Veja, a seguir, a íntegra do voto proferido pelo conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pelo Acre, Sergio Ferraz, relator na OAB do processo que trata do apoio ao pedido de impeachment do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em seu voto, o relator acredita que há tanto fundamentos jurídicos quanto políticos para a apresentação do apoio ao pedido de impeachment.
Sergio Ferraz ainda recomenda o encaminhamento ao procurador-geral da República de representação de ordem penal contra o presidente da República, “em face de seu inequívoco envolvimento nos eventos e delitos, relatados neste processo”.
Processo 0036/2005
“Este processo teve início com a expressiva mensagem que, em nossa sessão plenária de 08 de agosto de 2005, nos endereçou o eminente Presidente Nacional da O.A.B., focalizando a grave crise política e moral que, iniciada meses antes, conspurcava as instituições brasileiras, protagonizadas pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo. Naquela oportunidade, Sua Excelência instou nosso Colegiado à tomada de posições e à propositura de linhas de ação. Honrado com a relatoria, elenquei então minhas conclusões (folhas 71/72), que foram aprovadas pelo Plenário. Como houvesse restado um resíduo temático não-deliberado, prossegui na relatoria do processo. E na sessão de 16 de outubro de 2005 trouxe minhas conclusões adicionais (folhas 81/82), unanimemente referendadas pelo colegiado.
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Com o agravamento da crise, a ilustre Conselheira Elenice Pereira Carille, com o apoio de vários de seus preclaros pares, tomou a iniciativa, em nossa Plenária de 07 de novembro de 2005, de propor que a OAB, de imediato, assumisse os passos necessários conducentes à responsabilização e subseqüente impedimento do Chefe do Executivo federal.
Após extensos debates, suscitados pela mencionada proposta, deliberou-se pela formação de uma Comissão de alto nível, sob a direção do ilustre Conselheiro Orlando Maluf Haddad. A essa Comissão incumbiria coletar os elementos de convicção necessários à decisão da OAB, quanto à proposta de impeachment. Uma vez coletados tais dados, seriam eles, com a manifestação da Comissão, encaminhados ao signatário, que é o Relator deste processo, a quem caberia apresentar a matéria ao Plenário, com vistas a uma deliberação da OAB.
A Comissão dedicou-se arduamente a seu trabalho, culminando-o com o oferecimento de sua opinião, a este Relator, bem como do volumoso Relatório Final da C.P.M.I. “dos Correios” e da alentada Denúncia do Exmo. Sr. Procurador-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, contra o Ex-Ministro José Dirceu e mais 39 (trinta e nove) apontados cúmplices. Nesses documentos, aos denunciados, individualmente, são endereçadas acusações de crimes eleitorais, desvio de recursos públicos e de entidades privadas da Administração Pública, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, corrupção ativa, corrupção passiva, evasão de divisas e formação de quadrilha.
Registre-se, por fim, que a Comissão e este Relator se reuniram em São Paulo, no dia 03 de maio último, para derradeira troca de impressões. Por três votos contra dois, a Comissão concluiu pelo oferecimento de uma preliminar de inoportunidade do impeachment, embora reconhecida a existência de graves irregularidades imputáveis ao Presidente da República
É o relatório.
Em 04 de maio de 2006.
SERGIO FERRAZ
RELATOR
VOTO
“…se a ordem jurídica não aceita o desconhecimento da lei como escusa até do mais humilde dos cidadãos, muito menos há de admitir a desinformação dos fatos pelos agentes públicos, a brandirem a ignorância dos acontecimentos como tábua de salvação.”
(trecho do discurso de posse do Min. Marco Aurélio, na presidência do T.S.E.)
I: Algumas elucidações preliminares
1- Este voto, tal qual o que será emitido por qualquer dos ilustres companheiros de Conselho, traduz as sinceras e isentas convicções pessoais do prolator, na análise jurídica, empírica, ética e política, do material que lhe foi encaminhado. Não só: trata-se de convicções firmes e sólidas, que, ao ver do Relator, constituem um patamar pessoal para além de qualquer dúvida, sobre o assunto examinado. Mas não tem o Relator hesitação alguma em reconhecer e proclamar que sua convicção pessoal, por mais firme que seja, nem por isso representa uma verdade universal e unifacetada. É dizer, o Relator admite como igualmente sólidas e sinceras quaisquer outras manifestações de seus pares, afinadas com seu pensamento ou dele divergente. Em suma, todos os Conselheiros, que aqui estão, votarão guiados por sua integridade, com sua particular percepção do momento histórico e com honestidade científica intocável. E por isso contam, desde já, com o respeito do Relator, independentemente do sentido de seu voto. Por óbvio que idêntico respeito é devido também ao Relator, pouco importando que seja seu pensamento, a final, majoritário ou vencido.
2- Com essas considerações, o Relator vem, liminarmente, manifestar sua inaceitação a qualquer abordagem, midiática ou não, lançada com o intento de pré-desqualificação, sem o mínimo exame do conteúdo, do seu voto ou dos votos dos Conselheiros.
Foi o que fez, por exemplo, a revista “Carta Capital” de 12.04.06, número 388, ao lançar, em sua página 29, uma romanesca “explicação” de natureza conspiratória, anunciando, com enorme antecedência, o conteúdo do voto que aqui se inicia. Esse intuito de pré-desqualificar, com base no mínimo em erros, mas provavelmente em mentiras mesmo, será nesta oportunidade, a lattere, posto a nu. Mas o que desmoraliza de vez essa manipulação é – essa sim não por erro, mas por mentira mesmo – a rombuda inverdade de algumas linhas antes, na mesma página 29, quando “Carta Capital” afirma que a OAB apoiou o golpe de 1964! A mentira é tão grosseira, que torna a tentativa extremamente pueril. E o infantilismo ou a torpeza foram repetidos pelo mesmo veículo, em seu número 390, de 26.04.06, página 16, quando toscamente aparenta não saber o sobrenome do Presidente Nacional da OAB, mas o refere com exatidão, na legenda da fotografia do Bâtonnier.
Nesta Casa, diverge-se com ênfase, mas com respeito. E assim será mais uma vez, neste momento tão repleto de significação, em que a OAB, com a responsabilidade e o peso de sua trajetória histórica impecável, se dispõe a pronunciar-se sobre situação dramática, que a todos preocupa. Antecipe-se que este Relator, com todas as vênias, não adotará a preliminar de inoportunidade, levantada pela Comissão de Alto Nível. As razões da inaceitação serão formuladas no item III deste voto.
II: O enfoque jurídico
3- A denúncia do Presidente da República, por crime de responsabilidade, é iniciativa do cidadão, pessoa natural (Lei 1.079/50, arts. 14 e seguintes). Deve a denúncia fazer-se acompanhada de documentos que constituam prova, início de prova ou indício da prática criminosa que se deseja ver reconhecida. É dizer, a denúncia não tem de carrear, de imediato, prova definitiva e completa das acusações, até porque há, no processo, toda uma fase probatória, para esse fim. Nesse sentido, até mesmo noticiário de imprensa, desde que consistente, congruente, eloqüente e caudaloso, sobretudo se contestado (quando o é) de maneira pífia ou destituída de credibilidade, já se afirma suficiente à deflagração do processo.
4- No plano material, a configuração dos crimes de responsabilidade repousa no artigo 85 da Constituição Federal. Mas o elenco constitucional se complementa com a tipificação consagrada na Lei 8.492/92, na qual, com clareza inquestionável, se estatui que se comete ato de improbidade administrativa não só por ação, mas também por omissão (art. 10, dentre outros).
Se tomássemos como elemento de prova tão apenas as declarações à imprensa do próprio Presidente, teríamos que, pelo menos por omissão (na melhor das hipóteses), atentou ele contra o livre exercício do Poder Legislativo (compra de votos, “mensalões”, “caixa dois”, etc…) e a probidade na administração (CF, art. 85, incisos II e IV), incorrendo, ademais, em diversas previsões dos artigos 10 e 11 da Lei 8.492/92 (particularmente: art. 10, incisos I, II, XI, XII e XIII; art. 11, incisos I e II). De muito menos aliás se dispunha, quando a OAB deu partida ao impeachment do Presidente Collor.
5- A esse elenco normativo caberia, ainda, aditar preceitos da Lei 1.079/50, tipificadores de condutas criminosas do Presidente da República, a saber:
– artigo 7º, V, que considera crime de responsabilidade, contra o livre exercício dos direitos individuais, a tolerância do Presidente, que acarreta a prática, por subordinados, de abusos de poder;
– artigo 9º, III, que descreve como crime de responsabilidade, contra a probidade administrativa, “não tornar efetiva a responsabilidade dos subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”;
– artigo 9º, VII, que divisa o crime de responsabilidade quando o Presidente procede de “modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Nessa pecha o Presidente incorreu, comprovadamente, já várias vezes, quando de público elogiou seu ex-Ministro da Fazenda, após sua defenestração em razão de atos de violação de sigilo bancário de terceiro e formação de quadrilha; e provavelmente (o que a fase probatória apurará) incidiu também nessa figura penal, quando atuou para a afirmação empresarial de seu filho e quando baixou decreto, permitindo ao BMG, banco envolvido no escândalo do “mensalão”, a operação em crédito com desconto em folha de pagamento, para aposentados e pensionistas.
6- As dúvidas, que a muitos acodem, quanto ao envolvimento do Presidente da República, no panorama de “corrupção sistêmica”, a que aludia o Presidente Nacional da OAB, na peça de abertura deste processo 0036/2005, são hoje de inviável aceitação, ao ver estritamente pessoal deste Relator. Talvez por isso mesmo, não tem o Presidente da República, em tempos recentes, usado a desculpa em que antes era vezeiro, de desconhecer o que ocorria sob seus olhos, na ante-sala (pelo menos) de seu Gabinete.
Nesse particular, a Denúncia oferecida ao S.T.F., pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral da República (Inquérito 2.245, Relator Ministro Joaquim Barbosa), colocou irrefutável pá-de-cal. Sua Excelência, com base em material produzido pela C.P.M.I. “dos Correios”, assim como em investigação do próprio Ministério Público, pintou impressionante quadro da corrupção. E conquanto não cite nominalmente o Presidente da República como criminoso comissivo (delito por ação), sua peça fala textualmente: em “organização criminosa” comandada pelo ex-ministro José Dirceu e pelos petistas José Genoino, Delúbio Soares e Silvio Pereira, todos eles homens da confiança do Presidente da República; em “quadrilha”, formada pelo grupo mencionado e pelo empresário Marcos Valério, com o apoio de diretores do Banco Rural, para dar “continuidade ao projeto de poder do PT, mediante a compra de suporte político de outros partidos” – i.e., o “mensalão”. A peça em questão não deixa perplexidades, no espírito deste Relator: ao Presidente da República, claramente delineado como o principal beneficiário de toda a organização, resta a dicotomia factual – presidente inepto ou sujeito oculto e diretivo da organização tida como criminosa, nos expressos termos da Denúncia. Dela extraímos mais três trechos intensamente comprometedores:
“Pelo que já foi apurado, o núcleo da quadrilha era composto pelo ex-ministro José Dirceu, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, o ex-secretário-geral Silvio Pereira e o ex-presidente do PT José Genoino”.
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“É certo que José Dirceu, em razão da força política e administrativa de que era detentor, foi o principal articulador dessa engrenagem, garantindo-lhe a habitualidade e o sucesso”.
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“O acordo criminoso com os demandados José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoino e Silvio Pereira foi acertado na época da campanha eleitoral para a Presidência da República em 2002………………………………………………….”
Não nos esquivamos a transcrever observação do jornalista Clóvis Rossi, em coluna sugestivamente denominada “Decoro de Republiqueta” (FSP, 04.04.06, página A2):
“Impeachment é um processo político em que o crime fundamental é falta de decoro para o exercício do cargo, o crime pelo qual Fernando Collor foi defenestrado.
Não se trata, portanto, de provar cientificamente que Lula sabia das malfeitorias que se praticam em seu entorno. Basta lembrar pelo menos dois episódios, a saber:
1 – Lula disse, no “Fantástico”, que o PT estava desmoralizado. Não obstante, deu-se ao desfrute de confraternizar com os desmoralizados. Se isso não é falta de decoro é um tremendo mau exemplo, não há mais decoro a esperar de ninguém.
2 – Lula demitiu Palocci pelo crime de ter mandado violar o sigilo bancário do caseiro Francenildo. Não obstante, no discurso de despedida, chamou Palocci de “grande irmão”. Irmão de delinqüente não tem culpa de sê-lo. Mas quem faz questão de se transformar em irmão político de delinqüente dá, de novo, mau exemplo e comete inequívoca falta de decoro no exercício do cargo. Mas, em republiqueta bananeira, falta de decoro costuma virar qualidade e esperteza”.
E quem se deu ao trabalho de ler, linha por linha, a citada peça acusatória, dela dificilmente deixará de sair com a certeza: não há como separar o Presidente da República, de todo o mar de lama, em que patinavam seu ministro mais poderoso – poder que o Presidente lhe outorgou – e os principais gestores de seu partido de sustentação. Recomenda-se, nesse desiderato, a leitura especial dos seguintes tópicos da Denúncia:
– item III, páginas 39 e seguintes, “Desvio de Recursos Públicos”;
– item IV, páginas 75 e seguintes, “Lavagem de Dinheiro”;
– item VI, páginas 94 e seguintes, “Corrupção ativa, corrupção passiva, quadrilha e lavagem de dinheiro (Partidos da base aliada do Governo)”;
– item VII, páginas 121 e seguintes, “Lavagem de Dinheiro (PT e o ex-ministro de Transportes)”.
Em suma, conquanto tenha talvez faltado à C.P.M.I. “dos Correios” e à Denúncia do Ministério Público vontade política para apontar formalmente o dedo acusatório ao Presidente, sai ele irremediavelmente manchado, do mero relato das falcatruas apuradas. Não há como negar o acerto do lapidar discurso do Ministro Marco Aurélio, ao tomar posse, no último dia 4, na presidência do T.S.E.; transcrevemos:
“Infelizmente, vivenciamos tempos muito estranhos, em que se tornou comum falar dos descalabros que, envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira – composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta – um misto de revolta, desprezo e até mesmo repugnância. São tantas e tão deslavadas as mentiras, tão grosseiras as justificativas, tão grande a falta de escrúpulos que já não se pode cogitar somente de uma crise de valores, senão de um fosso moral e ético que parece dividir o País em dois segmentos estanques – o da corrupção, seduzido pelo projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura, e o da grande massa comandada que, apesar do mau exemplo, esforça-se para sobreviver e progredir”
7- Dessa sorte, do ponto-de-vista estritamente jurídico, não temos dúvida em propor que o Conselho Federal se manifeste em favor da instauração do processo de impeachment, mediante denúncia a ser firmada por seu Presidente e por quem mais o desejasse acompanhar (por certo, o ora signatário integraria este rol).
III: O enfoque político
8- O crime de responsabilidade tem dupla face, material e formal: a jurídica e a política. E é nesse segundo ângulo de visão que a iniciativa de denunciar reclama cautela especial.
Materialmente, a faceta política do crime de responsabilidade decorre até mesmo de sua tipificação em sede constitucional, espraiando-se para a ambiência essencialmente do exercício da política, em que o delito é cometido.
Processualmente, a faceta política se estampa com nitidez na configuração do colégio julgador, em que se integram personagens dos três Poderes de Estado, a evidenciar que o processo de impeachment constitui uma verdadeira encenação dramática de um determinado momento trágico da vida nacional, com o fim de provocar uma catarse que impulsione o país para dias mais limpos e virtuosos.
9- A podridão do Planalto exala hoje um odor muito mais nauseabundo e mefítico que nos tempos da “Casa da Dinda”.
Não obstante isso, não faltam vozes que levantam a suposta inconveniência do pedido de impeachment, brandindo argumentos que passaremos a enfrentar.
Há duas considerações que prudentemente se deve agora pontuar, em caráter vestibular.
A OAB se recusa a fazer o “jogo do sangramento”, consistente em deixar a espada de Dâmocles do impeachment a cortar centímetro a centímetro o pescoço presidencial, para, assim debilitando sua pessoa política, inviabilizar sua candidatura.
Doutra parte, a OAB não se preocupa com a possibilidade de que não haja tempo útil para que uma denúncia formalizada seja julgada ainda antes da expiração do mandato presidencial. A condução do processo, envolvendo sua duração, é da responsabilidade do órgão julgador e da vontade política de quem o dirija. O dever da OAB, no caso, se esgota com a prática dos atos conducentes à eventual denúncia a qual, repita-se, é iniciativa individual (ainda quando plúrima).
10- A OAB tem, por imposição legal (Lei 8.906/94, art. 44, I), o dever de manifestar-se e atuar, sempre que em jogo a ordem jurídica, a integridade da Constituição e a higidez das instituições. Em suma, confere-lhe a Lei elevada função política, inteiramente desligada, contudo, de inspirações partidárias. Que estamos atravessando longa e prolongada crise institucional, em que espezinhados comezinhos princípios éticos, é inequívoco. Em razão disso, à OAB só resta cumprir seu papel institucional, intervindo no processo político, não em benefício ou desfavor de determinado Partido. Mas na busca do resgate da limpeza das instituições e dos básicos valores da cidadania e do Estado de Direito.
Que fique bem nítido: estamos imersos em grave crise institucional. O que temos em mãos não são meros artifícios oposicionistas, em busca de rendimentos e lucros eleitorais. A Denúncia, apresentada pelo Procurador-Geral da República, confirmou, com riquezas de detalhes, que dinheiro público foi sistematicamente utilizado para subornar deputados, dobrar opositores, assegurar eleições, prolongar a permanência dos detentores do poder. A isso tudo não pode a OAB responder com o silêncio, ou com a evasiva (ressalve-se: é o pensamento do Relator, que, reitere-se, saberá conviver com a eventual divergência). Ela agirá de acordo com sua história e sua tradição, não se prestando jamais a atuar como palanque de qualquer Partido, da situação ou da oposição.
11 – Há algumas outras objeções empíricas ao impeachment, que este Relator respeita no plano das idéias, mas não as adota. Iremos arrolá-las e replicá-las, itemizadamente.
12 – O Presidente da Câmara dos Deputados é um escudeiro do Presidente Lula
Com essa proclamação, pretende-se extrair a ilação de que qualquer pedido de impeachment está fadado ao arquivo. Se assim for, tratar-se-á de problema de quem assim agir. A coerência e a convicção do Relator o impelem a pedir a propositura do impeachment. Assim ele cumprirá o seu dever. Se o Presidente da Câmara preferir a fidelidade a seus compromissos pessoais e partidários, que responda perante a história. Enfim, que cada um cumpra com seu dever, sem até mesmo estar certo de que assim se fará generalizadamente. Cidadania, como recentemente afirmava o Ministro Carlos Britto, do S.T.F., não é compromisso de resultado, mas de consciência.
13 – O impeachment vitimizará o Presidente Lula, alavancando sua eleição
Esse argumento, no pensamento do relator, tem o mesmo valor daquele que lhe é diametralmente oposto (o do “sangramento”, anteriormente focalizado). Aqui não interessa o benefício ou o malefício de quem quer que seja. A opção é outra: cruzar os braços, ou proclamar a existência da imoralidade, conseqüentemente pedindo o afastamento dos corruptos e dos corruptores?
14 – Este Congresso Nacional não se revela moralmente apto a tão elevado papel
Este Congresso, que aí está, decaiu na estima popular a níveis que, até pouco, eram impensáveis. A desmoralização que sobre ele recaiu, depois da absolvição de “mensaleiros” confessos, entre os quais até um ex-Presidente da Câmara, teve sua expressão figurativa mais tosca e perfeita, no inqualificável “rebolado” de uma celebrante dançarina sem recato.
Não obstante tudo isso, esse é o Colégio julgador, por determinação constitucional. Daí a renovação da opção: cruzamos os braços, pela falta de confiabilidade do julgador, ou denunciamos o infrator, com esperança de que o Colégio, afinal, se mostre à altura das exigências históricas e cívicas?
15 – Não há clamor ou mobilização popular em prol do impeachment
O dever da OAB é o de não compactuar com o crime, com a imoralidade e com o abuso do Poder. Ao povo cabe soberanamente decidir se apóia, ou não, o pedido de impeachment. E poderá o povo, inclusive, vir a sensibilizar-se pela tomada de posição da OAB. Mas, repetindo: cada um que cumpra com seu dever, consultando sua consciência e situando-se historicamente no contexto nacional. Admitamos, para nosso argumento, que o Presidente Lula tenha hoje um apoio popular da ordem de 60% (sessenta por cento). Pode a OAB, só por isso, virar as costas ao cometimento de crimes e falcatruas, somente porque seus autores têm marcado apoio popular? À toda evidência que não!
A aparentemente sólida blindagem, a escudar o Presidente Lula, tem várias explicações:
– sua história pessoal (pregressa);
– seu carisma;
– suas políticas assistencialistas.
Além do que, a realização de velho anseio popular, de ver um operário na cadeira maior, pesa na mente de muitos, que ora se opõem ao impeachment. Mas esse Presidente que aí está, com seus charutos cubanos, seus vinhos Romanée Conti, seus ternos caros, nada tem que ver com o operário um dia idealizado pelo eleitorado. O sonho acabou!
Mais que tudo isso, porém, existe a beneficiá-lo, na opinião deste Relator, a infeliz disseminação da corrupção, nas massas e nas elites. Nunca o “rouba, mas faz” alcançou tão fortemente a aceitação popular, quanto nesses dias de nossa infeliz República. Só que a OAB não pode conformar-se com a generalização da imoralidade e sua aceitação! Novamente cede-se a palavra ao Ministro Marco Aurélio, em seu impecável discurso de posse:
“A rotina de desfaçatez e indignidade parece não ter limites, levando os já conformados cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais surpreendente, como se tudo fosse muito natural e devesse ser assim mesmo; como se todos os homens públicos, nas mais diferentes épocas, fossem e tivessem sido igualmente desonestos, numa mistura indistinta de escárnio e afronta, e o erro passado justificasse os erros presentes.”
16 – Foi no contexto de tudo isso que se inseriu uma desastrada manifestação da CUT, recheada de ameaças até de retorsão física, contra eventual posição da OAB pelo impeachment. Com o autoritarismo típico de quem não tem o hábito da vivência democrática, o presidente da CUT não se pejou de batizar como “tresloucado neo-liberalismo” qualquer decisão nesse sentido.
O radicalismo de tais posições não merece, de nossa parte, mais que registro. Trata-se de uma atitude de basófia e intolerância, incapaz de sensibilizar ou de amedrontar quem age com a ética e a moral, sem qualquer liame partidário. Como bem assinalou o Presidente Busato, em artigo publicado no “Correio Brasiliense” de 26.04.06, o impeachment é remédio amargo, drástico, reservado para casos de gravidade. Mas, se abraçado, deve ser visto com naturalidade, como recurso institucional legítimo, a serviço do Estado Democrático de Direito e da sociedade. E acrescentamos: como todo remédio amargo, eficientes e benfazejos soem ser os resultados de tais terapias.
IV: Conclusão
17 – Não temos dúvida em afirmar que jamais houve, na história do presidencialismo brasileiro, tanta imoralidade e deterioração quanto no atual governo. Muito mais, por exemplo, que no governo Collor, a manipulação imoral foi agora sobretudo de recursos públicos, sem necessidade de montagens como a “Operação Uruguai”.
18 – Tomemos de empréstimo, neste arremate, algumas considerações do memorável discurso do Presidente Busato, quando da posse da Ministra Ellen Gracie, na Presidência do Supremo Tribunal Federal.
Vive o Brasil um momento crítico, em que a credibilidade nas instituições públicas baixou a patamares jamais antes entrevistos. A falta de decoro, de alguns elevados agentes públicos, desgasta as instituições e alimenta as sementes do autoritarismo, A tudo isso vem somar-se a certeza da impunidade. Daí a pergunta aflitiva: perdeu o Brasil a compostura?
19 – Pois é a procura da recuperação da compostura, da verdade e da responsabilidade que, por fim, anima este Relator, após detida cogitação dos aspectos jurídicos e políticos que incidem na matéria, a rejeitar a preliminar de inoportunidade e a pronunciar-se pela deflagração, na forma da lei, do impeachment do Presidente da República. A nosso ver, o Brasil merece essa oportunidade de resgate.
Acrescente-se que, além dessa iniciativa, voto também pelo encaminhamento, ao Procurador-Geral da República, de representação de ordem penal, contra o Presidente da República, em face de seu inequívoco envolvimento nos eventos e delitos, relatados neste processo.
É nosso voto.
Brasília 08 de maio de 2006
SERGIO FERRAZ
RELATOR
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