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O debate em torno da atuação de organizações não-governamentais (ONGs) no Brasil, que já gerou a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado e discursos bastante acalorados de deputados e senadores, volta nesta semana à agenda do Congresso. Na quarta-feira, representantes de ONGs e vários parlamentares participarão de um seminário – a partir das 9h, no auditório Nereu Ramos, na Câmara dos Deputados – com o objetivo de discutir exatamente um dos aspectos mais polêmicos da questão: sob que moldura legal devem funcionar as ONGs. Em junho do ano passado, o Senado aprovou um substitutivo do senador César Borges (PFL-BA), que alterou texto original do senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR), definindo qual marco institucional deveria ser esse. A proposta obriga as organizações a prestarem contas anualmente ao Ministério Público dos recursos que movimentam, e cria o Cadastro Nacional de Organizações Não-Governamentais (CNO), administrado pelo Ministério da Justiça, no qual seriam inscritas todas as ONGs em atividade no país. Leia também Para se inscrever no CNO, a entidade deve esclarecer as ações que deseja desenvolver, as fontes de recursos que pretende utilizar e diversas outras questões, como “a política de contratação de pessoal, os nomes e qualificação de seus dirigentes e representantes e quaisquer outras informações que sejam consideradas relevantes para a avaliação de seus objetivos”. Além disso, a atuação de organizações estrangeiras em território nacional passa a depender de prévia autorização do Ministério da Justiça. Uma proposição, em síntese, muito influenciada pelo relatório final da CPI das ONGs, fechado em dezembro de 2002. O tom dos debates na comissão, como se sabe, foi francamente hostil às organizações não-governamentais. Ali, tendo como algozes sobretudo senadores da região Norte, elas foram acusadas de tudo: de integrarem uma conspiração mundial destinada a internacionalizar a Amazônia; de utilizarem indevidamente recursos públicos; e de funcionarem à margem de qualquer tipo de controle social. A novidade é que a Câmara não está disposta a manter o texto aprovado pelos senadores. Segundo a deputada Ann Pontes (PMDB-PA), relatora do Projeto de Lei 3.877/04 na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço público, a proposta é inconstitucional. “O projeto vai na contramão da Constituição, que garante o direito de livre associação. Além disso, fico receosa com a criação dessa lei, porque ela vai aumentar a burocratização”, afirma, referindo-se à mega-estrutura que o Ministério Público e o Ministério da Justiça teriam de criar para atender às novas exigências legais. De acordo com o senador César Borges (PFL-BA), naturalmente, não há inconstitucionalidade no projeto. “O debate no Senado superou essa questão, mostrando que não se trata de cerceamento do direito à associação”, diz. Conforme o seu entendimento, a proposição apenas regula esse direito constitucional, de modo a impedir abusos. Na Câmara, enquanto isso, a deputada Ann Pontes trava outra batalha. Para evitar que o assunto seja examinado pelas 14 comissões permanentes da Casa que têm algo a dizer sobre o tema, ela apresentou requerimento propondo que seja criada uma comissão especial para analisar o Projeto de Lei 3.877/04. Até o presente momento, no entanto, o requerimento não foi despachado pelo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE). Responsável pela organização do seminário que se realizará quarta-feira, a diretoria da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong) defende o debate franco e aberto sobre o assunto. Ele permitiria, segundo pensam os diretores da entidade, clarear aspectos fundamentais da discussão. A começar por lançar luz sobre um universo – o chamado terceiro setor – marcado mais pelas diferenças do que por eventuais semelhanças (leia mais). Conforme o diretor para Assuntos Institucionais da Abong, José Antônio Moroni, o problema é que, pelo menos até o momento, o debate realizado no Congresso coloca as ONGs como se fossem inimigas do progresso e do desenvolvimento. “Daí a tentativa de inviabilizar a autonomia dessas organizações e de submetê-las à vontade do Estado”, complementa. Moroni considera sintomático que o lobby contra as ONGs seja capitaneado por parlamentares do Norte do país. É nessa região, observa, que elas enfrentam hoje uma de se suas batalhas mais duras. Entre os adversários, vários parlamentares, “representantes do segmento que acha que o futuro da Amazônia está associada ao agronegócio, e, portanto, é preciso destruir a natureza para plantar soja e criar gado”. Procurado pelo Congresso em Foco, o mais ativo desses parlamentares, o senador Mozarildo Cavalcanti, que presidiu a CPI, não quis comentar o assunto. Na justificativa do Projeto de lei 246/02, que deu origem ao substitutivo do senador César Borges, Mozarildo deixa claro por que defende maior controle para as ONGs: “Muitas dessas organizações exercitam, além do legitimamente permitido e do moralmente aceito, atividades e pronunciamentos públicos que atacam o regime institucional brasileiro, numa prática que se pode considerar afrontosa à legalidade” e “abrigam atividades rigorosamente criminosas, ocultadas pelo manto da caracterização filantrópica, que dificulta e obnubila a atuação das autoridades para sua repressão”. Kláudio Cóffani Nunes, representante da Rede Mata Atlântica, prega o diálogo com o Congresso para evitar a aprovação do projeto de Borges, que poderia representar o fim das ONGs: “Queremos defender as ONGs para que elas não percam sua liberdade e identidade, nem caminhem para trás. Almejamos o aprimoramento e um diálogo antes que o projeto de 3.877/04 seja votado na Câmara. Se ele for aprovado, as ONGs vão acabar. Não por ter alguém fiscalizando a sua função. Mas porque as ONGs só fazem um excelente trabalho por causa de sua autonomia, criatividade e vocação”. |
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