Ricardo Ramos*
Acostumado a estar sempre na linha de tiro, o deputado José Dirceu (PT-SP) vive a inédita condição de alvo dos colegas na Câmara. Ao longo de 40 anos de militância, o ex-capitão do time do presidente Lula colecionou desafetos, admiradores, polêmicas e contradições – elementos de um camaleônico enredo de uma obra que pode ter seu epílogo nesta quarta-feira com a cassação do seu mandato. “Dirceu deve ser cassado pelo conjunto da obra”, sentencia o líder do PSDB na Câmara, Alberto Goldman (SP).
Preso por quase doze meses em 1969, o ex-líder estudantil encarou dez anos de banimento político do país, retornando à militância só após a Lei da Anistia. De 1965 para cá, Dirceu mudou de rosto e de nome: foi o camarada Daniel, para os colegas do movimento estudantil, e Carlos Henrique Gouveia de Mello, para a mulher com quem conviveu por cinco anos no período em que viveu no Paraná. Antes de retornar na clandestinidade ao país, aprendeu táticas de guerrilha em Cuba, onde também fez uma cirurgia plástica para não ser reconhecido no Brasil. Anos mais tarde, voltaria à ilha de Fidel Castro em busca do rosto original.
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Da arrogância à humildade
O combativo guerrilheiro que ajudou a fundar o PT em 1980 e a levar Lula lá para o Planalto, luta na planície para não voltar a perder os direitos políticos – desta vez, como deputado. Conhecido pela oratória aguerrida com que combatia os adversários, o ex-chefe da Casa Civil é acusado de ser o mentor do mensalão. Pendurado no telefone nos últimos dias, Dirceu busca a simpatia – e os votos – dos colegas para desconstruir a imagem de líder arrogante.
“Eu espero Justiça. Já disse e quero repetir ao país: eu quero que me apresentem uma prova, uma prova de que eu pratiquei, como deputado, um ato que possa ter quebrado o decoro ou, como ministro, algum ato de improbidade administrativa”, afirmou o ex-ministro, no início de setembro. “É preciso ter provas para cassar um deputado. Caso contrário, vai ser uma violência política, vai ser uma cassação política e isso evidentemente é inaceitável”, declarou.
Há 112 dias, por força de recursos na Câmara e no Supremo Tribunal Federal (STF), ele tem trabalhado para adiar o seu julgamento final. Hoje, quando os deputados poderão decidir o seu futuro, será retomada a apreciação do quarto recurso apresentado pela defesa de Dirceu na mais alta corte do país. O petista pede a suspensão, no plenário da Câmara, da votação de seu processo de quebra de decoro.
“Golbery” de Lula
Desde que deixou o Planalto, em junho, o petista tenta forjar uma imagem distinta da que cultivou durante 30 meses de Casa Civil e que provocou a ira até de aliados. “Quem é o poderoso hoje? Vocês sabem quem é. Quem disse à imprensa que eu tinha de perder o mandato, ser expulso, perder a vice-presidência, ir para casa dormir?”, questionou da tribuna, há dois anos, o senador petista Paulo Paim (RS). “Isso é postura que nem o Golbery adotou”, afirmou o gaúcho, ao comparar o então ministro ao todo-poderoso chefe do Gabinete Civil do governo Ernesto Geisel (1974-1978).
Pouco antes da votação da reforma da Previdência, em novembro de 2003, Dirceu teria sugerido a saída de Paim do partido. “(Paim) poderia ficar com sua consciência e deixar o mandato e a vice-presidência do Senado”, afirmou o chefe da Casa Civil, segundo relatos.
Paim não deixou o partido, mas Dirceu, então presidente licenciado do PT, comandou com mão-de-ferro o processo de expulsão dos parlamentares que contrariaram a orientação partidária: a senadora Heloísa Helena (AL) e os deputados Luciana Genro (RS), João Fontes (SE) e Babá (PA).
Mas o ex-ministro da Casa Civil colecionou mesmo os seus principais adversários fora do partido. Ganhou da oposição adjetivos dos quais hoje tenta se desvencilhar. Depois de recomendar ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que se recolhesse ao aconchego dos “netos e dos livros” e parasse de criticar Lula, Dirceu recebeu do tucano um alerta. “Faria bem o ministro em ser menos arrogante e parcial ao julgar o passado e mais tolerante e democrático ao escutar os reparos, que nem críticas chegam a ser, sobre o presente”, disse FHC, em outubro de 2003.
Perdendo a majestade
O reinado de Dirceu começou a ruir em fevereiro de 2004, com o escândalo Waldomiro Diniz. O então assessor da Casa Civil, com quem Dirceu chegou a dividir apartamento, foi flagrado cobrando propina de um bicheiro. “Cometi um erro e posso admiti-lo. Agora, não fiz nenhum ato ilícito”, reconheceu Dirceu, à época. “Eu não vou sair do governo. Eu não tenho nenhuma relação com esse caso. Não participei, não apoiei, não tinha conhecimento”, reagiu.
Lula manteve o “capitão do time”, mas o desempenho de Dirceu à frente da equipe nunca mais foi o mesmo. Envolvido pela primeira vez num escândalo de corrupção, o líder que desautorizava colegas, dava palpites em outras áreas e entrava de sola no ministro Antonio Palocci (recentemente comparado a Ronaldinho Gaúcho pelo presidente) cedeu lugar a um discreto coordenador técnico, ao perder oficialmente as funções políticas da Casa Civil.
Dirceu, porém, não saiu de campo. Do Planalto, articulou as campanhas do PT e de partidos da base aliada. Depois das eleições, jogou para escanteio Aldo Rebelo, que, na época, comandava a Coordenação Política do governo. O comunista que, por ironia do destino, viria a testemunhar a seu favor no Conselho de Ética e conduzir o seu processo de cassação em plenário.
A desgraça do coordenador veio em junho deste ano, quando se chocou com o ex-capitão da tropa de choque do governo Collor, Roberto Jefferson (PTB-RJ), com quem construiu uma inusitada parceria no Congresso. Acuado por denúncias de corrupção, o presidente do PTB jogou a bomba no colo do chefe da Casa Civil. “Sai daí, Zé. Sai daí logo, antes que você faça réu um homem inocente, o presidente Lula”, provocou Jefferson, em uma de suas falas mais marcantes no Conselho de Ética da Câmara.
E o Zé saiu dois dias depois. “Eu sei lutar na planície e no Planalto, e tenho humildade para voltar para o meu partido como militante, para voltar para a Câmara como deputado”, afirmou Dirceu, ao se despedir da Casa Civil.
Contradições à prova
De volta à Câmara, o deputado Dirceu encontrou abrigo na discrição. Em quatro meses, não apresentou um projeto sequer, fez dois pronunciamentos da tribuna e passou a maior parte do tempo defendendo o seu mandato.
Comportamento que em nada lembra o do antigo líder oposicionista. Nos oito anos em que fez oposição aos governos Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique, Dirceu fez 313 discursos, quase todos denunciando práticas de corrupção.
“Entendo que o país não pode ficar à mercê de um recesso da CPI. A opinião pública e o povo brasileiro nos perguntariam se estávamos ou não com o objetivo de combater à corrupção, de mudar os procedimentos administrativos do Brasil e de desmascarar a cumplicidade do presidente da República com o senhor Paulo César Farias ou se apenas queríamos tumultuar a vida econômica e política do país”, discursou, em junho de 1992.
No governo Itamar, chegou a denunciar um suposto esquema de compra de deputados. “Vou, inclusive, fazer uma representação junto ao Ministério Público, porque acredito que partidos políticos – e muito menos deputados – não podem ficar sob suspeição de, para se conseguir quinze deputados numa bancada, estes se ponham à venda como jogadores de futebol”, bradou, em setembro de 1993.
Dirceu pediu o enquadramento do então presidente Fernando Henrique por crime de responsabilidade, ao denunciar uma operação abafa na CPI dos Bancos, em maio de 1999. “O país é testemunha de que o presidente da República se reuniu com o presidente do Congresso e com os líderes da base governista; que o senhor Eduardo Piragibe Graeff e o senhor Clóvis Carvalho disseram que o Chico Lopes não tinha que depor. Pimenta da Veiga, ministro das Comunicações, disse que Pedro Malan não tinha que depor. Isso é coagir a Constituição Federal ou não é? É crime de responsabilidade. O presidente da República não pode, em hipótese alguma, tentar impedir o funcionamento da justiça, do Ministério Público ou desta casa.”
Pouco dado a apresentar proposições legislativas, o deputado José Dirceu preferia cobrar informações de autoridades sobre suspeita. Fez 164 requerimentos de informação (RICs), a mais de dez ministros dos governos Collor, Itamar e FHC. Em oito anos, apresentou 11 projetos de lei (PLs) e três propostas de emenda à Constituição (PECs). De todos, apenas o PL 3891/93, que estabeleceu normas para as eleições de outubro de 1994, virou lei. Os demais foram arquivados.
Na esteira do escândalo dos anões do Orçamento, com deputados que renunciaram ao mandato mesmo após a abertura do processo de cassação contra eles, Dirceu propôs, com sucesso, o Projeto de Decreto Legislativo 16/94. Com a aprovação do decreto do petista, o prazo para escapar da cassação, sem a perda dos direitos políticos, passou a contar só até a abertura do processo por quebra de decoro parlamentar no Conselho de Ética.
Desde que retornou à Câmara, Dirceu anunciou que não renunciaria ao mandato para escapar da cassação e ficar inelegível por uma década. “Eu não teria coragem de olhar na cara das pessoas (se renunciasse)”, afirmou. E não renunciou.
Resistência até o fim
O advogado que jamais exerceu a profissão nunca se valeu tanto do Direito como agora. Apresentou quatro recursos no STF e dois na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e conseguiu adiar, em pelo menos três semanas, o julgamento do seu destino político. “Ele está lutando por isso e, se eu estivesse no lugar dele, faria a mesma coisa”, afirmou ao Congresso em Foco o presidente do Conselho de Ética, Ricardo Izar (PTB-SP). “É o desespero para você se salvar, para mostrar que tem razão”, completou (veja a entrevista).
Ainda não se sabe se a mudança de atitude de Dirceu vai se reverter em votos a seu favor. Mas o esforço para melhor a imagem entre os colegas, com afagos, sorrisos e apertos de mão, já lhe rendeu reconhecimento de onde menos se esperava. “Para uma pessoa da estatura de Dirceu, é um gesto de humildade”, considera o ex-líder tucano na Câmara Custódio Mattos (MG). Mas isso só não basta. Para escapar da cassação, o petista precisa impedir que o parecer do Conselho de Ética obtenha pelo menos 257 votos. A votação é secreta e pode custar ao camaleônico Dirceu uma face que ele se recusa a revelar: a de ex-deputado.
(Colaborou Edson Sardinha)
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