Raphael Tsavkko Garcia *
A aprovação do marco civil na Câmara dos Deputados por quase unanimidade (todos os partidos, exceto o PPS, com uma argumentação incongruente) pode ser considerada uma vitória, mas ainda faltam muitas batalhas.
O projeto segue agora para o Senado, onde pode ser alterado, emendado e mutilado, caso os defensores do texto e a sociedade civil não façam pressão, ou melhor, não continuem com a pressão que vem exercendo há anos.
Mas, além disso, há alterações cabíveis ao projeto que podem melhorar a segurança e ampliar os direitos dos usuários. Me concentro nesse ponto, deixando claras as falhas e brechas do projeto e o que precisa ser mudado através da pressão popular.
Neutralidade da rede
O artigo 9 do marco civil permaneceu inalterado após as últimas negociações que levaram à aprovação na Câmara do projeto, e se o artigo não é em si ruim, abre brechas na questão da neutralidade da rede.
Antes de mais nada, cabe deixar claro que a neutralidade da rede nada mais é que uma garantia de não discriminação. É a garantia de que você poderá em tese acessar todos os sites e serviços, mesmo com a conexão mais básica, igual a quem pagar pela conexão mais rápida. É, em uma alegoria, você poder ir do Rio a São Paulo em seu Fusca sem percalços, igual a quem tem um Jaguar. Ele, sem dúvida, irá mais rápido. Mas vocês passarão pela mesma estrada, verão as mesmas paisagens e chegarão ao mesmo lugar sem que você tenha que passar por algum pedágio.
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A garantia da neutralidade também põe fim à prática do traffic shapping (elemento ignorado pelo PPS em sua votação), muito comum entre empresas de telecomunicação brasileiras, que consiste em reduzir a velocidade do usuário sem qualquer aviso ou justificativa porque a empresa em questão considera que o usuário está “gastando” conexão demais.
Também é muito comum em horários de pico. Pela crônica falta de investimento em estrutura, reduzem a velocidade dos usuários para evitar uma pane em horários de pico de uso da rede, fazendo com que você pague por um serviço cheio de limitações indevidas e injustificadas. Quem nunca experimentou assistir a um vídeo por streaming e de uma hora pra outra o vídeo não parar de “engasgar”? Ou nunca reparou que de repente a velocidade do download caiu pela metade? Trata-se de traffic shapping, uma brecha na neutralidade que o marco civil, em tese, sanará.
Digo “em tese”, pois, voltando ao ponto, o artigo 9 abre algumas exceções à neutralidade:
Art. 9° O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
§ 1° A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:
I – requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e
lI – priorização a serviços de emergência.
Em primeiro lugar, a boa notícia é que as exceções serão decididas pela presidência escutando não apenas a Anatel, que em geral tende a defender mais os interesses das empresas de telecomunicação que a dos consumidores, mas também escutando o Comitê Gestor da Internet (CGI), órgão que efetivamente tem competência para tratar do assunto. Indo além, é preciso pressionar para que os “requisitos técnicos” sejam efetivamente técnicos e não apenas uma forma de fugir à responsabilidade.
Hoje, o traffic shapping é justificado pelas empresas por uma suposta deficiência estrutural da rede de dados, ou seja, pela ineficiência e incapacidade das teles de investir em suas redes de dados. Logo, essa “desculpa” não pode servir como justificativa para a manutenção da prática. Deve-se, na verdade, exigir e forçar o investimento nas áreas necessárias para a internet continuar a crescer e poder ser usada livremente por todos.
As exceções e interpretações da neutralidade
Mas, perante tal brecha, por que essa redação no artigo 9?
Simples, porque há questões técnicas “de verdade” envolvidas na equação. Se eu tenho uma conexão básica de 1Mbps, eu terei limitações estruturais por exemplo no acesso a vídeos por streaming. Posso até conseguir assisti-los, mas com “engasgos” e com qualidade de imagem inferior ao de quem tem uma conexão mais rápida. E isso não é uma brecha na neutralidade, é efetivamente uma questão técnica séria.
É válida, porém, a discussão sobre a necessidade de elevar a velocidade das conexões mínimas vendidas no Brasil, mas esse é outro ponto.
Uma conexão via satélite possui limitações específicas, como problemas relacionados às condições meteorológicas, e há exceções que devem ser previstas.
Enfim, o artigo 9 é importante do ponto de vista técnico, mas não podemos “cochilar” antes que as exceções estejam todas claras e não prejudiquem os usuários em benefício das teles e de sua acomodação.
Outro ponto relevante da discussão sobre as exceções é em relação à interpretação das teles do atual marco civil. Para elas está vedado facilitar o acesso a um site em detrimento do outro. Não importa por exemplo, se a Microsoft pagar a uma tele brasileira para o Bing ser mais “fácil” de acessar que o Google. A neutralidade veda a discriminação ao acesso. Porém, as teles entendem que podem dar acesso gratuito a um serviço e não a outro, como já acontece com o Facebook e o Twitter, ou agora com o Bradesco em algumas operadores. Eles podem ser acessados mesmo por quem não tem pacote de dados.
É uma brecha perigosa, pois pode acabar com a competição e inovação, dado que um site ou um serviço ruim ou inferior pode apenas pagar a uma operadora para que seu acesso seja livre em detrimento do serviço ou site melhor, que seria acessado apenas para quem tem pacote de dados, por exemplo. Quem pode pagar – grandes empresas de internet como Google, Facebook etc. – poderia ter acesso gratuito. Já sites e serviços menores, independentes só seriam acessados mediante pagamento de serviço de internet, logo, teriam o acesso dificultado. É uma brecha na neutralidade, sem dúvida, mas é preciso regulamentar e vetar a prática.
Dados pessoais
No artigo 10 temos mais um problema, como apontado pelo professor Pablo Ortellado, que consiste na permissão para que funcionários do Estado acessem dados como endereço, filiação e qualificação:
“Essa injustificável exceção repete a porta deixada aberta ao Estado para a violação da privacidade que também está na última versão pública da lei de proteção de dados pessoais. O parágrafo terceiro diz que as proteções trazidas pelo marco civil não vão impedir que o Estado tenha acesso a dados cadastrais, seja de provedores de conexão, seja de provedores de serviço. Em outras palavras, autoridades do Estado poderão solicitar informações a empresas como Telefônica ou como Facebook e Google sem autorização judicial, acessando assim os dados cadastrais de um login com comentários de natureza política no Facebook, no Twitter ou num blog sem precisar de autorização de um juiz. As implicações para a privacidade são óbvias”.
Artigo 12 fora
Foi suprimido o polêmico artigo 12, que previa a obrigação de empresas de internet instalarem servidores em solo nacional – algo inútil, dentro da tese de “combate à espionagem” anunciada pela presidente Dilma Rousseff, mais propícia a facilitar a espionagem interna. Uma pequena vitória. Resta saber se tal dispositivo será de alguma forma acrescido separadamente ou imposto de alguma outra forma. Saber e combater na medida do possível.
Guarda de logs, a maior brecha do marco civil
O Artigo 15 é um dos mais problemáticos do marco civil e o grande responsável pela sensação de que o projeto é bom, mas não de todo.
Art 15. O provedor de aplicações de Internet constituído na forma de pessoa jurídica, que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos, deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de seis meses, nos termos do regulamento.
§ 1° Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores de aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput aguardarem registros de acesso a aplicações de internet, desde que se tratem de registros relativos a fatos específicos em período determinado.
§ 2° A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de Internet que os registros de acesso a aplicações de Internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§ 3° e 4° do art.
§ 3° Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente, dos registros de que trata este artigo, deverá ser precedida de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo.
§ 4° Na aplicação de sanções pelo descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência.
A guarda dos “registros de acesso a aplicações de internet” – ou logs – tem paralelos com o grampo telefônico. Não é tão grave, mas guarda preocupantes semelhanças. O principal problema consiste num paralelo simples: o poder público precisa de uma ordem judicial para grampear meu telefone a partir do momento em que suspeita que cometi um crime, mas quer guardar meus registros por um ano sem qualquer ordem judicial e sem qualquer suspeição de crime, apenas pelo direito (sic) que diz ter de fazê-lo.
Se por um lado os dados só podem ser acessados através de ordem judicial, nada garante que os dados estarão seguros pelo período em que devem ser guardados, nem que serão apagados após esse prazo. Vazamentos acontecem, crackers estão sempre prontos para invadir sistemas e não há nada no texto que explique como serão guardados esses dados, teremos de esperar por regulamentação posterior.
O inciso segundo também traz outra complicação ao permitir que autoridades peçam a manutenção dos registros por mais tempo que o que reza a lei sem qualquer ordem judicial ou justificativa.
Essa guarda de registros também acarretará um custo que, sem dúvida, será repassado aos usuários. A solução seria permitir a guarda dos registros apenas e somente após ordem judicial, evitando o grampo automático.
Liberdade na rede, retirada de conteúdo e copyright
O marco civil, além de garantir a neutralidade da rede, também garante nossa liberdade na rede, como consta do artigo 19, ao retirar dos provedores a responsabilidade por material de terceiros, sendo responsabilizado apenas se se recusarem a cumprir ordem judicial de retirada. Hoje, qualquer notificação ou pedido de um suposto detentor de direitos é o suficiente para que um vídeo no Youtube, por exemplo, seja retirado do ar.
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a diretos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5° da Constituição Federal.
§ 3° As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.
§ 4° O juiz, inclusive no procedimento previsto no§ 3°, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
Com o marco civil, portanto, se eu posto em meu blog um texto e alguém se sente ofendido, terá antes de provar perante um juiz a alegação (de que o texto é ofensivo) para que o Google retire o conteúdo. Hoje, o Google retira e eu que tenho que provar que não ofendi. Ou então aceitar que meu texto seja apagado.
Outro ponto importante do mesmo artigo é que o conteúdo supostamente ilegal deve ser identificado. Ou seja, se hoje um blog inteiro é retirado do ar por denúncias de terceiros, com o marco civil será necessário identificar a postagem em que há a infração e apenas ela será retirada do ar – sempre após decisão judicial.
Então qual o problema com o artigo? O inciso terceiro, que trata de questões de direitos autorais de forma diferenciada e exigindo lei específica. Pessoalmente, não vejo por que tratar de forma exclusiva algo que, por analogia, deveria seguir o mesmo procedimento de, por exemplo, ofensas. Se alguém considera que seu direito de autor foi violado, reclame perante um juiz e espere pela decisão favorável ou não. Essa será mais uma batalha que teremos pela frente.
Se por um lado o artigo seguinte, o 21, é bom ao garantir o direito à defesa e ao contraditório, a inclusão de um artigo específico, o 22, para tentar coibir o vazamento de fotos e vídeos íntimos é perigoso. Cria uma penalização/responsabilização específica para um tipo de violação, eliminando a necessidade de ordem judicial, colocando esse tipo de violação acima de outras sem qualquer tipo de justificativa, apenas pelo apelo imediato que a onda de lamentáveis vazamentos de vídeos íntimos causou.
Há ainda alguns pontos, mesmo mitos em torno do marco civil, que merecem ser rapidamente tratados,.
Outras questões menores que merecem atenção
Falou-se muito da questão do possível aumento de preços dos planos de internet devido à aprovação da neutralidade da rede. É fato que isso pode acontecer, mas caberia ao governo criar mecanismos para impedir abusos e forçar as empresas de telecomunicações a investirem em suas redes de dados para que o serviço se torne minimamente aceitável.
A internet brasileira é ruim, cara e ineficiente e um aumento de preços não seria justificável, mesmo que sob a desculpa da “necessidade de investimentos”. Aliás, o discurso das teles contrárias ao marco civil – curiosamente, o mesmo discurso do PPS para votar contra o projeto – era o de que a internet já era livre e neutra. Logo, se o marco civil era dessa forma “inútil” por “chover no molhado”, seria pelo menos hipócrita a elevação dos preços dos pacotes de internet. Precisamos ficar de olho e denunciar abusos.
Outro ponto importante é exigir que a taxa de upload seja equalizada à taxa de downloads contratada. Hoje contratamos, por exemplo, um plano de 10Mbps que é apenas nominal para o download, com a taxa de upload raramente chegando a 10% desse valor (na prática até menos). É injustificável.
Ademais, é preciso pressionar a Anatel para elevar também a velocidade nominal de downloads, hoje na casa dos 20%, para pelo menos 80%. Em outras palavras: hoje pagamos por dez e levamos em geral dois (sem contar o traffic shapping) e as desculpas são várias, desde excesso de tráfego até “questões técnicas”, nenhuma delas bem explicada ou aceitável.
Enfim, existem problemas no marco civil, mas conseguimos o possível, e isso é muito. Mas tenhamos em mente que as mobilizações não devem parar, nem a pressão, pois não apenas falta o Senado como ainda faltam assuntos a serem regulamentados e que não podem ficar ao gosto do governo, do PMDB e dos lobbies das teles.
Ficam aqui meus parabéns a todos os políticos, acadêmicos e ativistas envolvidos na aprovação do Marco Civil, em especial ao deputado Alessandro Molon, relator do projeto e aos membros dos coletivos Intervozes e Mega Não.
Texto final do Marco Civil aprovado na Câmara dos Deputados
* Raphael Tsavkko Garcia, jornalista e blogueiro, é doutorando em Direitos Humanos e membro do coletivo “Mega não”.
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