levantando a possibilidade de o governo brasileiro não ter tomado “medidas suficientes para assegurar que Rigondeaux e Lara recebessem as proteções legais às quais eles pudessem ter direito como refugiados em potencial".
O principal – praticamente único – argumento dos defensores da lisura do comportamento das autoridades brasileiras é o de que os boxeadores não solicitaram asilo. Vivanco foi taxativo:
– Ainda que os dois atletas não tenham requisitado asilo político explicitamente, pedidos de obtenção do status de refugiado podem ser sinalizados por ações, e não apenas por pedidos explícitos. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) reconhece que um pedido de obtenção de status de refugiado pode ocorrer sur place no caso de indivíduos que, “devido aos seus próprios atos”, têm temor fundamentado de que serão perseguidos em seu país-natal. O Manual de Procedimentos e Critérios para Determinar a Condição de Refugiado, do Acnur, afirma: "Quando há razão para acreditar que uma pessoa, em virtude da sua partida ilegal ou permanência no estrangeiro sem autorização, é passível de tais penas, o seu reconhecimento como refugiado se justifica”.
Lembrou, ainda, ser “prática rotineira do governo cubano, violando a legislação internacional, acionar cidadãos criminalmente por viagens não-autorizadas, incluindo casos nos quais indivíduos permanecem mais tempo do que o autorizado em suas visitas ao estrangeiro”. As sentenças, acrescentou, chegam a três anos de prisão.
Moral militar
Não será essa, entretanto, a punição de Ringodeaux e Lara. Num julgamento sumário, Fidel os considerou implicitamente culpados de traição à pátria, já que, nas suas palavras, “o atleta que abandona sua delegação é como um soldado que abandona seus companheiros em meio do combate”. E lavrou a sentença:
– A Revolução cumpriu sua palavra. Prometeu oferecer aos atletas um trato humano, reuni-los imediatamente com seus familiares, facilitar-lhes o acesso à imprensa se o desejarem, e oferecer-lhes um emprego decoroso de acordo com seus conhecimentos. (…) Já eles desejam ir embora, juntamente com seus familiares. Chegaram ao ponto em que deixarão de fazer parte da delegação cubana nesse esporte.
Ou seja, não defenderão seus títulos no campeonato mundial de boxe nem disputarão as Olimpíadas de Pequim. Suas carreiras de pugilistas terminam e eles passarão a trabalhar em alguma atividade ligada ao esporte. No entanto, reconhece o próprio Fidel, o que eles desejam mesmo é “ir embora, juntamente com seus familiares”. Serão atendidos?
Enfim, há que se louvar as boas intenções de Eder Jofre e Suplicy, mas não é desse tipo de magnanimidade que Ringodeaux e Lara precisam.
Fidel deixou claro que, caso eles tivessem se mostrado sinceramente arrependidos de sua heresia, receberiam outro tratamento. A imprensa cubana foi incumbida de registrar-lhes a humilhação pública, mas ambos não se flagelaram o suficiente para expiarem culpa tão imensa. À fogueira, pois! Mas, como os tempos são outros, os homens não serão incinerados, apenas suas carreiras.
Pode ser até que o clamor da opinião pública mundial acabe levando Fidel a conceder-lhes a graça, como faziam os soberanos medievais. Mas, enquanto o castrismo perdurar em Cuba, serão sempre vistos como ovelhas negras, desprezados e estigmatizados. Só conseguirão reconstruir verdadeiramente suas vidas no exterior, se puderem sair junto com a parentela. Essa seria a real solução humanitária para o episódio.
De resto, é lamentável que tantos cidadãos ditos de esquerda tenham tomado partido nessa questão segundo a lógica da finada guerra fria: apesar de todos os seus desvios em relação ao socialismo que Marx e Engels ensinaram, ainda assim o governo do PT e o regime cubano devem ser defendidos de críticas justificadas, para não se fazer o jogo do inimigo. Pouco importando que isso implique fragilizar um valor tão sagrado para os revolucionários como o direito de asilo.
Foi em nome dessa lógica viciada que os socialistas compactuaram com os crimes de Stalin. E o que resultou de toda essa omissão? Um castelo de cartas que desabou em 1989.
A lição a ser tirada dos fracassos do século passado é que os revolucionários devem colocar suas duas grandes bandeiras em plano de igualdade, lutando ao mesmo tempo, e na mesma medida, pela liberdade e pela justiça social. Não se pode sacrificar a primeira em nome da segunda, pois os melhores seres humanos não aspiram apenas a ser bem tratados como os animais de uma fazenda-modelo. Querem ser os artífices de sua própria história.
* Celso Lungaretti, 56 anos, ex-preso político, é jornalista e escritor. Mais artigos em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
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