Ricardo de João Braga *
A inflação é fruto de governos fracos ou sem compromisso em atacá-la. Posta em ação, diminui o poder de compra dos cidadãos, desestimula o investimento produtivo e coloca o país numa trajetória de retrocesso social. Os efeitos da inflação são amplos e a história brasileira nos permite conhecê-los em detalhes. Contudo, a principal razão para temê-la é a natureza de sua causa, a qual, infelizmente, está em processo no Brasil atual, assombrando-nos com uma trágica volta ao passado. Extirpar uma inflação instalada é dificílimo, pois se exige sabedoria e coragem políticas para fazê-lo.
A inflação pode ser compreendida como uma solução disfuncional e retrógrada para o permanente conflito distributivo das sociedades que produzem mercadorias. É da natureza de cada agente econômico (empresa ou trabalhador) tentar se apropriar de cada vez mais renda. Aumentar preços é um caminho utilizado para atingir esse ganho de renda, seja o preço das mercadorias ou do trabalho. Numa economia em equilíbrio, contudo, essa tática não obtém bons resultados porque a oferta e a procura tendem a se equilibrar em um estável patamar de preços. Nesse equilíbrio os agentes não geram inflação, pois aumentos de preços não são chancelados pela demanda.
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Devido ao longo processo inflacionário brasileiro, em especial ao período englobado entre os anos 1950 e 1994, uma farta lista de explicações do fenômeno foi discutida entre nós. A teoria mais tradicional é da inflação monetária (baseada na Teoria Quantitativa da Moeda), a qual afirma que o Estado emite mais moeda do que a atividade econômica precisa e por isso o ajuste se dá pelos preços crescentes. Há outras, contudo, que apontam inflação de custos (características do sistema econômico fariam os custos crescentes), e algumas mais sofisticadas como a inflação inercial (isto é, quando a economia criou regras automáticas para o repasse de aumentos de preços e assim a inflação torna-se praticamente autônoma).
Embora haja uma discussão teórica e empírica interessante e útil, um bom marco para pensarmos sobre a inflação brasileira é dado pelo Plano Real. Nele o combate à inflação associou duas frentes: a busca de um maior controle fiscal (ocorrido em alguma medida em 1993 e 1994, mas principalmente após 1999) e o fim dos mecanismos de indexação (feito pela âncora cambial – uma “indexação para baixo” – e a extinção de mecanismos de repasse de preços – “gatilhos”, etc.). O grande avanço, contudo, foi a Lei de Responsabilidade Fiscal e a assunção de metas de resultado fiscal para todos os entes federados. Numa economia com mecanismos de indexação debelados, o controle dos gastos do Estado dentro do limite de suas receitas impedia que se alimentasse o mecanismo inflacionário. A inflação e seu combate, portanto, relacionam-se diretamente ao Estado e como ele gere as finanças públicas.
Qual é então o perigo que o Brasil corre atualmente? Um país não está fadado pela natureza das coisas ou pelo desejo de seu povo a não ter inflação. Ao contrário. Estabilidade de preços é uma escolha deliberada do processo político. E, como todo processo político, um dos maiores problemas não é o desejo individual deste ou daquele ator, mas sim a agregação de desejos e ações de todos que pode gerar, ao final, um resultado irracional e negativo para toda coletividade. De 1950 até 1994 o Brasil conviveu com a inflação (com um breve intervalo no governo Castelo Branco), embora cruel e agressiva ela fosse. Durante todo esse período não houve interesse ou concertação política capaz de atacá-la com sucesso, e diversos grupos se acomodaram, sobreviveram e mesmo lucraram à sua sombra e por causa dela. Esse é o perigo que o Brasil corre atualmente, aceitar o convívio com a inflação.
O governo deve ser o norteador da política fiscal e monetária e precisa zelar pelo bem comum atacando a inflação. Os grandes números da despesa pública devem ser balizados por esse objetivo. É natural que depois se negociem detalhes e ajustes, é da natureza da democracia. Mas, reforça-se, é do comando político central que devem vir as grandes referências que dão equilíbrio ao sistema. Esclareça-se que governo, na acepção aqui utilizada, não é o presidente da República apenas, ou ele e seu ministério. Pelo contrário, são todos os atores com poder relevante que se associam ao projeto político que assumiu o país. Governo deve ser, ou deveria ser, todos aqueles que se responsabilizam pelos atos do Estado. Engloba assim Poder Executivo, lideranças do Legislativo e mesmo governadores estaduais (que embora hoje tenham capacidade limitada de gasto e endividamento, são atores importantes no equilíbrio macroeconômico do país).
Embora os números correntes da inflação ainda não provem esse diagnóstico, o Brasil debilitou profundamente sua estrutura de governança fiscal e monetária nos últimos cinco ou seis anos. Como num plano sombrio, o Brasil “preparou as bases institucionais” (destruindo e infringindo regras) e pôs em movimento práticas políticas para um novo salto do país na corrida inflacionária. A gestão temerária do Tesouro, a edição de inúmeras isenções tributárias que criaram um exército de agentes econômicos mais interessados em ganhos via Estado que via mercado, a falta de uma reforma administrativa que racionalizasse gastos públicos e, principalmente, a descoordenação política na relação Executivo-Legislativo são as bases dessa aviltante plataforma de lançamento do país na inflação.
O Orçamento da União para 2016 tramita agora no Congresso, mas a indefinição política das prioridades e limites de gastos e o não enfrentamento de questões necessárias – consequências da descoordenação política e obtusidade de alguns decisores – é a oportunidade que fortalece interesses individuais ou de pequenos grupos na busca da manutenção de gastos ou seu aumento (algumas políticas públicas distributivistas, isenções fiscais, aumentos do funcionalismo etc). A consequência trágica disso, e a história brasileira não nos permite pensar de outra forma, é que os mais pobres mais sofrerão nesse processo. Salvos estarão aqueles capazes de pressionar o sistema político via forte organização (carreiras públicas, sindicatos trabalhistas e patronais) ou via financiamento para campanhas (as grandes empresas), certamente ouvidos primeiro e capazes de manter seus ganhos. Por fim, restará como “ajuste” cortar gastos sociais daqueles que não conseguem se organizar e fazer pressão política.
Uma coisa que se aprende na política é que as decisões dependem profundamente da oportunidade. A cada dia que se passa sem definição e sem um firme compromisso pelo ajuste econômico, vai sendo montada e fortalecida uma enorme estrutura de interesses e canais de comunicação e pressão de todos aqueles que ganham com a inflação: os nacos do orçamento vão sendo protegidos para garantir isenções tributárias, aumentos de funcionalismo, investimentos politicamente interessados e não se faz corte de gastos desnecessários. A inflação cresce em vigor sob uma redoma de silêncio, e a oportunidade de combatê-la se esvai.
A inflação pode vir a pousar tranquila novamente nas terras brasileiras devido à descoordenação de ações públicas, ao desgoverno e ao salve-se quem puder. A cada notícia de negociações individualizadas de uma isenção, da manutenção de um gasto desnecessário, da negação de uma fonte de receitas, do fracasso de medidas administrativas de racionalização (nem dos gabinetes elas têm saído!), a coerência de todo o sistema é posta em risco. A fragilidade das lideranças políticas constituídas lançou-as numa busca quase desesperada de apoio, por um lado, e gerou oportunidades de ganhos predatórios por outro, o que impede uma negociação firme e transparente em torno a um projeto de governo e de política econômica consistente, viável e que mantenha os avanços sociais, entre eles o controle da inflação e a renda dos mais pobres.
De 1994 a aproximadamente 2008-2009 o Brasil conseguiu manter uma prática fiscal e monetária que, apesar de erros e percalços importantes, encaminhou o país para o desenvolvimento com controle da inflação. Milhões de empregos, melhoria de indicadores sociais, otimismo pelo futuro do país foram seus resultados. Agora, contudo, estamos construindo a antítese da esperança, e o fracasso nos assombra. É preciso alertar, gritar e exigir que os interesses gerais do país não sucumbam a arranjos parciais e particulares. É imperativo impedir que se monte, ou remonte, o petit comité que sobrevive e mesmo lucra com a inflação. O controle da inflação é um bem público. O Brasil precisa reaprender esta lição.
* Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), Ricardo de João Braga é professor, consultor político e também possui formação em Economia.
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