Renaro Cardozo
Leia, abaixo, a íntegra da entrevista feita por e-mail com o professor Bajonas Teixeira de Brito Júnior, doutor em Filosofia e autor do "Manifesto por uma mídia democrática e independente".
Entre aqui para ver as principais partes da entrevista e saber mais sobre o assunto.
O manifesto foi iniciativa sua ou o senhor apenas deu corpo às idéias de outras pessoas?
A idéia do manifesto surgiu das trocas de e-mails alarmados sobre a parcialidade da mídia brasileira na cobertura jornalística do primeiro turno. Uma troca de e-mails que era, ao mesmo tempo, uma troca de indignações. Assim, de todos os lugares, em listas de e-mails, chegavam depoimentos críticos, que muitas vezes não eram só matérias jornalísticas de mídias alternativas, mas manifestações de eleitores comuns denunciando manipulações da mídia. Ou seja: pessoas alheias ao mundo das redações – engenheiros, físicos, estudantes, filósofos etc. – tornaram-se de repente colunistas. Colunistas que estavam denunciando justamente o colunismo corrente na imprensa.
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Com isso, quando chegaram em nossas mãos os dados do Observatório Brasileiro de Mídia, e analisando as percentagens descobrimos que houve na imprensa, na última semana antes das eleições, nada menos que 1.511 % a mais de matérias negativas para um dos candidatos, tivemos uma comprovação objetiva de tudo que já era um sentimento comum. Portanto, nossa posição é que, depois de quase 20 anos de democracia, é uma insanidade da mídia pretender sustentar uma atitude extremamente autoritária em suas estratégias de (des)informação. Essa compreensão, como vimos depois, era compartilhada por muita gente no Brasil e bastou divulgarmos nosso manifesto pela internet em uma pequena lista de e-mails para que, por um efeito de propagação quase virótica, surgisse um rápido apoio de milhares de não-colunistas como nós.
Portanto, visto tudo isso, eu diria que apenas dei uma forma a um descontentamento generalizado. Não há propriamente falando um "autor" do manifesto. Ele responde a uma realidade nova: essa da internet e dos rápidos, digamos, torvelinhos, que podem evoluir a tornados, e que se formam em situação de alta temperatura. Veja o que diz este apoiador: "352. Mauro Bottino – As empresas jornalísticas precisam entender que a internet retirou delas o monopólio da informação, e suas manobras se tornam públicas quase imediatamente. Ou se ajustam ou se tornarão apenas sombra de seu passado."
Não é aceitável sob nenhum aspecto, por exemplo, que uma grande rede de TV, concessão pública, como é a Rede Globo, para pôr em movimento uma farsa montada como um golpe sobre o processo eleitoral, deixe de noticiar o maior acidente aéreo da história brasileira, e isso exatamente num momento em que o estado público de comoção social exigia as informações omitidas.
Quando surgiu o manifesto?
Um colega do Departamento de Comunicação da Ufes, Alexandre Curtiss, propôs em sua lista que se realizasse algo em torno de uma produção de informações alternativa à mídia. No meu centro [da Ufes], conversei com Marta Zorzal, professora de ciência política, e com o colega Antonio Vidal Nunes, também professor de filosofia, sobre a possibilidade de promovermos alguma discussão sobre o tema. Redigido o manifesto, ele recebeu as ponderações críticas dos colegas e de minha mulher, Adalgisa Pinheiro, historiadora. Amigos do Rio e de São Paulo também fizeram sugestões. No sábado, dia 7, no fim da tarde, o manifesto ficou disponível para assinaturas online. Ao fim, uma dezena ou pouco mais de amigos começaram a passar o manifesto em suas listas.
O senhor acredita que o manifesto possa mudar esse quadro de parcialidade em que se encontra a mídia?
Creio que o manifesto expressa um repúdio muito mais vasto do que hoje podemos avaliar ao que tem sido o comportamento da mídia. Ao que tudo indica, o leitor médio hoje possui uma argúcia maior que o colunista médio. Assim, os ditos "formadores da opinião pública" necessitam urgentemente de uma formação suplementar. Os seus jogos verbais, as suas considerações "críticas" e cacoetes intelectuais aparecem como elementares para uma faixa muito ampla de leitores.
Ou seja: sente-se muito fortemente, que boa parte dos comentaristas políticos da grande imprensa, por exemplo, tem baixo interesse por leituras, desconhece a literatura da filosofia política, da ciência política, das humanidades em geral, pouco estudou sobre a história política do país e por aí afora. Essa baixa formação se torna cada vez mais visível para quem consome o produto das mídias.
Por outro lado, a mídia brasileira é um dos setores menos regulamentados da sociedade. Isto é, uma terra de fronteira sem lei. Um verdadeiro velho Oeste. Tim Lopes poderia dizer não à reportagem que acabou lhe custando a vida? Não poderia, como bem destacou o professor da UNB Luiz Martins numa discussão sobre o tema. Porque no Brasil não existe a cláusula de consciência, isto é, o direito garantido ao jornalista de não realizar matérias que possam ferir seu senso moral ou levá-lo a correr riscos. Não pode haver segmento de atividade humana sem lei. Como diziam os gregos, quem vive sem leis são os ciclopes [de acordo com obras épicas da Grécia antiga, ciclopes eram gigantes com apenas um olho na testa, conhecidos por sua extraordinária força física]. É preciso que se constitua o Conselho Federal de Jornalismo; que se estabeleça a figura do ombudsman público no país; que se assegurem os quatro erres: retificação, retratação, resposta e reparação. Não é possível um quarto poder que exista como um fora-da-lei e que, estando totalmente isento à lei, arvore-se em guardião que indica quem deve e quem não deve ser punido pela lei. E o pior: que tenha poder para, como meia dúzia de palavras, mobilizar os tribunais superiores, o Ministério Público etc. Um poder desse gênero é puro despotismo.
O senhor acredita na imparcialidade da mídia?
Creio que a equação é a seguinte: tanto mais a mídia mostre qualidade investigativa e liberdade de pesquisar, maior será o grau de seu comprometimento com a verdade e, portanto, mais dará ao leitor ou consumidor em geral de seus produtos as condições de formação de um juízo amplo sobre a realidade. Aliás, quando compramos jornais e revistas, ou assinamos provedores, estamos fazendo um investimento em nossa compreensão do mundo e em nossa capacidade de emitir opiniões. Ou seja: pagando por um bem. Por isso, vê-se tantos comentários contra os colunistas nas páginas do manifesto. O colunista, por definição, é um sujeito cuja argúcia, liberdade de visão, a capacidade de expressão e compromisso com a busca da verdade deveriam estar entre suas qualidades pessoais. Não é o que vemos. Pela "unanimidade midíatica" – expressão do professor Venício Lima – que se alastrou na grande imprensa brasileira, por exemplo, tem-se a impressão de que o colunista é apenas um leva-e-traz de recados dos donos de jornal e de seus interesses políticos. Nada mais.
Temos uma mídia que custa caro ao consumidor e barato aos fabricantes, porque sua qualidade é muito baixa. Queremos colunistas e articulistas, mas que estejam à altura do publico leitor e que possam dialogar com este público em vez de servirem apenas de "médium", ou correia de transmissão, de senhores de engenho midiáticos. Uma população livre, democrática não quer uma mídia baseada no trabalho escravo. Por isso, é preciso também um investimento forte do governo na mídia alternativa, nos jornais de comunidade, em novos meios e novas experiências de informação. Atualmente, o investimento do governo nas grandes mídias aproxima-se de R$ 1 bilhão. Isso é muito investido em poucos. É melhor diversificar este investimento e, com isso, democratizar as fontes de geração de informação e entretenimento.
O que o senhor acha de já ter conseguido tantos adeptos ao manifesto? O senhor acredita que isso possa significar que a conscientização política dos anos 1980 ainda exista?
Eu não diria que são "adeptos", mas que são (co)elaboradores, na medida em que cada assinatura e cada comentário está reelaborando o manifesto e redefinindo o seu corpo. Ao contrário do período pré-digital, agora os textos e os documentos não só têm uma realização aberta, mas, também, uma autoria múltipla. Do mesmo modo os movimentos tenderão a ter uma coordenação mutante e, como eu já disse para alguns colegas e repito, estou pronto para passar adiante a coordenação do manifesto e voltar-me para o interesse da leitura e da pesquisa, que é o que me atrai. Havendo um candidato, é só me procurar.
Quanto à consciência política, acredito que hoje existe uma forma especial de consciência política que se descola cada vez mais da esfera de influência dos partidos. É um resultado, parece-me, de uma revitalização da sociedade civil com a idéia, que foi introduzida pelos movimentos sociais, especialmente, a partir da democratização da sociedade brasileira, de que qualquer um pode erguer e levar adiante uma bandeira que ache justa, seja ela de natureza política, de informação, ecológica etc. Isso não significa tornar-se um profissional da política, mas apenas atuar como alguém que eventualmente leva adiante uma causa. Não falamos, portanto, como eleitores de A ou B, mas como consumidores de informação que não estão dispostos a pagar caro por um produto de baixíssimo nível.
Cito aqui um exemplo, que motivou um e-mail meu (de 5 de agosto de 2006) para a redação da Folha Online. Em uma matéria que trazia o título "Confrontos entre Israel e Hizbollah no Líbano deixam ao menos 13 mortos", lia-se: "Em Israel, confrontos e foguetes do Hizbollah mataram mais de 70 mortos, sendo mais de 30 civis". O título fala em 13, já o corpo da matéria refere-se a 70 e, por fim, descobrimos que o Hizbollah mata mortos… Enfim, nós pagamos por esse péssimo produto. A minha preocupação com esses produtos de baixa categoria, como você vê, não surgiu nas últimas semanas. Baixa qualidade que, no caso, quer dizer: baixa confiabilidade. É como diz uma das assinantes do manifesto e é repetido em vários depoimentos: "1795. Vanessa Tigre – Não sou Lula, nem sou Alckmin, mas acho que a mídia tem que ser igual para todos os candidatos e, acima de tudo, IMPARCIAL."
A consciência política, em particular esta permitida pela internet, da troca rápida e eficiente de pontos de vistas, comentários e indignações, é antes de tudo a de que estamos à procura de informação, e informação de qualidade. Qualquer um que tenha o hábito de ler matérias nos jornais franceses, nos jornais em língua inglesa, sempre sentirá calafrios ao ler a grande mídia brasileira de hoje.
Qual a sua posição política e quem o senhor apóia?
Meus compromissos éticos políticos são, em primeiro lugar, com a verdade e a transparência. Ou seja, com tudo isso a que a grande mídia, partidarizada e manipuladora, não tem condições de se vincular. Por isso mesmo, acho que seria um equívoco fazer, ao modo da mídia, a apologia de um candidato. Deixo os encômios e as apologias para os colunistas. Minha posição procura, antes de tudo, contribuir para dar amplitude ao debate público e democrático, que não se deixe construir por manipulações, mas se ancore em programas e projetos, na igualdade de chances e na exposição equilibrada dos postulantes aos cargos públicos. Qualquer outra posição que não essa conduz ao mesmo partidarismo que recrimino e contra o qual me insurgi, juntamente com muitos outros internautas, por meio do manifesto.
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