João Luís de Almeida Machado*
Democracia significa o governo do povo [demos=povo; cratos=governo]. Isso de certa forma explica, por exemplo, um fenômeno eleitoral e político como o do atual presidente, ex-metalúrgico e sindicalista, Luiz Inácio Lula da Silva. A representatividade de Lula tem como uma de suas mais importantes explicações a sua origem humilde, de migrante nordestino, que veio para São Paulo, se estabeleceu, criou seus filhos, profissionalizou-se e acabou se engajando numa das mais relevantes lutas empreendidas pelos brasileiros nos últimos 50 anos, a batalha pela democracia, contrária à ditadura e suas arbitrariedades.
A palavra democracia, ao longo da década de 1960 e 1970, culminando com o movimento pelas eleições diretas nos primeiros anos da década de 80, revestiu-se de uma aura que transcendia a simples noção de governo do povo.
Transcendeu e criou, para os brasileiros, a compreensão de um milagre legítimo e mais que necessário. Milagre que, aos olhos de muitos, começou a se configurar com a eleição presidencial de 1989 e que, para todos os que viveram aquela celebração do exercício de cidadania, se desfez em mil pedaços com a vitória do caçador de marajás e criador do desastroso plano econômico que foi nomeado em sua própria homenagem, Fernando Collor de Mello.
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A democracia mal havia ressurgido e já se mostrava frágil, para muitos, um engodo, uma farsa. Existiam aqueles que acreditavam que estávamos despreparados para essas práticas de civilidade, que a ausência de liberdades individuais e a verdadeira lavagem cerebral imposta ao povo brasileiro durante a ditadura militar nos haviam tornado incapazes de separar o joio do trigo, de distinguir as melhores propostas, de perceber as reais intenções dos candidatos.
Como compensação pelo desgaste sofrido com a Era Collor, seu substituto na presidência, o ex-senador Itamar Franco, conseguiu reequilibrar a administração pública e, com o surgimento do Plano Real, criar bases para a reestruturação econômica que seria vivida pelo país nas administrações de seus sucessores, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Petistas e tucanos consolidaram-se, então, como as principais forças políticas no cenário nacional. Não há como negar que as conquistas alcançadas pelo país ao longo dos últimos 15 anos contam com a marca das duas bandeiras políticas, PT e PSDB. Isso não impediu, porém, que desilusões e amarguras fossem vividas e presenciadas por todos.
A abertura democrática aliada à expansão vertiginosa dos meios de comunicação de massa, em especial depois da explosão da internet, possibilitou que a população soubesse mais, conhecesse com detalhes até então nunca antes revelados os bastidores do poder, as artimanhas e interesses dos mandatários da República.
Essas revelações chamuscaram políticos de todas as colorações e legendas. Abriram-se processos e "tiroteios" entre os partidos e seus representantes. Alguns foram cassados e sumiram de cena, abrindo espaço para que outros ganhassem os holofotes [ainda que temporariamente]. Até mesmo Fernando Henrique e Lula foram alvejados e, durante algum tempo, pareciam destinados a sucumbir com seus partidos.
O escândalo do mensalão, por exemplo, tirou José Dirceu de cena, justamente ele que era [e ainda é] considerado por muitos como o principal articulador das viradas que levaram Lula ao poder. O PSDB também foi alvo de investigações e teve questionados e/ou processados "caciques" como o ex-governador de Minas Eduardo Azeredo e o ex-ministro da Saúde José Serra.
Nesse sentido, ao encerramento de mais um pleito eleitoral no Brasil, em nível municipal, com a eleição de prefeitos e vereadores, analisando-se com brevidade a história recente de nosso país, desses 20 e poucos anos de exercício regular do voto para os principais cargos eletivos do Executivo e Legislativo, cabe refletir.
Será que a democracia realmente só permanece por não termos outra opção melhor para a política e a administração do país? Se pensarmos a democracia a partir dos avanços da área econômica (a estabilidade econômica, o controle da inflação, a criação de reservas econômicas de vulto pelo país, a expansão da atividade produtiva, o aumento do poder de compra dos brasileiros), da questão das liberdades individuais (direito de livre expressão das idéias, de participação política, de ir e vir) ou ainda do acesso a benfeitorias sociais (aumento da quantidade de crianças nas escolas, ampliação da oferta de medicamentos a preços populares, criação de projetos como o bolsa-família], passamos a crer que a democracia representativa é, certamente, o melhor modelo político disponível no mundo em que vivemos.
Se, por outro lado, nos orientarmos pelos escândalos políticos e corrupção (mensalão, anões do Congresso, dólares na cueca), pela pobreza que ainda impera em várias regiões do país (nos morros do Rio de Janeiro, nas favelas de São Paulo, no interior do Nordeste), pela distribuição desigual de riquezas (que cria bolsões de riqueza e zonas de exclusão, totalmente miseráveis) ou ainda pela qualidade ruim dos serviços públicos (a qualidade da educação que nos coloca sempre nos últimos lugares das avaliações internacionais, as filas de espera nos hospitais, estradas esburacadas, a violência que assusta e mata, a burocracia), possivelmente passemos a achar que a democracia só continua a prevalecer por ainda não conhecermos melhor alternativa de governo.
O que fazer? Em primeiro lugar, creio ser imprescindível que a população não apenas vote e delegue poderes aos representantes eleitos. É imperativo que exista uma fiscalização regular das atividades político-administrativas em todas as instâncias e poderes. Ao povo compete, em nome da democracia, cobrar dos políticos eleitos a efetivação de leis e ações que realmente melhorem a qualidade de vida da população.
Outro aspecto fundamental é que entre os poderes existam também fiscalização e cobrança quanto às responsabilidades que competem a cada um deles – Executivo, Legislativo e Judiciário. E que não sejam permitidos acordos que permitam apadrinhamento e troca de favores.
Cabe ainda compreender que a democracia prevê direitos e deveres e somente será plena em seu funcionamento quando as pessoas entenderem que o seu exercício deve contemplar os interesses da coletividade e não os individuais, particulares, de pequenos grupos. Essa compreensão é, talvez, um dos maiores empecilhos ao pleno exercício da democracia, pois somos educados ao longo de toda a nossa existência, dentro do capitalismo neoliberal, a lutar a partir de fronts individualizados, personalistas ou, na melhor das hipóteses, de nichos específicos – família, religião, trabalho.
*João Luís de Almeida Machado é editor do Portal Planeta Educação (www.planetaeducacao.com.br); mestre em Educação, Arte e História da Cultura; professor universitário e pesquisador; autor do livro "Na Sala de Aula com a Sétima Arte – Aprendendo com o Cinema" (Editora Intersubjetiva).
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