Rafaela Céo
Médicos, engenheiros, administradores, professoras, gerentes de banco, advogados. Brasileiros. Pessoas comuns, de classe média, a maioria com curso superior e acesso à internet. Resolveram se unir para protestar contra a impunidade, a corrupção, os altos impostos, a violência… motivos não faltam.
No campo subjetivo, a inspiração pode ter vindo em parte de um indignado senhor que, em 29 de novembro de 2005, ganhou as manchetes. O escritor Yves Hublet, o "velhinho da bengala", representou uma nação insatisfeita com o desempenho dos políticos ao repreender, com três bengaladas, o então deputado federal José Dirceu (PT-SP), ex-ministro-chefe da Casa Civil de Lula.
No plano objetivo, o crescente número de denúncias de corrupção é o que leva outras pessoas a aderirem à causa de Hublet. Não desfechando bengaladas por aí, mas fazendo sua repulsa ao comportamento das autoridades e dos representantes eleitos dar forma a entidades, sites e, embora ainda de forma incipiente, a algumas manifestações públicas.
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No dia 21 de maio, centenas de pessoas – em 20 cidades brasileiras – participaram da marcha do Dia Nacional da Dignidade. A convocação partiu do grupo Reforma Brasil. Sob o lema "Sou honesto, eu vou!", inconformados e indignados desse e de outros movimentos foram às ruas clamar pelo fim da corrupção no Brasil. Os organizadores confiam que a data deve ficar de vez no calendário.
Historicamente corruptos
Casos de corrupção não são novidade na história política do Brasil. Desbaratada no último mês pela Polícia Federal, a máfia das sanguessugas roubava dinheiro da saúde e esperança dos brasileiros. Há um ano, foi a vez dos mensaleiros chocarem o país: deputados de diversos partidos recebiam dinheiro para votar a favor do governo, como concluíram a CPI dos Correios e a Procuradoria Geral da República. E quem não se lembra dos chamados anões do orçamento, que se utilizavam das emendas para encher os próprios bolsos? Ou da até hoje mal contadas barganhas feitas durante o governo Fernando Henrique para dar ao então presidente o direito de concorrer a um segundo mandato?
Mas a sensação de que corrupção tem crescido no Brasil é mais que simples impressão. Para Antônio Flávio Testa, sociólogo e cientista político da Universidade de Brasília (UnB), a corrupção está crescendo no Brasil e no mundo, sobretudo nas relações entre os Estados e a sociedade. "Algumas organizações que precisam de recursos públicos, para realizar seus negócios, cometem ações de suborno, de cooptação, de estratégias indevidas. Estados nacionais que não têm uma institucionalidade muito desenvolvida ficam muito vulneráveis a essa pressão. O Brasil tem passado por isso", explica.
Engana-se, porém, quem pensa que a corrupção é privilégio das sociedades contemporâneas. Esse mal está entre nós há mais tempo. Seus rastros podem ser identificados, por exemplo, na ocupação de cargos estratégicos no Estado imperial, ainda no século XIX. Para o professor Testa, a indicação das elites para cargos públicos com o objetivo de defender seus interesses é a raiz do problema.
Ele acredita que há uma correlação muito grande entre a apropriação do Estado por agentes de determinados setores da sociedade e a corrupção. "A corrupção no Brasil é um traço estrutural, vinculado historicamente ao patrimonialismo e ao clientelismo e, modernamente, à captura do Estado por interesses privados", sintetiza o professor.
É hora da ação
Corrupção Zero, Reforma Brasil, De Olho no Imposto, Voto Consciente, Quero Mais Brasil… há uma lista enorme de movimentos que florescem graças ao sentimento de indignação (clique aqui para conhecer os principais deles). Em comum entre eles, o fato de serem todos apartidários. "Há movimentos que quase foram extintos porque se envolveram com partido político. Nós não somos partido. Não somos a favor nem contra nenhum político ou partido", afirma o engenheiro Sinval Silva Filho, um dos fundadores do movimento Corrupção Zero.
Sinval Silva conta que a organização começou de maneira despretensiosa: "Éramos uma grupo de 20 a 30 pessoas. Saíamos para bares e ficávamos reclamando da vida, da violência, da corrupção, dos impostos. Até que em outubro do ano passado resolvemos agir". Meia dúzia desses amigos toparam e partiram para ação. Fundaram o movimento Corrupção Zero. Hoje, há mais de 18.500 pessoas cadastradas no mailing da entidade. A rede foi formada pela indicação de amigos e de amigos de amigos, todos simpatizantes da mesma causa.
Sinval Silva diz que o primeiro objetivo do Corrupção Zero é difundir a valorização do voto. Embora alguns insatisfeitos com o governo e desiludidos com a política apóiem o voto nulo como forma de protesto, o engenheiro é firme na sua definição: "Voto consciente e responsável é não jogar o voto fora".
A advogada Gabriela Campos Paulino está no movimento Reforma Brasil desde que ele surgiu, motivado pelo escândalo do mensalão, em agosto de 2005. Como uma das dez conselheiras fundadoras, ela explica que a preocupação principal do Reforma Brasil não tem sido o voto na próxima eleição. O foco central é o combate à corrupção, explica. "Estamos preocupados com o fim da corrupção. Não importa qual partido político fará o governo sem corrupção. Nossa preocupação não é a eleição e nosso movimento não termina em outubro", afirma.
Segundo Gabriela, a segunda "marcha pela dignidade nacional" já está marcada para o dia 16 de julho. "Na verdade, todos os dias devem ser dia da dignidade nacional", completa ela.
Como a rede é lugar de todos os tipos de peixe, há também um movimento que conta com a colaboração de celebridades. O Quero Mais Brasil tem em sua página na internet depoimentos da cantora Sandy e seu irmão Júnior, de Daniela Mercury, Elba Ramalho, Carlinhos Brown. Também apóiam a organização outros ilustres: Viviane Sena, o publicitário Washington Olivetto, o médico Adib Jatene e o técnico de Vôlei Bernardinho.
Embora também defenda o combate à corrupção, esse movimento está mais atento à questão dos impostos. "Nós pagamos imposto em tudo que compramos e por isso, temos o direito e o dever de exigir mais transparência, mais cuidado com o uso do nosso imposto e mais crescimento para o Brasil", esclarece a gravação telefônica que atende os chamados de outros insatisfeitos que telefonam para deixar uma mensagem de adesão à causa.
O homem da bengala
Símbolo da indignação nacional, o escritor paranaense Yves Hublet, 68 anos, inspira-se no herói idealista Dom Quixote, personagem de Miguel de Cervantes. Ele persiste no protesto contra quem, em sua opinião, "descarrilhou este país". "Protesto essencialmente contra esse governo. A idéia é colocar de novo o Brasil nos trilhos. Isso implica dignidade, não à corrupção e à impunidade", disse Yves Hublet ao Congresso em Foco.
A bengala utilizada para repreender o ex-ministro José Dirceu, está na parede da sala da sua casa como troféu, mas não está aposentada. As bengaladas físicas "provavelmente não acontecerão mais", informa. Mas se o assunto for bengalada moral, a lista de vítimas é grande. Ele cita "toda essa turma, começando pelo capitão" (Lula), e acrescenta outros nomes: Paulo Maluf, Severino Cavalcanti, José Sarney, Antônio Carlos Magalhães, Ângela Guadagnin, Luiz Gushiken… um dos poucos que sairiam ilesos de sua bengala justiceira seria o senador Delcídio Amaral (PT-MS). "Ele fez um grande serviço à nação, com uma coragem enorme inclusive contra seu próprio partido", acredita.
Para o escritor, o Brasil vive um momento "escatológico": "Se você juntar tudo que houve, desde a corrupção de faquinhas, espelhinhos e conchinhas quando Cabral chegou aqui em 1500, desde aquela época, nunca houve uma corrupção igual à que está acontecendo agora. Corrupção institucional".
Yves foi o organizador da Marcha pela Dignidade Nacional em Brasília, que contou com a participação de aproximadamente 150 pessoas. Antes solitário na empreitada de limpar a política brasileira, ele hoje participa da lista de discussão do movimento Reforma Brasil. Para ele, no entanto, o mais importante é o objetivo da organização: "Podia ser ‘abaixo Lula’ ou ‘fora com a canalha’, eu entraria de qualquer jeito. O importante é a diretriz do movimento".
Indignação online
O escritor Yves Hublet e todos os outras mil pessoas cadastradas no Reforma Brasil, além dos 18.500 que participam do Corrupção Zero, estão ligados pelo mundo online. Eles utilizam a internet como espaço de comunicação. As caixas de mensagem estão sempre lotadas porque o debate de idéias e a organização das ações acontecem geralmente por meio das listas de e-mail. Quase nada se discute por telefone. "São pelo menos 300 e-mails por dia", conta Sinval Silva, do Corrupção Zero. "Recebi mais de 5 mil e-mails por conta da Marcha da Dignidade Nacional", diz Gabriela, do Reforma Brasil.
Além das centenas de mensagens eletrônicas, há também um número espantoso de comunidades do Orkut, site de relacionamento da WEB, relacionadas a movimentos de cidadãos indignados. A comunidade formada para divulgar a marcha, por exemplo, tem 3.129 membros. Lá, encontra-se a indicação para várias outras comunidades com significativo número de integrantes: E-indignação (7.467 membros), Reforma política (1.613 membros), Repúdio à ignorância política (28.245 membros) ou Apartidário sim (3.123 membros).
Também há sites para todos os gostos. Alguns têm propostas inusitadas, como a do movimento e-indiganção (www.e-indignacao.com.br). Criado em agosto de 2005, ele convoca os brasileiros a participarem de uma caminhada virtual rumo a Brasília contra a corrupção. A cada participante cadastrado, a caminhada avança 2 metros. O percurso tem 1.012 km, distância de São Paulo a Brasília e será necessária a participação de 506 mil brasileiros para completá-lo. O objetivo, segundo informações do site, é utilizar a internet como forma de mobilização popular para manifestar a indignação de todos os brasileiros com relação aos fatos de corrupção mais recentes.
O professor Antônio Flávio Testa acredita que, apesar de o acesso à internet estar restrito a uma parcela relativamente pequena da população brasileira, seu uso é cada vez maior e mais importante: "A participação online vai ter um peso significativo nas eleições deste ano. E já teve um desempenho muito significativo no referendo sobre o desarmamento. Cada vez mais, em todo mundo, a internet se transforma numa estrutura de poder, de formação de opinião".
A audiência crescente da internet parece confirmar as palavras de Testa. No mundo, a rede já conta com mais de 1 bilhão de usuários que a acessam de casa. No Brasil, segundo o Ibope NetRatings, 14,1 milhões de pessoas acessaram a internet em seus domicílios no último mês de março. Considerando aqueles que têm acesso à WEB no trabalho, em instituições de ensino e outros locais, o total de usuários brasileiros é estimado hoje em mais de 30 milhões de pessoas.
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