Difícil é conter o desespero quando o barco está claramente furado e o naufrágio é iminente. Em dias como estes, em que – como dizia Leiris – “gestos e palavras vão à deriva, quando qualquer hábito é desviado e todo o mundo exterior parece adquirir um prazer maligno em confundir as pistas” (Biffures, 1979), parecemos viver todos encostados às bordas do navio, mareados, sentindo um misto de ansiedade e enjoo.
É nestes momentos em que vem ao nosso socorro os suspiros de antigas palavras, de poetas perdidos no tempo, para encontrarmos refúgio e alguma luz para nossas cidades à deriva. Esta sensação do naufrágio da política não é, infelizmente, uma experiência nova. Ao contrário, a imagem pode ser até considerada canônica, consagrada por uma longa e consolidada tradição literária. Um fragmento do poeta grego Alceu, onde aparece de fato pela primeira vez uma imagem que relacione diretamente o navio e a cidade, parece expressar de maneira precisa nosso sentimento de deriva:
“não compreendo a direção dos ventos/ deste lado quebra uma onda/ do outro lado outra, e nós no meio/ somos levados com o navio preto, exaustos pelo violento turbilhão/ a água do porão já cobre a base do mastro/a vela é toda um trapo transparente/ rasgada com enormes lacerações” (Alcaeus fr. 208a Voigt). Derivas de ontem e de hoje
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A imagem de Alceu se refere alegoricamente ao golpe e à conspiração tirânica contra os habitantes de Mitilene, nos séculos VI e V aEC (Heraclit. All. VII). Mas são os suspiros de outro poeta grego antigo, Teógnis, elegias escritas há mais de 2500 anos, que parecem interpretar de forma ainda mais precisa nossos dias:
“A sorte passa longe: eu a vejo passar, mas estou sem palavras pela necessidade; pois deveria ter compreendido melhor do que meus concidadãos que recolhemos as brancas velas e, na noite escura, estamos à deriva nas águas de Melos. Recusam-se a esvaziar o porão, ainda que a água esteja chegando às bordas. É difícil que alguém se salve, se fazem o que fazem. Destituíram um capitão valoroso, que vigiava sabendo o que fazia. Apropriam-se das riquezas com a violência, a ordem desapareceu e não há mais équa partilha dos bens (…). Temo que o navio seja tragado pelas ondas. Digo isso em enigmas para os mais entendidos, mas qualquer um que tenha uma mente atenta pode compreendê-las” (Theog. 667-682 Young).
A deriva e o naufrágio iminente fazem o poeta refletir sobre as responsabilidades dos que deveriam estar propostos à condução do navio. Os valores da justiça e da equidade, que regem idealmente nossas cidades desde suas origens gregas são tragados por aqueles que “dão fundo às riquezas com a violência”.
A boa navegação é responsabilidade de um “capitão valoroso e vigilante, que sabia o que fazia”. Chama atenção a descrição da figura do capitão do navio nesta alegoria de Teógnis: ele é forte, vigilante e sabe-o-que-faz.
Há nestas pinceladas leves toda uma teoria de como deveria ser a política: o bom governo que resulta da força dos valores republicanos, do cuidado e atenção às fragilidades e às ameaças que sofrem os cidadãos e de uma boa formação política, técnica e intelectual. Mas esta política foi lançada ao mar, destituída, em favor da desordem da apropriação desenfreada das riquezas. O navio está na iminência de afundar.
Resta um sentimento – no poeta e, quiçá, em muitos de nós – de remorso: deveria ter compreendido melhor do que meus concidadãos… É o remorso dos educadores, dos intelectuais, dos formadores de opinião, que não souberam em boa parte prever o naufrágio iminente e se debatem no porão de uma política que parece ter recolhido as brancas velas e estar definitivamente à deriva. Não há, infelizmente, terra à vista. Por hora, nenhum sinal de calmaria.
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