Fábio Góis
Não é o caso aqui tentar teorizar sobre o filme, o épico proletário do sindicalista-mor na telona. Mas não custa reportar ao paciente leitor deste site algumas impressões colhidas sobre o filme, sublinhe-se, por um atordoado “olhar de cronista”.
Lula emerge das rachaduras de um sertão maldito impulsionado por uma mãe que flutua entre a pseudo-submissão ao marido e a força que só as mulheres parecem ter. Dona Lindu – levada à massa por uma sublime Glória Pires – padece e, em menor escala, regozija em todo o transcorrer do filme com apenas a felicidade da quase dezena de filhos como meta. Eis a seiva com que o diretor Fábio Barreto faz da mãe de Lula um mártir que parece suplantar em apelo emocional o próprio protagonista.
Que, aliás, é um achado. Na tela, o até então desconhecido Rui Ricardo Dias fala como Lula, anda como Lula, gesticula como Lula. Não prende a língua para imitar a fala do presidente, mas nem precisava: estão lá os tons graves da voz meio rouca, meio histriônica. Uma voz quase tosse.
Veja o trailer do filme:
Obviamente, há episódios da biografia de Lula que, seja qual for a razão, não foram incluídos no roteiro. Como o fato de, aos 29 anos, ter abandonado a companheira Miriam Cordeiro quando ela completava seis meses de gravidez. Ou o fato de o presidente ter reagido com frieza diante da morte de um gerente de fábrica que, tendo baleado e matado um operário em um piquete, foi atirado por grevistas do alto de um sobrado.
No livro de Denise Paraná, Lula diz que até pensou ser aquela uma reação por “justiça”. No filme, a cena de maior violência, com direito a estrondo e interrupção de som, mostra um Lula questionando, indignado, o irmão mais velho que o levara ao ato. “Porra, aquele desgraçado tava melhor do que nós? Precisava jogar ele lá de cima?”, brada.
No mais, o filme registra atuações convincentes – como a da cândida Juliana Barone, que faz Dona Marisa com ênfase em toda a carga de uma viuvez precoce – e primorosas – como a de Milhem Cortaz (Carandiru), que interpreta Aristides, pai de Lula, um estivador bronco e semi-selvagem que faz da cachaça a válvula de escape para a covarde violência contra os filhos e a mulher. Cachaça essa que o leva a ser enterrado como indigente em São Paulo – notícia que Lula, então líder sindical devidamente calejado pela “luta”, recebe com olhos secos de lágrima e triste indiferença.
O diploma do Senai, em 1961; a eleição para a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista, no final dos anos 70; cenas de Tarcísio Meira e Glória Menezes na extinta TV Tupi em plena ditadura; narrativa, em rede nacional, de trechos do Ato Institucional nº 5, anunciado em 1968; o famoso discurso de Lula na Vila Euclides, em São Bernardo do Campo (SP), em 1980, quando milhares de operários foram reunidos num estádio. Registros de um épico brazuca ao som de Tim Maia e Roberto Carlos como romântico contraponto ao chumbo militar. Trilha do mestre Morelembaum, com seus suntuosos acordes de violoncelo.
Enquanto absorvia a “teima” de Dona Lindu, Lula passava pela roda-viva como que de frente à tela da vida real, meio que desnorteado com o destino que lhe aguardava – e que também reservaria, de uma cena para outra, a tristeza trágica de uma enchente e de duas mortes: a da mãe, quando estava preso, e a da mulher grávida de oito meses (Lurdes, interpretada por Cléo Pires), entregue à desdita de precariedade da saúde pública. Lula perdia assim, em duas doses cavalares, os dois amores que lhe amaciavam a existência.
Enfim, Dona Lindu, único pilar de Lula em sua trajetória para se tornar “cabra-homem”, vai se tornando o herói maior que deixa outro de herança. Até porque ela está por trás de cada passo do presidente, cada demonstração de firmeza diante dos baques, cada ressaca bem-curada depois da primeira dança. E até da rudeza de um líder sindical que sabe: a vida só traz “os benefícios” para os companheiros que os perseguem.
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