O Ministério Público Federal em São Paulo denunciou dois ex-legistas por falsificação de laudos e ocultação de cadáveres dos militantes Alex de Paula Xavier Pereira e Gelson Reicher, da Ação Libertadora Nacional (ALN) – movimento armado que lutou contra a ditadura militar –, mortos em 20 de janeiro de 1972. Os denunciados são os médicos Abeylard de Queiroz Orsini e Antonio Valentini.
Para os procuradores, ao falsificarem os laudos sobre os assassinatos, Orsini e Valentini contribuíram para a ocultação dos cadáveres e para a impunidade dos autores dos homicídios. Embora tenham se passado há 45 anos, esses delitos não prescreveram, segundo o Ministério Público, porque são considerados crimes contra a humanidade, praticados num contexto de graves e sistemáticas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado contra parte de seus cidadãos com a intenção de eliminar opositores e manter o regime militar no poder.
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Caso venham a ser condenados pelos dois crimes, os ex-legistas podem receber penas de dois a oito anos de prisão, com o agravante de terem praticado os crimes para assegurar a impunidade dos homicídios praticados pelos outros agentes do Estado. Esta é quinta denúncia de falsidade ideológica por manipulação de dados de laudos necroscópicos contra Orsini e a segunda contra Valentini.
O Congresso em Foco não conseguiu localizar os dois denunciados ou seus advogados de defesa.
As mortes
De acordo com o MPF, Alex e Gelson estavam num fusca vermelho com placas frias quando, em 19 de janeiro de 1972, foram tentar restabelecer o contato com outro integrante da ALN, Gilberto Telmo Sidney Marques, que havia sido preso dias antes e, sob tortura, havia entregado à polícia a informação do local do encontro. A polícia montou uma campana e quando o carro parou num semáforo, pediram documentos para os dois militantes.
Segundo a denúncia, Alex sacou uma submetralhadora, atirou e matou o policial Silas Feche. Outros policiais, Devanir Antonio de Castro Queiroz, Osvaldo Ribeiro Leão (ambos falecidos) e João Alves dos Santos, não completamente identificado, cercaram o veículo e atiraram na dupla. Na versão oficial, os dois teriam saído correndo do carro e houve intenso tiroteio. Contudo, a polícia não preservou o suposto local do crime e divulgou nota oficial somente dois dias depois, dois indícios de que esta versão não é a verdadeira, na avaliação do MPF.
Os familiares das vítimas e a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos, após análise dos exames do IML feitos nos corpos de Alex e Gelson, sustentam que os dois foram retirados do carro ainda com vida, provavelmente levados para outro local, torturados e assassinados.
Laudos produzidos por peritos independentes encomendados pela Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão Nacional da Verdade indicam que os corpos possuíam hematomas e escoriações visíveis não apontadas nos laudos oficiais, as quais não eram compatíveis com a versão oficial, pois teriam sido produzidas quando as vítimas ainda estavam vivas.
Execução sumária
De acordo com o laudo, foram encontradas mostras de sangue nas cavidades do corpo de Alex, o que sinaliza que ele teve algum tempo de sobrevida. Os exames apontam que Alex recebeu vários tiros no rosto quando já estava caído, numa característica típica de execução sumária, incompatível com a versão oficial de morte em tiroteio.
Segundo a denúncia, apesar das nítidas marcas de tortura, feitas quando ambas as vítimas ainda estavam vivas, os peritos Isaac Abramovitch (falecido) e Abeylard de Queiroz Orsini, ao prepararem o laudo de exame necroscópico de Alex de Paula Xavier Pereira, ignoraram as lesões de tortura que ele tinha nos olhos e na região do peito, lesões estas feitas, segundo os contra laudos realizados posteriormente com base na foto dos cadáveres, quando as vítimas ainda estavam vivas e em posição inferior a seus algozes. Assim, o laudo oficial omitiu não apenas a tortura sofrida, mas também que a vítima foi executada.
Nomes falsos
Além disso, o laudo de Alex, apesar de ambos os peritos terem tido acesso a sua verdadeira identidade, foi registrado no nome de João Maria de Freitas, um dos nomes que o militante utilizava para viver na clandestinidade. Alex foi enterrado como indigente na vala comum do cemitério de Perus, o que dificultou a localização da vítima pela família, o que só ocorreu oito anos depois, em setembro de 1980. Contudo, a identificação certeira da vítima só foi possível em 2014, mediante exame de DNA.
Já o laudo de Gelson foi elaborado por Abramovitch, já falecido, e Antonio Valentini. Estudante de medicina da USP, Gelson e sua família eram vizinhos e amigos de Abramovitch, que conhecia a vítima desde menino, conforme o Ministério Público. Mesmo assim, o laudo de Gelson ignorou também as torturas que ele sofreu antes de ser assassinado. Apesar de conhecerem a identidade da vítima, os dois peritos o qualificaram no documento como Emiliano Sessa, sustenta a acusação.
Diferentemente de Alex, a família de Gelson pode enterrá-lo dias após o assassinato. Sem notícias do filho, seu pai procurou o delegado Fleury, que lhe mostrou algumas fotos de corpos e o pai não reconheceu o estudante de medicina. Ao saber que o amigo havia sido enganado pelo chefe do Dops, Abramovitch ligou para o pai de Gelson e confirmou que o jovem havia sido morto e que havia feito o laudo necroscópico dele e informou o local do sepultamento. A família resgatou o corpo de Gelson, que foi enterrado no Cemitério Israelita de São Paulo.
Cassação do registro profissional
Nos anos 90, após o fim da ditadura, Abramovitch, Orsini e Valentini e outros legistas envolvidos com laudos falsos assinados na ditadura foram processados pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Em depoimentos, nenhum deles negou saber das torturas praticadas pelo regime, contudo Orsini e Valentini afirmaram que assinaram os laudos como segundos peritos e que, por isso, não viram os corpos.
O Cremesp condenou a prática e cassou o direito de ambos os ex-legistas de exercerem a medicina. A pena, porém, foi cassada pela Justiça Federal. O MPF corrobora o entendimento do Cremesp e destaca que ambos sabiam dos nomes verdadeiros dos acusados e nada justificaria que no laudo necroscópico constassem os nomes falsos.
Para o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia, não há dúvida que os atos de falsidade ideológica dos médicos foram intencionais. “A única razão para tais atos era a intenção dos órgãos de segurança, com a imprescindível participação dos médicos legistas ora denunciados, de esconder os corpos das vítimas, de modo a ocultar, consequentemente, os sinais de torturas sofridos por Alex e Gelson, sustentando assim a versão oficial”, afirmou.
Contudo, para o MPF, além da falsidade ideológica, neste caso há prova que ambos os legistas sabiam que estavam atestando falsamente que Alex era João e Gelson, Emiliano.
Por isso, o MPF denunciou ambos também pelo crime de ocultação de cadáver, uma vez que o uso de nomes falsos dificultou a procura das famílias pelos corpos e a localização dos restos mortais de ambos, enterrados como indigentes.
* Com informações do Ministério Público Federal em São Paulo
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